segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Dúvidas ateias do cotidiano

Ainda acho estranho quando alguém, numa enorme cidade, dentro de um prédio com ar condicionado, caminhando sobre uma esteira elétrica, usando roupas especificamente planejadas para exercícios, diz que Deus sabia o que estava fazendo, portanto tudo dá certo (na saúde) se fazemos como Deus planejou.

Isso era um "argumento" para que as crianças mamassem até quando as mães tivessem leite (que eu saiba, se a mãe realmente não quiser parar, isso pode ir muuuuuuuuito mais longe do que essa moça talvez imagine). Mães que não conseguem dar de mamar talvez devessem deixar seus filhos sem leite? Sei lá, mas o "argumento" era também para que, então, a criança não só parasse de mamar, mas não tomasse leite algum, nem de vaca, cabra ou o que fosse. Talvez Deus não tenha planejado nosso domínio sobre os outros animais - apesar de o Gênesis dar indicação contrária, que eu lembre. 

Acho que não recebi as instruções que ela tem. Só sei que, seguindo a natureza como mandamento divino, não estaríamos nunca em roupas planejadas para exercícios, sobre esteiras elétricas, dentro de prédios com ar condicionado, em uma grande cidade...

domingo, 26 de agosto de 2012

As inversões de valores invertidos

Uma daquelas expressões que chamam a minha atenção, para discordar, é "inversão de valores". Quando se diz que pessoas vivem conforme, experimentam, sofrem (ou sei lá o quê) uma inversão de valores, pressupõe-se uma de duas opções, as duas falsas.

A primeira, menos preocupante e menos representativa, creio, é a ideia de que certos valores existem por si e são constantes, que valores não mudam, nascem ou se transformam historicamente. Ou seja, existem determinados valores fixos e a única possibilidade é se acreditar neles ou em seus opostos, em anti-valores, que são corruptelas daqueles. Não existem valores diferentes, anteriores ou posteriores. 

Como disse, não acho que essa versão seja representativa pois poucas pessoas concordariam com isso posto de forma assim radical. Além disso, ao falar em "inversão de valores", as pessoas não querem ser tão filosóficas assim, ainda que a expressão seja bem pretensiosa. De qualquer forma, acho importante comentar o quanto essa ideia não faz sentido, mesmo sem apelar a pós-modernismo, pós-crítica ou qualquer outra forma filosófica de relativismo em hyperdrive.

Consideremos a ideia de que matar é errado. É preciso sempre definir, "matar quem?" É preciso defini-lo pois se sabe que matar só é errado, em cada cultura, quando se define o objeto do verbo. 

Supondo uma postura moral de facebook, muita gente acha hoje em dia que matar qualquer pessoa é errado. Bom, não é segredo que já foi bem ok matar negros, índios, gays, nazistas, comunistas, sei lá.
Sim, até aí estamos no "ok", mas já houve tempo (seguindo ainda só o tronco da cultura de quem acha que é errado matar qualquer um hoje) em que matar o estrangeiro, o cara da outra religião ou o cara da outra tribo não era só permissível, ou um crime menor. Era certo, reforçado, apoiado e, em alguns casos (como na racionalização teológica das Cruzadas), uma forma sagrada de se salvar a própria alma. Em muitas tribos, matar era parte importante da estrutura social, mesmo que não se estivesse em "guerra" - especialmente por rito de passagem ou de matrimônio. Talvez fosse melhor dizer que tais tribos viveram sempre em guerra, e o "viver em paz" é invenção um tanto civilizada (Saindo um pouco do problema do tempo, infelizmente sabemos que todas essas posturas ainda são possíveis hoje.)

Se quiserem pensar de outra forma: houve um tempo antes da Declaração dos Direitos do Homem, um tempo antes do ágape, um tempo antes do "Não matarás (hebreu fiel)". Todos os valores que conhecemos são históricos, portanto nenhum pode se vangloriar de ser eterno ou onipresente (o que é diferente de dizer que alguns não mereçam ser universalizados).

