sábado, 31 de março de 2012

segunda-feira, 26 de março de 2012

A educação estadual e nosso querido maior jornal

Estando os professores estaduais em greve e sendo o Rio Grande do Sul o recordista em pior salário do Brasil, não foi ingenuamente que a Zero Hora publicou no final de semana que o estado é também o recordista em reprovação no Ensino Médio. É claro que o problema começa a se montar no Fundamental, mas estoura mesmo no Médio, responsabilidade central do estado, não dos municípios.

Foi, no entanto, com ingenuidade que a matéria foi escrita - ou estou subestimando o pessoal? Vejamos.

Dizia o jornal, "A cada ano, perto de 300 mil alunos são afetados por um dos mais graves problemas da educação gaúcha: o alto índice de reprovação."

O fraseamento não é feliz, pois identifica aquilo que serve justamente ao governo à custa da população, colocar a reprovação como problema grave, não a falta de educação que apenas em parte está referida pelo índice de repetência.

 Em primeiro lugar, muita gente passa sem saber metade do que seria satisfatório. Reprovação não é igual a falta de conhecimento, portanto. Além disso, outras questões, como faltas excessivas (pelos mais diversos motivos), provocam igualmente repetência. O mal social

Em segundo, o problema da repetência é, como indica bem a matéria, também um problema de "investimento" vazado, pois o dinheiro que o aluno custa ao estado até acabar abandonando a escola (resultado comum da repetência endêmica) é indiretamente dinheiro do povo, mas não é isso que preocupa a população. É o governo que vê as contas. A população em geral está mais preocupada com o efeito social da coisa que com a economia do governo, ainda que se possa criticar isso na opinião pública.

O crucial, no entanto, é que as medidas para mascarar a falta de educação (algumas já postas em prática) dão conta de diminuir a porcentagem da repetência sem que os alunos aprendam mais. Se o problema são números e estatísticas, subterfúgios dão conta. Se o problema central for a falta de educação do povo, a tragédia é bem mais embaixo e muito mais complicada de ser resolvida.

Além desse infeliz lead da matéria, quem a escreveu resolver dar voz a bobagens de quem está no governo e acabou não enquadrando o problema da greve, o que necessariamente faz pensar que o implícito que vimos no início estava errado e que também em relação a isso os jornalistas sofreram de ingenuidade ou má-fé. Adivinhem para qual destas estou apontando? Mas, leiam o resto se querem saber os indícios:

Eles deram voz, por exemplo, ao secretário estadual da Educação, Jose Clovis de Azevedo. Este afirma que a reforma do Ensino Médio, resistida por professores, mirava a solução desse problema. Faltou apenas verificar que essa reforma foi imposta goela abaixo de qualquer jeito, sem qualquer planejamento ou preparação adequados. Seria interessante lembrar também que não foram apenas os professores que se opuseram à reforma, que mais pareceu um plano para enfraquecer a educação do estado do que para fortalecê-la. O governo não foi capaz de informar satisfatoriamente a população interessada se esta estava redondamente enganada como o secretário acredita. Perdidos do que aconteceria no dia seguinte, os professores estaduais entraram nas escolas neste ano despreparados para encarar uma mudança estrutural confusa e de valor duvidoso. Era essa a forma para ajudar a resolver o problema da repetência?

Priscila Cruz, diretora-executiva do Todos pela Educação, comenta a cultura de "rigidez" que teria sobrevivido no Rio Grande do Sul, diferente dos outros estados. Aqui, como afirmam (a matéria não deixa claro quem), os professores ainda usariam a repetência como ferramenta pedagógica. Apenas um detalhe: essa informação é verdadeira também para professores de outros estados (não para uma minoria deles), e - para pisar nesta tecla - também sobreviveu só no Rio Grande um salário ínfimo para a educação estadual. Posso provar essa diferença de salário. Alguém prova nossa cultura tão diferente? Os jornalistas realmente tratam como se fosse a única possibilidade de explicar o índice. Que gente sem imaginação... e sem conhecimento sobre o problema.

Também veio com a questão de problema "cultural" a ex-secretária da Educação Mariza Abreu, afirmando que "A implantação dos ciclos em Porto Alegre não teve bons resultados, então ficou no inconsciente coletivo a impressão de que reprovar é melhor do que a aprovação automática." Além do uso bastante infeliz de "inconsciente coletivo", seria interessante ouvir a secretária falando sobre os benefícios da aprovação automática, sistema pelo qual os alunos não aprendem, não respeitam professores e escola, mas também não rodam. Ótimo! Muito melhor.

Por fim, fala-se que a repetência não ajuda em nada a nota do aluno. Seguindo no texto, no entanto, temos a sensação de que o "nada" é forçado, e os dados de base são bem engraçados. A conclusão vem de uma comparação a respeito de notas em matemática. Ou seja, uma entre tantas matérias do currículo, sendo que a separação entre matérias que rodam e as que não rodam não serve há já algum tempo, ao menos não para caracterizar o quadro todo. Justamente porque governo algum quer números "feios", um conjunto pesado de professores precisa rodar um aluno para que ele realmente fique no mesmo ano. Portanto, é bem possível que um aluno rode sendo bom em matemática, ou sendo ruim em todas as matérias, inclusive matemática, o que seria resultado de inúmeras dificuldades imagináveis, não necessariamente uma dificuldade com a matéria - por exemplo, completo desinteresse na educação formal, falta absoluta de estudo. 

