segunda-feira, 23 de julho de 2012

Instinto materno e violência

"E eis que surgiu o primeiro Tigre Retórico!"
Por séculos, fazem-nos crer, o instinto materno foi das coisas mais inquestionáveis da nossa cultura (no mínimo desde a primeira Revolução Industrial). Estava lá no topo da lista com a criação divina do universo e a existência de almas imortais em todo ser humano (restrito que fosse esse conceito em diferentes momentos históricos).

O feminismo ficou famoso por, entre outras coisas, questionar a factualidade desse instinto. Havia marcas óbvias de um constructo social particularmente útil, então, à odiada ordem patriarcal, e a ala mais radical do movimento negou completamente a existência de tal instinto para além de uma mera criação humana. Tornou-se de bom tom, em certos círculos, pressupor o absurdo do termo "instinto materno" sem discussão alguma, e mais uma divisão ideológica ficou bem firme para nossas bandeiras de senso comum.

Mas aí a ciência, reclamada como argumento contra tal instinto (a própria definição de "instinto" levou muitas porradas no século XX, se não desde o XIX), seguiu fazendo suas pesquisas e muitas coisas indicaram a validade de um instinto de proteção a favor do filho, particularmente no caso da mãe. Por exemplo: é óbvio que uma espécie em que os pais contribuem para o desenvolvimento do filhote (quando, como na nossa, o recém-nascido depende particularmente disso) tem vantagens de sobrevivência sobre concorrentes que não o façam - e é possível apoiar isso com certas observações e indicar o mesmo por certos cálculos. Além disso, a gestação cobra das mães de forma desigual em relação aos pais, que não são organicamente necessários para o bom desenvolvimento do feto. Se o macho vai embora, a criança se desenvolve. Se a fêmea expulsa o feto de seu útero, não se pode dizer o mesmo. Portanto o custo para a mãe é maior de início (sua alimentação está diretamente afetada por no mínimo alguns meses), o que tende a favorecer o desenvolvimento de muitas tendências comportamentais que batiam, em conjunto, com a tradicional ideia de instinto materno.

Ora, a ciência segue pesquisando, mas muitos problemas patriarcais herdados seguem existindo também. Nessas horas, como quando ela nega criacionismo ou astrologia, muita gente tende a lembrar dos erros da ciência para tentar se defender de uma possibilidade que lhe seja desagradável. Para além de defender a "verdade" e os ideais religiosos ou tradicionais, uns simplesmente não querem admitir que o instinto materno possa não existir enquanto outros não querem supor o contrário (lá por suas questões particulares e geralmente identitárias).

Bom, poucas coisas convencem mais a gente a duvidar de instintos maternos que ver zilhões de casos em que mulheres, livres da influência direta de drogas, abandonam seus filhos, maltratam-nos, permitem conscientemente abusos sexuais (ou realizam-nos) ou usam seus filhos unicamente como fonte de renda (seja por trabalho ou por Bolsa Família). Ou seja, nada como trabalhar em escola pública para duvidar de qualquer instinto universal feminino para defender a prole. Ao mesmo tempo, vi também muitas vezes amigas tendo filhos e nitidamente tudo mudando em seu comportamento e constituição. Essas mudanças pareceram graduais durante a gestação, mas havia algo particular a partir do parto. Muitas outras pessoas atestam o mesmo. Seria mesmo a realização de uma cultura que tão monoliticamente se apresentava em pessoas tão diferentes, criadas e experimentadas também de forma muito diversa? Como isso poderia se chocar com os outros casos que testemunho? Resolvi elocubrar com liberdade a respeito, como me cabe neste blog. 

Detalhes prévios importantes: é diferente dizer "instinto materno" de dizer "obrigatoriedade de ter filhos". Aliás, as duas ideias são mais diversas que conectadas. Também devo dizer que estou imaginando, em quase todo o texto, as situações de maior violência entre mãe e filho. Se algum termo meu parecer pesado, já sabem...

Quero começar indicando um contraponto em vista dos mesmos casos de violência. Não parece fácil afirmar que essas mães ignorem a diferença entre seus filhos e as outras crianças. 

Dirão então que essa diferença não depende de instintos, sendo talvez puramente cultural. O problema de se dizer isso, no entanto, é que implica uma contradição, a meu ver: elas tratam mal seus filhos, que são culturalmente sua responsabilidade e objeto de amor perfeito, mas, ao mesmo tempo, os diferenciam por efeito dessa mesma cultura? Mais: elas nem mesmo parecem ter aprendido que devam favorecer alguém. Elas não "substituíram" seus filhos, não dedicam carinho e amor a outra pessoa, pequena ou grande. Seus sentimentos "amorosos"-sexuais estão presentes, mas não inspiram palavras como "afeto" ou "carinho", ao menos em suas manifestações públicas. Pelo contrário, estão em relacionamentos dos mais destrutivos, para si e para os outros. Há certo aspecto de sobrevivência neles, mas justamente do tipo que provoca aquele antagonismo entre "sobreviver" e "viver". Nesse sentido, para quem diferencia "carinho" de "vontade de proteger", que é o sentido mais estrito de instinto materno, é verdade que essa vontade de proteger se manifesta em outras relações, mas me parece ser mais de competição. Uma mulher dessas defende "seu homem", por exemplo, com unhas e dentes, mas não é pelo bem do cara, é para a relação de mutualismo não se desfazer.

Mais do que isso, muitas expressam sentimento de culpa ou a justificativa de que a criança fica melhor sem elas (ainda que nada pudesse comprovar que estão se sacrificando como nos casos em que acreditamos - mesmo sem creditar valor ao argumento - que a pessoa realmente sinta o que está dizendo). Ao que parece, elas diferenciam seus filhos justamente pela violência, ou seja, se creem com maior direito de usar crianças que são "suas" do que crianças que sejam "dos outros". Quero dizer, elas parecem acreditar que quem nasce delas tem uma particularidade, mas a seleção se dá totalmente no campo da violência, não do amor, o que postula uma possibilidade um tanto terrível para reforçar a ideia de instinto materno.

Para pensar isso, é preciso considerar duas coisas sobre a possibilidade científica da teoria. Primeiro, o que é "instintivo" é percentual. Ou seja, a pessoa tende a determinada coisa, e é isso que significa dizer que ela "tem os genes" para aquilo. Segundo, essa tendência exige uma formação cultural. Nada geneticamente "determinado" se manifesta sem um caráter social, uma cultura que justamente formate e desenvolva (as duas coisas são indissociáveis) aquilo que o corpo individual tende a querer.

Por tudo isso, é possível pensar o seguinte: não é que mães que maltratem seus filhos não tenham uma seleção instinta em relação a eles, que os distinga do resto das crianças, mas que a cultura e a vida em que essa pessoa está imersa (talvez desde criança, talvez por um trauma muito forte) são tão violentas que sua seleção por aquela criança seja também de violência. Ou, posto de outra forma, somente assim, talvez, aquela mãe saiba ver uma figura afetiva. Visto assim, o meio ainda reforça a teoria do instinto materno por outra via: muitas mulheres adotam crianças alheias. Ou seja, mesmo vivendo em ambiente semelhante, parece que uma constituição um pouco diferente, a oferta de outros exemplos ou a sorte de não ter passado por uma destruição mais direta mantém uma vontade férrea e extremamente custosa para si de proteger crianças que são, então, criadas como filhos. Uma simples capacidade de transferência e empatia é veículo daquele mesmo amor materno que tanto se curte louvar diariamente em pequenas conversas de bar, sala, esquina, caixa...

Não sei nem poderia dizer que essa hipótese é verdadeira, ou quantos porcento essa ideia abarcaria, mas imaginem, se houver algum fundamento nessa linha de raciocínio, a gigantesca violência da cultura em que tal pessoa deveria viver. Imaginem também o desconforto social de se parar de isolar indivíduos com frases como "Como uma mãe pode tratar um filho assim?" ou "Eu não entendo uma coisa dessas. Que horror!". Suponham que tal quadro não fosse explicado por desvios "impensáveis" de uma ou outra, mas fosse visto sob a ótica de que elas vivem em comunidades de tamanha violência que um instinto de proteção natural estivsse assim distorcido, sem a necessidade de drogas, doenças mentais ou outras questões muito individuais (que obviamente são relevantes em certo casos) para explicar o quadro. Comunidades essas que existem entretecidas formando nossa sociedade, fazendo trocas constantes entre si, a ponto de não conseguirmos diferenciá-las muito bem, nem por claras separações econômicas e coisas tais. Que responsabilidade social implica a validade do instinto materno?

terça-feira, 17 de julho de 2012

Diversidade e ignorância sobre greves federais

Em reação a isso.

Que ignorância achar que "greve remunerada" é um conceito estapafúrdio, quando é a base mesma do direito de greve. Que ignorância achar que isso sustenta qualquer pessoa que "não queira trabalhar", que poderia automaticamente entrar em greve e receber seu salário. Que ignorância achar que a remuneração do grevista é automática, sem critério algum. Que ignorância não saber que o salário, se sustenta o trabalhador em greve, será integralmente descontado se o mesmo trabalhador não pagar por cada dia de greve depois, situação única da profissão de professor, (justamente esses "vagabundos" trabalham por todos os dias em que ganham salário, diferente de qualquer outra classe que possa fazer greve)! 

Que ignorância achar que a maioria dos professores (pior: que todos!) em greve estão na classe A!!!!! 

Que ignorância achar que os professores querem automática e necessariamente mais impostos, ou que isso é a única forma de se resolver os problemas dos institutos federais. Que ignorância achar que os professores querem unicamente melhores salários, ou mesmo que isso resuma a maior parte de suas reinvidações (que tal começar pelos prédios de aula literalmente desmoronando?). Que ignorância acreditar que os professores em greve não trazem outras formas de contribuição para suas faculdades ou institutos quando não estão em greve. Aliás, que ignorância não saber que vários deles seguem contribuindo para o investimento nos institutos e faculdades federais, bem como diretamente a seus alunos, durante a greve. Que ignorância crer numa dicotomia professor/funcionário público, assumindo ainda que a única forma de ser funcionário público é aquele senso comum de se atirar nas cordas e que a única forma de ser professor é o clássico mártir ético, que resolve de mãos nuas as incompetências de toda a estrutura que deveria lhe sustentar e que, contraditoriamente, só segue em pé por seus singulares esforços. Que ignorância achar adequado, benéfico ou aceitável reincidir nesses preconceitos e reforçá-los sem, pelo visto, o menor conhecimento de causa, sem nada saber sobre professores, aparentemente, para além dos lugares comuns de debates de esquina.

Quanta ignorância vinda de um sociológo, que andou estudando que sociedade para resumir dessa forma o quadro atual e aceitar tais clichês do senso comum como conceitos para um texto de jornal?

Quanta ignorância selada pelas únicas palavras sábias escritas na página: "Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo."

É preciso muita diversidade para caber tanta ignorância.

sábado, 14 de julho de 2012

Um cidadão a menos; menos que nada

Na semana passada eu passei por uma das experiências mais simbólicas da minha vida, de um tipo que confirmou minha visão de mundo de forma curiosa e particular. Devo dizer que odeio quando isso acontece, quando descubro que estou certo. Sei que tendemos a gostar de quando confirmamos nossas opiniões pelos fatos, a posteriori. Sentimos que somos muito espertos, em geral. Isso é verdade para mim também, em muitas áreas, mas particularmente ruim quando é minha filosofia de vida que se confirma.

Nesse caso, eu pago o preço de ser tão pessimista. Devido ao meu pessimismo, minha visão de mundo se confirmar significa, necessariamente, que algo ruim é comprovado.

No caso, eu fui a um posto de saúde pedir a vacina contra gripe H1N1. Tinha evitado ir por tanto tempo porque eu tenho apenas uma característica de risco (doença respiratória crônica) e nenhuma pessoa em meus círculos estava nem com suspeita da gripe. Sei que o status quo é pular em qualquer oportunidade de se identificar com o proverbial Outro, mas às vezes devemos nos identificar com o menos proverbial Mesmo. Por isso, em vez de aproveitar a oportunidade de me reconhecer como de um grupo de risco, resolvi deixar a vacina para crianças, idosos, grávidas etc., simplesmente seguindo com minha vida.

No entanto, na semana passada um aluno da minha escola foi diagnosticado com a doença. Achei que era hora de parar de brincar com a coisa e ir lá me prevenir, além de me defender de espalhar o vírus, caso o estivesse já carregando de qualquer forma, assim potencialmente espalhando para entes queridos e alunos. Como as mortes pela gripe têm aumentado, achei óbvio que a campanha ainda seguiria, pelo menos, por um tempo durante o inverno.

Eis que chego ao posto de saúde e pergunto onde poderia tomar a vacina, nem entrando no mérito ainda se seria aceito para a inoculação ou não. A resposta do senhor do balcão de informações: "Não temos mais, só no ano que vem".

Achei que tinha ouvido mal e perguntei de novo: "Ano que vem?" Resposta: "Sim, o governo já cumpriu a meta".

Essa frase me soou poderosíssima. Não ouvi apenas essa resposta, mas muitas outras ao mesmo tempo, como "o governo está satisfeito com as mortes evitadas e não se preocupa com as 'poucas' recentes e por vir"; "o governo está tranquilo com quem salvou e agora vai mostrar o número de mortos com orgulho de quem impediu catástrofe realmente significativa"; e assim por diante.

Ao me dar essa resposta, o sujeito me apontou a carta da prefeitura falando a respeito. Li nela, por cima, os números orgulhosos de quantas pessoas foram vacinadas, sem entrar em nenhum mérito comparativo com outros anos ou com o número de mortos. A carta em nada melhorou o efeito daquela resposta para mim. 

Além de professores não serem considerados grupo de risco, o que já me soava bizarro já que lidam diária e intimamente com diversos grupos de risco, parecia que o governo queria confirmar que não se importava em nada com pessoas como eu. Em sua tática de combate à gripe, eu sou desimportante. 

Minha vida não é estratégica para ele. Eu já suspeitava.

terça-feira, 10 de julho de 2012

A sagrada mão privada para limpar a merda pública

Leiam isto antes.

Agora me respondam: que merda é essa?!

Isso é que é comprar discurso do governo! A única opção para resolver a Educação é aumentar impostos ou tirar dinheiro de outras áreas da própria Educação ou da Saúde?! Quer dizer que o governo, em todo o resto, está gastando muito bem? E, óbvio, é culpa dos professores que o governo não fiscalize os gastos dos reitores?

Claro, acabar com  o ensino público é a melhor solução! Afinal, as faculdades privadas são direcionadas por determinações ideológicas voltadas ao povo (por pior que isso possa ser executada na pública, pelo menos está em disputa franca sempre) e escutam exigências públicas, elas sim cumprem todos os deveres legais mesmo que não sejam fiscalizadas. Suas bibliotecas são abertas para todos e seus seguranças nunca impediriam certo "tipo de gente" de entrar em suas dependências.

Mas estou me perdendo em bobagens. O problema não é o que uma faculdade privada faz, mas sim que a resposta para o problema de qualquer instituição pública seja sempre acabar com esse seu caráter. Ou seja, qualquer problema não deve ser resolvido pelo governo, mas descartado ou jogado nas mãos da iniciativa privada. Por que a resposta para a irresponsabilidade do governo é sempre tirar mais responsabilidades dele?! 

Pior ainda, como sempre, SE fosse possível o governo acabar com o ensino público superior, ele ainda arrumaria a faculdade para entregá-la funcionando à mão privada (milagrosamente achando soluções para o que "não podia ser resolvido" antes) e os impostos (DÃ!) não abaixariam!

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Um aumento para todos!

A maioria dos professores não gosta de alguns aspectos da profissão e odeia profundamente pelo menos um deles (podemos incluir, é claro, colegas como "aspectos da profissão"). Para fugir de seu mal, seja lá o que for, os escapismos escolhidos pelos professores são vários, mas quase sempre envolvem consumo. O stress da pedagogia é resolvido por meio de, especialmente, esmalte, botas, álcool, livros, filmes, viagens, cães ou gatos e os produtos para alimentar e mimar estes últimos. Devemos acrescentar a tudo isso seus gastos com saúde, desde vacinação e remédios para as constantes pequenas doenças até, claro, a terapia psicológica ou psiquiátrica. 