Então, não existem uns poucos valores reais e estanques, os quais vivem ou subvertem e deu. Existem valores, com um plural reforçado, e aquilo que discorda do nosso valor pode ser, sim, um valor também. A questão é que a validade do valor é relativa. ATENÇÃO: isso não quer dizer que qualquer opinião é válida, que qualquer princípio é um valor, nem que todos os valores são adequados para qualquer sociedade. Quer dizer só o que eu disse: sociedades diferentes podem discordar sobre que valores são válidos, verdadeiros ou melhores.

A segunda forma, mais comum, de se pensar a "inversão de valores" é supor que os valores em questão são os "nossos". É claro que os valores mudaram na história, mas o que interessa é o que reconhecemos como valores hoje (ignorando culturas distantes). Bom, para quem não notou, nossa sociedade não tem um bloco de valores comuns. Talvez existam outros recortes possíveis, mas eu posso atestar que separações econômicas, particularmente as que "coincidem" com separações geográficas, fomentam valores diferentes. 

É errado (porque falho) pensar que uma pessoa que vive na mesma cidade que outra herda o mesmo tronco de valores comuns. Os valores que estamos acostumados a ver como universais não têm necessariamente precedência na vida de todo o mundo, nem estão na infância de jovens que crescem e "os invertem". Esses jovens simplesmente aprenderam valores diferentes, para uma vida diferente, a partir de histórias e mitos diferentes, a fim de sobreviver da forma que seus pais ou amigos estão sobrevivendo.

Nada disso significa, também, que valores não possam coincidir entre culturas, portanto entre comunidades diferentes de uma mesma cidade. Também não significa que meios de comunicação de massa não tenham oferecido pelo menos algum contato que possibilite diálogo entre as diferentes comunidades, num movimento constante. 

No entanto, é preciso atentar para o fato de que valores diversos também podem se vestir de forma parecida. Algo parecido com uma foto da Gisele Bündchen ser vista como motivo para consumo por razões diferentes, entre mulheres de classes muito distantes. O mesmo é verdade em relação à ideia de que a família é importante, ou à de que homens devem defender suas namoradas e esposas. Cada cultura pode construir um ethos diferente partindo do mesmo clichê cultural.

Talvez possa haver inversão de valores quando falamos de uma geração para a seguinte, mas o resultado são também valores, ainda que novos. Não adianta muito pensar nos queridinhos valores nossos, que achamos serem corrompidos ou traídos por sei lá quem. Importa ver que, se estão sendo afrontados, sofrem o cerco de outros valores que têm também fortes motivos para existir, assim como os nossos.

Portanto, não adianta pressupor uma vantagem para nossa posição moral. O que importa é entender os motivos da existência dos valores que estão nos incomodando. Talvez isso nos indique que estivemos equivocados e que nossos valores na verdade não prestam tanto quanto achamos. Por outro lado, talvez nossos valores sejam corroborados pela experiência, talvez se comprovem inafiançáveis. Nesse caso, é melhor ainda entender por que outras pessoas pensam diferente de nós, caso queiramos resolver a situação, fazendo com que pensem como nós e aceitem nossa forma de entender o "certo" e o "errado".

sábado, 18 de agosto de 2012

Olímpicos, orai por nós

Brasileiros por acaso: melhor equipe de vôlei feminino do mundo.
Nunca tinha dado bola para as Olimpíadas no século XXI. Até 2000, acompanhei, mas elas pareciam ter perdido o sentido desde então, o que já vinha acontecendo, é verdade. Dei uma olhada nas tecnologias da China, que era a terrível superpotência emergente que iria destruir o mundo ocidental pelo mercado, conforme os analistas de então, mas o fiz mais acompanhando fotos da cerimônia de abertura que realmente assisindo à transmissão. E deu.

Brasileiro por acaso: 3o maior judoca do mundo.
Estranhamente, quando as deste ano começaram, senti vontade de acompanhar tudo o que pudesse. Passei então a ver sempre que podia, na Record ou nas TVs por assinatura alheias.

Não foi difícil entender de onde meu interesse repentino nos jogos, depois desses anos todos. Já faz uns 4 ou 5 anos que eu vivo praticamente de dar aula, mais do que qualquer outra coisa. Não vinha mais praticando esporte e todo o meu esforço de pesquisar ou escrever virou um rodapé sem remuneração. Não que eu recebesse para estudar antes, mas as exigências de sala de aula são muito maiores do que as de qualquer ganha-pão que eu tivesse antes, de modo que o que eu faço de graça perdeu muito terreno.

E o que significa dar aula? Significa mirar quase sempre no médio, no mais ou menos, no aceitável. Não estou falando sobre políticas inclusivas, cotas ou qualquer outra bandeira. Para um aluno deficiente, por exemplo, atingir a média pode ser um gigantesco desafio. Acontece que o aluno típico também pode e só precisa render muito abaixo de seu potencial. Não importa muito a opinião do professor a respeito; ele é requisitado a fazê-lo por quem o contrata, pelo menos quando é professor público. Existem exceções a isso, mas só ocorrem por mérito de algumas diretoras, localizadas em contextos que as permitam manter uma escola atípica.

Brasileira por acaso: maior judoca do mundo.
Dar aula é ser exigido ao máximo para exigir o mínimo. Podem frasear de forma diferente se quiserem, duvido que achem um argumento para que não seja só eufemismo para isso.
As Olimpíadas só podiam então atrair minha atenção: uma cultura de exigência máxima, de dedicação extrema, de superação, de desejo de perfeição, além de uma forma absolutamente elegante e honrada de lidar com a competição, uma capacidade de pensar o "vale a pena é competir" e de aceitar os acidentes do caminho que só quem se dedica ao máximo a algo consegue compreender e executar. Entender a derrota, não humilhar nem a si nem ao próximo, é muito mais fácil para quem tenta com toda a dedicação, não para quem se satisfaz sempre com pouco.

Logo, tanta gente (inclusive grande parte de nossos jornalistas e opinadores) que vive da cultura do "até aqui tá bom", "ah, deixa assim que ninguém ia fazer mais mesmo" etc., toda essa gente cai no pau por qualquer medalha de prata e adora exigir resultados dessas pessoas que dão um duro inimaginável. Aliás, sempre que se fala em equipe "brasileira", já está se fazendo um abuso exatamente nesse sentido. O que o Brasil faz para supor que é representado por essas pessoas apaixonadas e esforçadas? Não digo só o governo. Todo brasileiro é quem para se orgulhar em nome do Zanetti, que ganhou ouro nas argolas, a custa de fazer os próprios aparelhos e treinar como era impossível no Brasil até ele próprio criar o jeito? Em que universo bizarro o Brasil se veria espelhado num sujeito desses, como nação? 

Brasileiro por acaso: 2o maior boxeador do mundo.
É óbvio que o governo comete a mesma pressuposição ridícula. A Dilma foi lá tirar foto com os medalhistas. Ora, quem lhe deu estatura de julgar que apenas os medalhistas mereceriam foto com a presidente? Por que os outros não estavam lá também, que chegaram às Olimpíadas apesar de todos os nossos presidentes, incluindo a própria Dilma? E o que eles teriam a agradecer ao governo, tirando, talvez, exceções como o futebol (que de fato se explica por outras vias para se destacar)?

Brasileiros por acaso: 5o maior equipe de basquete do mundo.
As Olimpíadas são o oposto da cultura brasileira. Em nada a nação explica sua equipe trazer qualquer medalha, ou mesmo competir. No entanto, todos querem legislar sobre os competidores, julgando comportamentos, falas, decisões, esforços, inclusive comemorações. 

Foi o que fez André Barcinski, um "crítico da Folha" e produtor de TV, que acusou a não mais poder a equipe brasileira do vôlei feminino por ter rezado ao ganhar. Pressupunha ele, como deixou claro no texto, que a equipe representava o Brasil, o que já é muito problemático pelos motivos que acabo de expôr. Partindo disso, declara que foi um ato de intolerância religiosa rezar. Por quê? Porque estavam representando (sic) um país laico que, ao mesmo tempo (supõe ele), não aceitaria manifestações de nenhuma outra crença que não a cristã. 

Brasileiras por acaso: semifinalistas mundiais do nado sincronizado.
Três problemas graves: acha que alguém, nem que seja a nação supostamente levada às quadras, pode legislar sobre a comemoração do time quando as atletas manifestam as suas crenças religosas de forma pacífica (aliás, ele imagina que algumas o tenham feito por pressão, para não ficar deslocadas, baseado em... nada); acredita ainda que liberdade religosa é proibir a manifestação de crenças em todos os aspectos públicos da vida de todo cidadão; considera lógico, por fim, que nenhuma manifestação cristã pode ser permitida porque as outras também não seriam - ou seja, se não se aceita umbanda ou budismo, a solução é proibir o cristão e não permitir aqueles!