Além disso, os números indicam que 1/4 dos alunos rodados se saem bem em matemática ("conforme os padrões esperados pelo estudo", não se animem). Por que eles foram bem? Que variáveis foram observadas? Todos os outros tinham problemas de aprendizagem em matemática? Não se sabe. Na retórica desses jornalistas, a porcetagem cai de 25% para "nada", e o que cada um dos "valores" representa sobre a realidade dos fatos não fica claro.

A matéria, enfim, é uma possibilidade para o pessoal do governo falar sobre a incompetência do próprio governo jogando a culpa nos professores: "nós fomos responsáveis pela educação no estado, que está uma merda, e isso é porque eles estão errados... ah, a gente manda neles, mas não tem culpa mesmo assim".

E onde os professores erraram mesmo? Não apoiaram a reforma quista pelo governo (não explicada na matéria), são culturalmente fracos em sua pedagogia, vítimas de um senso comum que os queridos secretários ainda não conseguiram iluminar e, implicitamente, sem moral para reclamar de salário. Afinal, não se acredita que a greve realmente não seja contexto para a matéria, não é? Acontece que a Zero não aproveitou para reclamar do vexame nacional do RS. Aproveitou, sim, para reforçar que essa gente não merece receber bem ou parar para reclamar disso: "os burrinhos ainda acham que repetência educa".

Pelo menos o governo do estado não está sozinho: nosso principal jornal também não dá a mínima para educação pública.

Matéria aqui.

terça-feira, 20 de março de 2012

Exposição e silêncio

Ainda acho curioso que o pior que se pode fazer a alguém que tenta chamar a atenção é chamar a atenção para o fato de que a pessoa a está tentando chamar.

Não se pode comentar o volume de alguém que ouve música estourando em local público (ou em qualquer lugar, na verdade), não se pode pedir uma queda de tom de um bêbado em êxtase, não se pode comentar o desespero de um decote exagerado - que se pode (e se é de fato convidado a) olhar. O importante é não falar, não comentar teoricamente o grito por atenção. A gente pode, no entanto, dar atenção; ou ignorar completamente. 

A solidão e a ânsia devem ser sentimentos basilares demais em nós. Reconhecê-los talvez seja aceitar uma exposição excessiva. Então uma pessoa pode até se expor. Só a insultaremos se, ironicamente, publicarmos o fato, falarmos o que todos sabem, apontar para o ser exposto não para paparicar, mas apenas para apontar a exposição. O exposto, então, sente o golpe que dava em si mesmo.

segunda-feira, 12 de março de 2012

De crucifixos, homossexuais e ateus: o problema da parcialidade

Faz quase uma semana que o Conselho de Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul determinou que símbolos religiosos fossem retirados das dependências do Tribunal. A decisão foi unânime e respondeu a um pedido de diferentes associações civis (umas ligadas à defesa do direito de homossexuais, outras à dos direitos das mulheres).

O processo levou de novembro do ano passado até agora para ter algum resultado. A decisão: cumprir o que foi pedido. Ana Naiara Malavolta, da Liga Brasileira de Lésbicas, deu a motivação mundana da coisa: o pedido foi uma resposta a diversos casos em que homossexuais foram impedidos de entrar em templos religiosos pelo Brasil. O problema reavivou a questão de "Por que essa religião que não aceita igualmente a todos e que é um entre outros credos do povo brasileiro vislumbra por sobre os ombros de juízes e desembargadores a cada decisão do Estado?" - Ok, coloquei uma certa cor, mas entenderam o problema.

O processo andou naturalmente com outra justificativa legal, o tema predileto da atualidade: a laicidade do Estado. Claudio Baldino Maciel, o desembargador relator do caso, lembrou que o Estado deve se distanciar igualmente de ambas as partes interessadas ao julgar. Colocar um símbolo religioso nos prédios e nas salas de decisão parece contradizer essa proposta - o "parece" aqui é meu, e o considero muito importante, mas vou demorar um pouco para retomar.

A argumentação do Estado laico fez o problema sair do front homoafetivo e recair nos ombros dos ateus - sim, até ancestrais associações entre comunismo e ateísmo foram evocadas, implicando que o apoio a Stalin, a defesa do aborto e o desejo de que se retirem de prédios públicos símbolos religiosos são a MESMÍSSIMA coisa. Ah, e os ateus são o grupo mau que quer tudo isso. Não vou discutir essa besteira (pelo menos não hoje), mas o problema do Estado laico me interessa, de qualquer forma, então vamos a ele.

