sexta-feira, 2 de julho de 2010

O fim da Bolsa nos Bolsa-Qualquer-Coisa

Ainda considero que o maior problema do sistema de assistência atual, que tenta pagar aos alunos pobres que estudam, seja em que modalidade de programa for e como quiserem chamar os "pobres", é a mensagem que isso passa, não o gasto público envolvido nem a "compra de votos" que isso implicaria.

Quanto ao gasto público, já está bem demonstrado que é possível fazê-lo sem acabar com a grana do país, e a cobrança abusiva de impostos do Brasil reduplicaria quaisquer argumentos econômicos que comprovem essa possibilidade. Yes, we can.

A compra de votos não é nem um mal exclusivo do sistema de bolsas nem funciona como geralmente é representada. Isso pode até ser viável em outros estados (não sei como), mas, no Rio Grande do Sul, como a organização dessas bolsas e a competência dos empregados do governo deixa a desejar a olhos vistos, qualquer pessoa que dependa da bolsa conhece uma série de problemas na organização desse sistema e, se o aluno não sofre com eles, vê amigos e colegas sofrendo. Além disso, a mínima escorregada dos políticos, mesmo que aparente, é imediatamente interpretada de acordo com nossa politicofobia nacional, que acredita que toda pessoa que faz parte de um partido é corrupto e sem-vergonha. Ou seja, um problema no sistema de computadores que administra as bolsas logo é visto como falcatrua de algum político (genérico).

Aquele candidato ou político estabelecido que fosse lá e, por um dia, tirasse umas fotos com os beneficiados seria antes metralhado por perguntas, críticas ou tijolaços. Neste caso as fotos de campanha não registram, naqueles elas fortuitamente não registram as palavras nem os pensamentos dos beneficiados. Votos podem parecer ser comprados assim, mas o sistema de bolsas, pelo que vejo, só funciona como propaganda na verdade se o político envolvido já é preferido por outros motivos bem mais fortes ou se consegue convencer as pessoas de que a bolsa é uma melhoria em relação à situação anterior, argumentação que é apresentada antes à sociedade que especificamente àquele grupo. Caso resolva argumentar isso na campanha, o político necessariamente constrói algumas mentiras para aparar as arestas, mentiras que são captadas por quem conhece o programa, ou seja, quem seria "comprado" pela bolsa.

Outra coisa que deveria deixar de ser subestimada é que o beneficiado também pode mentir, e bem. As pessoas que dependem dessas bolsas também sabem aparentar que concordam com o político e com o programa mesmo quando nem estão ouvindo do que se fala, simplesmente para continuar lucrando numa boa (apesar de que também atacam com uma franqueza absolutamente imprevista e "inadequada"). Um dos preconceitos atuais mais curiosos, inconsciente como todo verdadeiro preconceito, é o que faz todo mundo esquecer que pobres mentem tão bem quanto os ricos, apenas por motivos um pouco diferentes e com mínimas adaptações de estilo. Se essa compra funciona em outros estados, não sei como, mas só acreditaria na versão de alguém que acompanhe o processo muito de perto.

O que essas bolsas educam, por outro lado, para pessoas que não tenham uma forte cultura contrária às posturas que vou comentar, já é um problema mais grave. Imediatamente o aluno entende que merece ganhar dinheiro por estudar. Portanto seu estudo é imediatamente submetido a um fator alheio, não ao consequente conhecimento que seria alcançado nem aos usos desse conhecimento. Ao mesmo tempo, os problemas de recebimento de bolsa são interpretados como uma violência direta, não a um direito relativo ao programa, mas a um direito inalienável do ser humano, o de receber para estar na escola. Essas questões de recebimento também reforçam que políticos não prestam, pois a falha é entendida como se alguém estivesse roubando seu dinheiro (políticos estão sempre desviando, portanto a possibilidade de que haja um problema estrutural qualquer, que pode ser resolvido, não lhes ocorre). Tirando o pequeno grupo que foi apesar da bolsa, que nem vai correndo tirar o dinheiro na conta especial quando ele chega (os que estão ali valorizando ao máximo o diploma), os outros logo se confundem num grupo só: os que foram também pelo dinheiro, mas que valorizam o diploma, tendem a se confundir com os que foram apenas pelo dinheiro, reforçados ideologicamente pelos que dependem da bolsa para chegar à escola e voltar.

Tudo que acontece depende, então, da bolsa, o valor da nota dos trabalhos e das provas vira o argumento mais fraco, estando totalmente subordinado a "se fizer isso, vou receber, ou não?" Os salários dos professores são interpretados como bolsas, arrasando com os sentidos que estas teriam conforme a ideologia mestra da assistência social. Paulatinamente, a bolsa vira um sistema de vingança social, exigida pelos alunos porque os políticos estão sempre roubando (e não porque eles estão ali, estudando como deveriam - os que estão). Desde o início surgem os alunos que querem fazer vários acordos para receber sem cumprir totalmente os pré-requisitos do curso, e, como esses sistemas de serviço raramente (ou nunca) funcionam adequadamente, como a política depende dessa arrumação de acordos a cada situação específica e como um programa que tenta resgatar gente que vive parcialmente fora do alcance do Estado não funciona agindo como se todas as leis do Estado se aplicassem in loco, esses pequenos acordos tendem a acontecer. Refiro-me aqui a micromudanças, argumentativamente necessárias, mas que geram uma bola de neve retórica: abrem o precedente da exceção.

Como em qualquer caso de defesa da própria causa, todos os alunos vão se achar na razão de arregaçar essa exceção até que começam a exigir a bolsa com o descumprimento dos maiores requisitos. Fato importante, mesmo que não precisem, alguns beneficiados tentam fazer isso logo de início, e às vezes passam a mentir que conseguiram, mesmo que não tenham tido êxito algum ou que precisem distorcer um acordo que, na verdade, não envolve mudar as regras, apenas usar outras que a média dos beneficiados não conhecia. Esses corruptos são bastante raros, mas geram a difícil luta para que uma mentira não se espalhe, sendo que os professores administradores têm ainda de descobrir que ela está correndo. Observe-se também como esse comportamento está longe de ser restrito a alguma classe social.

Por todas essas vias, o assistencialismo tenta dominar as relações, mesmo que nenhum político faça tramoia alguma nem tire qualquer lucro eleitoral. É óbvio que essas duas distorções políticas não podem ser descartadas, e equivalem a jogar gasolina em incêndio, mas, mesmo sem um político para piorar a situação, o incêndio já está lá. De fato, a distorção da bolsa se torna tão poderosa que uma das coisas que mais irrita os beneficiados é não receber por não cumprirem algo que era exigido deles como pré-requisito mínimo. Eles se sentem tão roubados em não receber o benefício direito, ou algum outro elemento prometido e não cumprido - que sempre há -, que uma falha deles próprios os incendeia com mais força contra os pré-requisitos sem os quais a bolsa seria assistencialismo escancarado.

Essa bolsa, distorcida, tornada carro-chefe de todos os elementos estruturais do programa, passa a mandar também na evasão. Ou seja, aquilo que seria uma ajuda de custos para manter o aluno estudando e indo na escola, além de atraí-lo para os estudos, termina por comandar seu abandono escolar. Aliás, caso o beneficiado tenha dificuldade em cumprir as exigências do programa, a representação disso na falta da bolsa, que outros conseguiram receber, reforça sua angústia, rebaixa ainda mais sua auto-estima institucional e tende a fazê-lo abandonar o programa, não a tentar mudar a situação para conseguir receber o dinheiro. Eu concordo que tudo que escrevi neste parágrafo forma, em geral, desculpas de pessoas que racionalizam o próprio abandono, a própria falta de vontade para estar ali, mas mudar esse tipo de racionalização, essa cultura, faz parte do objetivo desses programas. Uma das razões de existirem bolsas-qualquer-coisa é que os beneficiados aprendam e queiram participar do Estado, procurem argumentos para fazer parte dele, não para abandoná-lo de vez, e a bolsa não ajuda nesse sentido. Ela não contribui para que ninguém pense que vale a pena ter uma relação com a institucionalidade, a legalidade ou, pelo menos, a educação. Os prazos cada vez mais curtos para que se dê um diploma no Brasil não deixam de afetar esses programas e também não ajudam para que se mude essa cultura contrária à educação.