Por esse raciocínio, André é "libertário" proibindo um time que é posto abaixo de sua crítica apesar de tudo só porque ele é brasileiro e elas fizeram a bobagem de usar o próprio talento e esforço para representar um país que não as aceita nem apoia, e o time de vôlei todo é considerado "intolerante" porque agradeceu ao seu deus, baseado na crença de que ele teria algum mérito decisivo pela vitória. Eu não acredito em deus algum, mas devo dizer que a crença nele com certeza fez mais parte daquela vitória do que qualquer ato dos Andrés que povoam o Brasil. Se o time vai homenagear alguém, todos os Andrés só fariam bem ficando bem quietinhos nos seus cantos, com muito respeito. Eles têm a liberdade de falar besteiras, é verdade, mas continua sendo uma pena que ninguém com projeção também declarem suas besteiras aquilo que são.

sábado, 11 de agosto de 2012

Lugar para viver bem

O ponto de interrogação foi a melhor ideia!

Faz 2 anos que convivo mais diretamente com a análise de apartamentos, por milhares de motivos. (De um jeito ou de outro, todo o mundo quer se mudar?) A dificuldade de encontrar um espaço não só decente para se viver, mas bem distribuído, entra em choque com apartamentos ficcionais, especialmente com aqueles a que nos apegamos. Neles, mesmo que descontemos os planejamentos para o movimento da câmera, ainda encaramos um lugar agradável, pensado para pessoas, não apenas para respeitar ou distorcer a metragem. 

Em geral, a ficção não serve de parâmetro para o que acontece ou para o que é exigido de um profissional real. Professores, bombeiros, policias, jornalistas, políticos, arquitetos, piratas... poucos poderiam ser exemplos para ou da vida real.

Isso não quer dizer que alguns deles não possam se tornar ideais para os profissionais de fato, como de fato acontece. Até Indiana Jones foi e é herói de muitos historiadores. E quanto aos arquitetos implícitos? Será que os espaços de seriados e filmes não podiam servir de exemplo, pelo menos um pouco?!

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Teoria da Conspiração das Cotas

Aprovada na quarta-feira, no Senado, uma nova lei prevê que 50% das vagas de todas as universidades públicas serão dedicadas a "cotas sociais" (quem estudou todo o Ensino Médio em colégio público). Estas, por sua vez, devem ser preenchidas por negros, pardos(?!) e indígenas, no mínimo, conforme a proporção dessas populações em cada estado. Há ainda uma divisão dessas vagas segundo a renda da família  (calculada e verificada por sabe-se lá quem).

Dizem que a cereja desse bolinho - eles nem fariam vestibular ou Enem, sendo selecionados conforme a média de suas notas no Ensino Médio, ou seja, conforme a hipocrisia do governo de cada estado ou município - deve ser o único ponto cortado, para que a lei passe "mais facilmente" no fim do trâmite.

Ao mesmo tempo, o governo caga para a greve das federais e não enfrenta (nenhum governo o faz) o problema da educação de base de verdade (tomando apenas medidas mais ou menos efetivas, ou seja, no fim das contas, ineficazes).

Pois bem, isso é pra "qualquer um" de escola pública. Mas o que o governo planeja para quem se esforça pra valer? Pra quem consegue ler muito, estudar, se sacrificar até? Seu plano para esses estudantes parece ser também resolvido com cotas: ele paga para que cursem as faculdades particulares. Tanto estes quanto os alunos de escolas particulares (especialmente os mais estudiosos, é verdade) têm cada vez mais incentivo para ir para fora, procurar bolsas nos EUA ou na Europa, enfim, deixar o Brasil e ir aprender com os best of the best.

O que me lembra: população pobre ou menos estudiosa presa num Brasil analfabeto funcional e alunos dedicados ou com mais dinheiro estudando fora não é um quadro histórico no país? Dilma não é o fim de um processo para deixar o Brasil com cara nova, mas do jeitinho que sempre foi?