Como existem precisamente zilhões de professores no Brasil, e como o stress de dar aulas, pelo visto, só aumenta, os sofrimentos dos profissionais da educação representam um consumo poderosíssimo. Esmaltes e livros podem, em geral, ser conseguidos por bons preços, mas mais cedo ou mais tarde o gasto com álcool, viagens ou animais de estimação tende ao exagero.

Tudo isso indica, portanto, que uma poderosa maneira de aquecer o terceiro setor é aumentar o salário dos professores. Menciono aqui apenas para registrar a ideia...

domingo, 8 de julho de 2012

Interpreta pra mim?

Tem sido ainda uma experiência curiosa ver jovens (nesse caso, pessoas com menos de 17 anos) assistindo a filmes. Em primeiro lugar, vê-se que estão bem acostumados aos preceitos dos produtores e, noutra direção, que estes têm razão: a ação é a única coisa que concentra. A agitação e o barulho é o fundamental. As falas não ganham grande respeito ou interesse, o que faz pensar que Wall-e ter feito sucesso não indica que, como antigamente, ainda é possível prender sem o apelo a diálogos, mas sim que o que os personagens têm a dizer recebe tão pouca atenção nos filmes em geral que se pode mesmo tirar todo tipo de expressão verbal do filme. Isso é, aparentemente, o supérfluo. 

Por outro lado, as expressões faciais lhes dizem muito! Disney, Pixar e Dreamworks têm mesmo razão em apostar tanto nos olhares e na linguagem corporal extremamente didática de seus personagens. O entendimento com meias-palavras é bem mais expressivo que o diálogo - talvez combinando com o que eu disse no parágrafo anterior, pois ainda são, em certo sentido, ação, movimento.

Mesmo assim, olhares e gestos podem ser interpretados de formas muito diferentes e, como palavras e grandes partes do filmes são ignoradas em prol de celulares, comentários, lembranças ou coisas do tipo, muito do essencial do filme é perdido. Além disso, o detalhe pode se destacar por uma bobagem qualquer (como criticar a cor do vestido da fulana, ou o fato de que o personagem NÃO resolveu algo com porrada), mas isso não é interpretado com coerência em relação ao conjunto. Não há atenção suficiente para se pegar esse conjunto, por isso os pedidos para que a pessoa do lado (colega, amigo, parente, professor...), qualquer pessoa do lado, explique o que está acontecendo realmente (além do que vai acontecer, claro) são incessantes. 

Devo dizer que isso até contribui com o senso comum atual de que mulheres tendem à multitarefa. Vejo gurias confirmando mais o que estão pensando ou não entendendo bem, porque pulam entre o filme e a realidade constantemente. Os caras tendem a pretar bastante atenção ou ignorar o filme completamente. Há meios-termos em todos os sexos - a natureza, desde bem antes do politicamente correto, paga seu tributo às cotas de alteridade -, mas a tendência a esse padrão me parece bastante interessante. Seja um macho uma fêmea querendo lidar com várias coisas ao mesmo tempo, no entanto, (adolescentes não parecem saber a diferença entre escutar ou olhar e "prestar atenção") a multitarefa naufraga quase sempre. Apenas "quase", porque há sempre exceções, como bem se sabe. Às vezes inclusive o sujeito até se interessa tanto pelo filme que assiste tudo e descobre-se pronto para entendê-lo (interpretá-lo). Mesmo assim, algumas confirmações tendem a ser pedidas.

De qualquer forma, até a adolescência, raras parecem ser as pessoas que entendem realmente a trama principal - e uma que outra paralela, quem sabe? - porque simplesmente não há atenção mantida por tempo suficiente para tal. Curiosamente, esse empecilhos para a interpretação em nada batem com a falta de espírito crítico que tanto se cola (em campanhas ideológicas) à capacidade de interpretação. É claro que uma crítica sem interpretação é infértil em muitos sentidos, mas quero chamar atenção para o fato de que a dificuldade de interpretação, seja qual for, não indica um espírito passivo ao conteúdo real ou pressuposto daquilo que é visto, como geralmente se quer pregar quando se diz que é preciso ensinar a população a interpretar para "ter espírito crítico", o que significa votar na mesma bandeira que a pessoa fazendo o alarde. Como vou comentar, é verdade que o espírito crítico em questão não é o ideal, mas ele está longe de indicar passividade e, mesmo que equivocado, não tende a ser muito apefeiçoado pela vida.

Depois da espécie de crença pétrea em bem e mal, certo e errado, a que se tende em determinada fase da infância (particularmente, não apenas de que isso existe mas de que se sabe exatamente quando estamos em frente a um ou outro), caminha-se para a adolescência, fase em que o voluntarismo infantil sobrevive, mas (porque já se sabe mais do que se sabia poucos anos antes) uma sensação de extremo conhecimento do mundo e da vida conquista a mente humana. O adolescente tende a um cálculo assustadoramente errado da cultura que recebe, interpretando "amor", "ódio", "vingança", "decepção", "nostalgia" e muitos outros sentimentos e conceitos cantados com louvor e ânimo por todos os lados restritamente conforme sua parca experiência, que lhe parece tão grande por ele já ter perspectiva para entender o quanto o horizonte das crianças é pequeno. Por contraste consigo mesmo, um adolescente parece ter pulado, em dois anos, de Sam Gamgee para Gandalf. Por isso mesmo, se julga mais conhecedor do que é. Por isso mesmo, de novo, acha que sabe do que sua cultura está falando. E assim sai errando cada passo e julgamento que dá, com exceção, é claro, daquilo que realmente entendeu por experiência própria, não por "herança discursiva", digamos.

Acima de tudo, é a partir da adolescência que conseguimos confundir o que queremos com termos como "justiça", "lei", "correção", "adequação", "respeito", entre outros, e fazemos tudo com alguma capacidade retórica. Dessa forma, nosso mundo autocentrado já passa a ter a possibilidade de, pela nossa palavra, passar por um descentrado, honesto, respeitoso, justo. Tudo que o filme, retalhado pela falta de atenção do espectador, apresentar e que, de alguma forma, contrarie o mundo ou interesse do jovem de qualquer forma, receberá uma crítica bastante sincera e enérgica. 

O objeto cultural em geral só será aceito nos termos em que ele confirme o que o jovem quer (espaço aqui para desejos inconscientes, é óbvio). De resto, apresenta-se espontaneamente o espírito crítico que tanto se deseja ver criado por educadores perfeitos que amam as crianças acima da própria vida, dispostos portanto a salvar a nação em troca de migalhas - ou seja, o espírito crítico como a postura que pressupõe a dúvida frente ao que se assiste e que coloca questões fortíssimas a tudo que lhe parece equivocado. 

Assim, não é preciso professores para isso; o adolescente é um animal extremamente "conservador", no sentido de desejar o seu conforto psicológico acima de tudo, portanto disposto a renegar tudo, esquerdista ou direitista, que o tire do lugar. Professores seriam necessários, talvez, para questionar esse espírito crítico, para provocar uma interpretação embasada e coerente, para mostrar que a coerência que interessa construtivamente é aquela que se pauta pelos elementos do que é analisado - não pelos nossos desejos, ou seja, que é preciso ser coerente com critérios lógicos ou objetivos de alguma forma, em vez de se ser coerente com o que queremos e ponto. (Professores, portanto, poderiam ser importantes para mostrar que muitas vezes o espírito crítico do aluno é o que está completamente equivocado, que ele ainda tem muito a aprender antes de negar tudo o que vê pela frente só porque quer, que é preciso escutar - postura aparentemente passiva - para se pensar como o outro a fim de poder questionar com razão, que o espírito crítico não é um valor se é infundado, autoelogioso e autocondescendente.)

Parece-me ficar claro, assim, que o humano tende a se manter adolescente pela vida afora. Não precisamos dos outros para sermos críticos, apenas de nossa própria cabeça. Precisamos dos outros, em geral, para entender que alguém pode ter razão além de nós mesmos e dos heróis que dizem aquilo em que queremos acreditar.