sexta-feira, 9 de julho de 2010

Programa de governo - essa metamorfose ambulante

Este post é um elogio humilde (e ignorado) aos responsáveis pela campanha de Dilma e Serra. Parece-me que ambos esquivaram de uma possibilidade de escândalo linda com aquela história de o PT entregar o programa de governo errado no TSE. É claro que a final da Copa e o goleiro terrível têm grande potencial para o IBOPE, mas a gafe do PT não dava para menos, se bem trabalhada.

O que houve? Como foi bem noticiado, o PT entregou um programa muito mais combativo, doutrinário e com temas polêmicos ao TSE, documento assinado pela Dilma. Logo depois, eles trocaram o programa por outro documento, mais brando, sem temas complicados, que era verdadeiramente o oficial. A confusão indicou que Dilma assinou o programa sem ler. Foram apresentadas duas principais respostas para a confusão. Para a assinatura de Dilma e a entrega errada: todo ser humano falha. "Ops". Para os temas tratados (retirados) e para o tom do programa: o documento ainda está sendo debatido, e precisa ser arrumado conforme as posições de PC do B, PDT, PRB, PSC, PSB, PTC, PTN, PR e PMDB.

Como assim, cara-pálida?! A primeira desculpa não é importante, pois tanto ela não é novidade (independente da ingenuidade do leitor, acredito que tenha assistido pelo menos à última demonstração desse conhecido tipo de descaso, a matéria do CQC em que Mônica Iozzi apanha por mostrar a irresponsabilidade com que se assina documentos públicos) quanto é tributária da segunda desculpa. Ainda sobre a primeira, aliás, assinar um documento sem ler não significa ignorar totalmente o que o documento diz. Basta participar do debate, da formulação, e não se estar do lado do digitador e formatador. "Todo documento deve ser lido", eu sei, mas ainda acho que se exagerou e muito essa questão para se ocultar o problema da outra, a segunda resposta. Paremos, então, para analisar esta segunda.

Dizer que o texto vai ser retrabalhado e que precisa ainda equilibrar a posição de outros nove partidos é o mesmo que dizer "o programa de campanha não é o programa de governo". Se o programa entregue agora vai ser tão alterado assim, então vamos votar nos candidatos com base em que, exatamente? Na cor de cabelo fica difícil; a estabilidade da míngua de cabelos de Serra cofronta-se com a sempre surpreendente Dilma. O carisma de ambos também é de doer, bem como o senso de humor. Eu sei que a política federal é feita do dia-a-dia, da luta entre todos os políticos que estão em Brasília e seus contatos nas diferentes regiões, o que quer dizer que um presidente, ou mesmo seu partido, querer algo não é o mesmo que isso se concretizar (ao menos não numa democracia como, dizem, o Brasil). A política é mesmo um confronto diário entre uma série de vontades administradas e comunicadas conforme regras de Estado, o que significa que um plano de governo diz menos do que "o que o governo vai fazer". Mas isso tudo NÃO significa que não importa o que o governo quer ou diz querer fazer. Se eu posso entregar um programa de governo, depois trocar, depois revisar, depois reescrever, depois debater e alterar, e assim por diante, o documento que entreguei primeiro não tem valor nenhum. Nenhum, nenhum, nenhum. Tanto que a censura, o discurso intolerante sobre posturas liberais e a taxação de fortunas são parte importantíssima da postura política do PT que atualmente chega à mídia, ou seja, dos que são tão fortes lá no partido que conseguem se manifestar publicamente. Tirar isso de discussão do programa de governo, agora que se sabe que estava lá, numa versão praticamente finalizada, é gritar aos sete ventos que não se está pondo em pauta os temas que hoje definiriam uma reforma enorme no país e na discussão a respeito de como o Brasil deve ser governado para se tornar justo. É publicamente fugir da raia.

E por que estaria eu dando parabéns também ao pessoal do Serra, se foi o PT que escrachou que programas de governo nada significam, e que tal fato é aceito institucionalmente? Porque o Serra só atacou publicamente a gafe de se assinar o documento não lido, ainda que refira em algum momento certas propostas presentes no programa entregue na primeira vez. Ora, isso não foi só uma gafe, o maior problema não foi ela não ter lido! Dizer "Bah, que mancada, hein?" não é a reação adequada ao que aconteceu. Isso foi expor na mídia toda que o programa apresentado por um candidato é uma peça de campanha e só. Sei que vivemos hipocritamente como se a política não fosse tão corrupta como de fato achamos, e geralmente ressurge o discurso de que é preciso tentar fazer tudo direito, que dizer simplesmente que o Planalto Central é um amontoado de merda no centro do país é uma postura que não constrói nem resolve nada, mas, se é para tirar da cartola boa vontade política, essa possibilidade de alteração do documento é absurda, a essa altura do campeonato (até quando?). A mesma permissividade, no entanto, se estende ao Serra, que, por isso mesmo, não saiu gritando contra, apenas disse o óbvio do óbvio sobre o caso, tentando capitalizar um pouco de votos a mais em cima da questão, mas não demonstrando a indignação que impediria ele próprio de utilizar, alguma dia, a falta de responsabilidade entre "programa de campanha" e "programa de governo". A imprensa, aliás, foi na mesma direção, achando que era assunto para chistes jocosos, não para uma análise mais séria dos implícitos da situação.

A democracia brasileira é uma alucinação em massa, e eu, que gosto de arte e literatura, estou geralmente disposto a sonhar com meus conterrâneos, mas fica mais e mais difícil de participar desse escapismo chamado eleição quando meu humilde projeto de tese de Literatura conheceu limites éticos institucionais, e o programa de governo dos candidatos, não.

Nenhum comentário: