segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Matando o democrático

Algumas palavras deveriam morrer imediatamente; serem assassinadas e ponto. A palavra "democrática" é uma dessas. A democracia não deve, espero que não morra; ou, para os pessimistas, espero que continuemos brigando para ter mais e mais democracia, apesar de não haver um exemplo perfeito desse ideal...

Enfim, apesar do valor da democracia, chega desse termo. Ele virou bandeira, o que significa que desponta por todos os lados, nos discursos mais cotidianos e babacas, bem como tornando discursos importantes em coisas cotidianos e babacas também. Quando as pessoas querem que até uma fila de almoço seja organizada democraticamente (?!?!?) - "quem chegou primeiro" de repente é um critério muito autoritário - é porque a palavra chegou num ponto em que até se um político exigir que se ataque alguma infração à democracia, o discurso dele parece mais idiota simplesmente por ter usado a palavra, tão desgastada em pequenas besteiras e muita mentira.

Claro que o mais cansativo é que a palavra costuma ser usada de duas formas idiotas: para dizer outra coisa, que não necessariamente é democrática por excelência, ou para fundar a democracia dentro da democracia.

As duas coisas podem ser exemplificadas facilmente em qualquer escola.

Quando, por exemplo, um grupo de professores está insatisfeito com qualquer coisa, por menor que seja, ataca a direção ou o que for de autoritária, fechada, nazista ou qualquer outro desses termos que atualmente já perderam quase todo o sentido também. Quer-se uma decisão democrática a respeito do tema! Detalhe: direção, por exemplo, é um cargo decidido democraticamente (no Rio Grande do Sul e na maioria do Brasil), por comunidade e pessoal da escola. Trata-se de uma escolha democrática, mas o sistema da escola é justamente ter alguém eleito nesse cargo para que ele cumpra seu dever enquanto os outros profissionais cuidam do resto. Chama-se "representação", e é exatamente o que acontece no nosso sistema político democrático! Quando a presidente faz uma decisão: ela não precisa perguntar cada coisinha para o povo, ela foi eleita para tomar essas decisões. Os eleitores podem intervir, reclamar, mas nada disso indica que ela tomar decisões executivas seja um insulto à democracia.

Há uma coisa que as pessoas esquecem: a democracia pode ser, e costuma ser, representativa. Viver numa democracia não é puxar voto sempre que se quer pintar ou não um meio-fio! Quando se acha que se deve realmente discutir isso, e todos os cargos envolvidos devem parar para contar votos da população inteira em vez de tomar suas decisões (obviamente com transparência), os termos "escolhas democráticas" estão sendo usados para o segundo caso que referi: fundar o "democrático" dentro da democracia, porque se está confundindo "pessoa eleita democraticamente cumprir seu papel" com ditadura!

Já o primeiro caso, de se usar "democrático" para dizer outra coisa que não é democracia, acontece em quase todo discurso sobre escolas. Quer-se uma escola democrática! Pois bem, (1) o que isso quer dizer, e (2) isso é realmente o que se quer?

Uma "escola democrática" nunca é o que se quer dizer com a expressão, porque ela seria redundante por um lado, ou inadequada por outro. Como disse, os cargos são eleitos, em algumas escolas todos eles são eleitos. Estou obviamente considerando escolas públicas, únicas que precisam responder a essas agendas.

Mas, digamos que as pessoas quisessem o exagero disso, que realmente não só os cargos de função gratificada, mas até os professores fossem eleitos. Por quem? Pelo poder público? Já o foram, através de concurso. Pela comunidade? De que forma? Por que critérios? Comunidades geralmente analfabetas ou sem letramento são mesmo quem queremos que escolha professores com o dever de formar seus filhos exatamente nisso?

Não estou dizendo que eles não podem tomar decisões importantíssimas a respeito de si, nem que, se o analfabetismo fosse mesmo como diz o governo, as escolhas seriam melhores. Mas (1) o analfabetismo não pode ser ignorado nisso, e (2) segue o problema de que governo algum pode tomar decisões de base, como Educação, conforme o gosto de cada comunidade, distante de qualquer projeto ou planejamento dele.

Agora, saindo um pouco do absurdo completo, quando se fala em democracia na escola se quer participação, especialmente dos alunos. Pois bem, aceitando essa proposta, em si bem complicada, a democracia é mesmo o melhor modelo para isso? Queremos que todos os alunos tenham o mesmo peso de voto que funcionários, professores, diretores etc, do papel higiênico ao livro didático? Eles estão preparados para esse julgamento e essa responsabilidade? Eles podem decidir tudo sobre uma escola, em pé de igualdade com os adultos, sem quase conhecer nada fora de suas comunidades, além de umas páginas redundantes de facebook e as bandas da moda, e tendo apenas alguma noção de leitura e interpretação?

As escolas que conseguem manter máxima participação dos alunos são escolas pequenas, com MUITO pessoal, geralmente particulares, geralmente muito caras. Algumas públicas tentam imitar esses modelos, não sei com que sucesso, mas sei que se tratam de aproximações...

O que se quer com a escola democrática, de fato, é uma escola em que a comunidade participe e os alunos tomem responsabilidade a respeito de algumas coisas, especialmente para terem cuidado com a escola. Pois bem, é possível participar de algo sem mandar na estrutura, até sem voto direto para nada.

Quer-se mesmo é que os alunos tenham algum poder sobre o que acontece e reajam construtivamente a abusos. Ora, uma comunidade em que o poder só pode ser exercido se justificado a quem está sob tal poder é uma comunidade anarquista (da teoria anarquista, não do oba-oba). Isso significa que "democrático" é um termo tão errado para o que se exige da escola nesses casos que até "escola anarquista" seria termo mais correto. Espero que isso indique, mais que nada, as voltas esse pobre termo já deu!

Quando uma palavra é uma bandeira, e só uma bandeira, é simplesmente triste lê-la e ouvi-la para todos os lados. Ela já não comunica nada, a não ser mentira e distorção. Mas não é por serem falsas que as palavras morrem...

domingo, 4 de novembro de 2012

Internetês como analfabetismo

É verdade que o internetês tem sua graça, seu estilo, suas potencialidades, até poéticas - se quiserem. E é verdade que é possível escrever internetês e saber escrever conforme a Gramática Normativa ao mesmo tempo.

Também é verdade que as duas afirmações, como todas as defesas ideológicas do que é obviamente um problema, referem-se às exceções das exceções.

Praticamente não se usa o internetês para se fazer firulas que não se pudessem fazer com a Gramática - nada dessa poesia cotidiana e espontânea com que sempre se sonha; quase ninguém sabia escrever conforme a Gramática já quando ela só competia com uma Norma Culta, sobre a qual tinha extremo poder, quem precisa da Gramática agora, que existe um campo livre de todo e qualquer domínio dela?

O problema do internetês nem é, aliás, seus potenciais, o problema é do que ele é sintoma. Observe-se o que se escreve na internet, particularmente o que pessoas com menos de 20 (para ser mais extremo) escrevem, e compare-se isso a textos até o fim da Idade Média. O internetês é a escrita de uma cultura oral.

Nossas regras mais cotidianas, como pontuação, separação de palavras, uso de minúsculas e maiúsculas, vêm de problemas que as cópias de textos foram gerando conforme se perdia noção do contexto original (em muitos casos, tratava-se de uma defasagem de séculos). É realmente possível escrever quase sem regras, quando o texto é praticamente uma anotação para servir como apoio à fala, quando as duas pessoas que se comunicam compartilham de quase todas as referências em questão, quando todos sabem exatamente os mínimos detalhes do contexto relevante ao texto. Soma-se a isso o clichê e a frase-feita.

No momento em que o texto passa a ser útil por mais que um dia, ou seja, no momento em que a tecnologia da escrita passa a ter algum valor de acordo com todo o seu poder, esse texto de mera anotação moral passa a não satisfazer mais. E o internetês é só esse texto. Muito pouco dele pretende ser útil por mais que um segundo.

O único detalhe é que escrever assim é a única forma reconhecidamente necessária para uma multidão de gente. Assim, a famosa língua que brota suas regras das necessidades de comunicação em grupo, sem um poder autoritário por trás como é o caso da Gramática Normativa, não gera o estilo rico, delicado e bonito dos sonhos de um Marcos Bagno (em que ele inconscientemente só parece supor pessoas minimamente treinadas na língua culta como ele próprio), mas sim um texto tão pobre quanto possível, tão isolado quanto possível. As riquezas que as novas ferramentas permitem não entram em uso sem, como no caso da Gramática, o poder de algumas pessoas muito talentosas, tradicionalmente chamadas de poetas. O detalhe é que esses poetas não podem afetar o internetês da mesma forma, porque seus usos e estilos não podem ser ensinados nem passados adiante; isso dependeria de um sistema de regras e controle, como na tão temida e (blergh) adulta Gramática.

Dessa forma, só o que resta são pequenas firulas que só parecem grande coisa a uma leitura de quem não tem noção tanto das capacidades da língua quanto de reconhecer os trejeitos da fala em toda suposta novidade do internetês. E os motivos não são misteriosos: uma sociedade de cultura puramente oral é uma sociedade analfabeta; uma sociedade analfabeta só tem cultura oral.