Enfim, por que a bolsa? Ela atrai bastante gente, sim, o que serve para que partidos digam que fizeram isso e isso, beneficiando tantas mil pessoas, mas isso é apenas mentira. Porque milhares de pessoas vêm atrás de uma bolsa, não é verdade que mais de 200 tenham resistido aos pré-requisitos por mais que três meses, e as dezenas que concluem, se o programa é levado de forma honesta, são pessoas que não estão (ou aprenderam a não estar) ali por causa do dinheiro. Às vezes eles até pensam que dependem, e a bolsa pode garantir-lhes certa dignidade, mas elas dão um jeito se o dinheiro não vem, logo (por mais que eu valorize dignidade), elas seguem estudando porque querem algo além da bolsa (ainda que não saibam disso).

Acredito que seria o caso de se oferecer um programa com todos os benefícios, menos com a bolsa, como um experimento para se saber se, a médio prazo, o número de pessoas beneficiadas e o lucro cultural não são maiores. Se isso não atrairia mais as pessoas que querem um diploma ou conhecimento, capazes de aguentar o tranco pelo estudo. Outro benefício diria respeito às pessoas não frequentam esses programas por medo de outras que frequentam. Talvez a bolsa esteja atraindo mais quem faz menos por merecer. Por outro lado, sou a favor da ideia de que é melhor a pessoa receber um pouquinho para estudar do que receber um pouquinho por um trabalho irregular que não lhe permite futuro algum, então não acho que o sistema de bolsas deveria ser abolido ainda, considerando estritamente o contexto brasileiro.

Sei que isso afetaria diretamente um argumento que se apresenta às vezes, o de se aquecer a economia por essas pequenas chaminhas entre muitos trabalhadores e famílias pobres, em vez de tentar deixar poucos ricos mais ricos; o que não sei é o efeito que isso realmente tem. Até onde posso ver, o maior resultado da bolsa não é fomentar o consumo, mas o consumismo, o que também é bom no sentido econômico, apesar dos pesares culturais. De qualquer forma, seria interessante um programa que tentasse mostrar, ideológica e estruturalmente, que a educação não permite se ganhar mais com a mesma vida que sempre se teve, mas sim com mais esforço, um tipo diferente de esforço, que é mais valorizado socialmente, mas que não envolve deitar nas cordas ou ganhar cada vez mais fazendo menos, postura a que se tenta adequar o sistema de bolsa e que se tenta repetir depois que o programa acaba.

Apenas para ser bem claro: as bolsas são distorcidas para obedecer uma lógica de favoritismo e assistencialismo de modo que o estudo seja o de menos em programas de ensino. A supressão da bolsa, com a manutenção dos outros benefícios, poderia dar espaço para que os professores trabalhassem o estudo e o conhecimento como valores sem que a própria estrutura do programa provocasse a sensação contrária. Pelo que vejo, o estudo só funciona (o conhecimento só fica) se serve de abertura a um mundo diferente do que se conhece, o que inclui as relações sociais a que temos acesso. Como as coisas estão, a bolsa, em vez de ser um empurrão nesse sentido, termina por ser uma âncora cultural para que o pobre siga (também culturalmente) exatamente onde está, mas figure melhor nas estatísticas e sirva para propaganda eleitoral - atualmente, mesmo para candidatos opositores.

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