Em primeiro lugar, o Estado não precisa falar em "laicidade" ou dizer que é "laico" na Constituição para sê-lo. Basta isolar-se de dependência ou associação com qualquer religião. O (agora) famoso artigo 19 da Constituição diz exatamente isso, particularmente no trecho proibindo "manter com eles [cultos religiosos] ou seus representantes relações de dependência ou aliança". Assim como proibir que um cidadão tire a vida do outro, ou garantir o direito de todos à vida, é proibir "assassinato" sem usar a palavra; não é preciso que a lei use o termo "laico" para defender esse tipo de Estado. Ponto. Aliás, a legislação brasileira faz de nosso país um caso particularmente claro de Estado laico. Quem quer checar, por favor, se vire.

"Aliança" é um termo complicado no artigo, mas não besta. Ele não quer dizer que o chefe de Estado não pode dar tapinhas nas costas do papa se visitado, ou rezar a um deus quando está triste, assustado ou agradecido.

Por outro lado, o artigo 19 estabelece que o governo não pode favorer qualquer religião em detrimento de outras, nem a todas elas em detrimento de quem não tem nenhuma. Ora, o que significa uma cruz em destaque na parede? Detalhe ornamental? Gosto pessoal? Ou reverência a Cristo, figura central (ou muito importante) de quase todo o monoteísmo atual? - Tal reverência é característica de religiões monoteístas, certo? Quem é monoteísta é religioso, concordam? Quem tem religião segue preceitos e/ou dogmas instituídos por uma fonte outra que o Estado, certo? Como é que se vai dizer que o crucifixo aqui não pode ser questionado com o argumento de que o Brasil é um Estado laico? Ele está justamente implicando um respeito a algo que lhe é externo, um símbolo religioso.

É nesse ponto que quero destacar o "parece" acusado antes. Um desembargador ateu não deve estar pensando no crucifixo nas suas costas quando faz alguma decisão profissional. No entanto, o crucifixo não deixa de provocar um implícito bastante claro, apenas esquecido ou ignorado por alguns, na prática. Políticos nunca foram o melhor exemplo de cristãos, mas a mensagem continua lá, e isso basta para incomodar ou insultar pessoas que se importam com essa religião, por bem ou por mal. Se esses cidadãos chamam a atenção para uma incongruência séria que tem motivos históricos, não legais, por que é tão horrível quererem resolver tal incongruência, especialmente quando estão tentando há décadas serem tratados como cidadãos e têm justamente uma resistência de políticos religiosos impedindo parte desse movimento? Essa motivação, aliás, como vou comentar, não impede que eles estejam certos. Não é um contra-argumento em si.

É óbvio que se pode argumentar contra a retirada de símbolos religiosos. É claro que muitos argumentos legais são levantados para que os crucifixos ali fiquem. No entanto, no momento em que uma decisão (administrativa) é tomada pelos responsáveis, com base legal, como é que gritos de inconstitucionalidade tomam as redes sociais (partindo, infalivelmente, de religiosos reclamando sobre ateus)? 

Não falo aqui de questionamentos, mas de acusações associando a retirada de crucifixos à defesa do aborto, ao passado de ditaduras comunistas e, nos casos mais graves de esquizofrenia, à expulsão de Deus do Brasil!

Se não há conexão lógica entre aborto no SUS e crucifixos em prédios públicos, é possível encontrar um link político: as mesmas "bancadas" opõem-se nos dois casos. Portanto - e revisando (para deixar claro a loucura que quero retratar) - movimentos de defesa das mulheres e dos homossexuais responderam ao que viram como afrontas de religiosos e retomaram a questão dos crucifixos e semelhantes em prédios públicos. "Venceram", e o "outro lado" trouxe à baila o resto da baderna que anima a ambos (LGBT e cristãos), já há algum tempo: aborto e laicidade na política (o que restringe, obviamente, a possibilidade dos cristãos defenderam parte de sua bandeira e participar de determinadas formas - i.e., "em nome de Cristo/da minha religião, defendo tal lei" - não é à toa que se sentem ameaçados).

Tudo isso virou insultos contra ateus e uma piadinha em particular, que vi muito repetida e que motivou este post (apesar de não ter me incomodado até eu ver o conjunto das balbúrdias citadas acima): "Se vão tirar os crucifixos, vamos tirar os feriados (religiosos) então!"

A meu ver, a ironia aqui foi má escolha, pois volta contra o feiticeiro.

1 - Os feriados não são "religiosos" no Brasil há quanto tempo? Séculos, já? Quem lembra de Jesus na Páscoa, ou mesmo no Natal? Cristãos? Muito poucos. E professoras de educação infantil? Só se for em sala de aula. Presépios e mensagens de paz com um barbudo cabeludo atrás não são "respeitar e celebrar o sentido religioso da data", nem mesmo respeitar a "mensagem" que a origem religiosa teria deixado. Em qualquer lugar que se vá, Papai Noel vence Jesus por pelo menos 10x1 na quantidade e na qualidade de referências. Todas as crianças sabem quem é Papai Noel, mas quase nenhuma pode ficar mais que perdida se questionada a respeito de Jesus - a menos que os pais a levem a alguma igreja, e mesmo assim é bem provável que ela não saiba dizer mais do que uma citação para a data mais próxima, como "é quem nasceu agora", se se está perto do Natal (não me entendam mal, não estou falando de criancinhas de 5 anos, mas até de pré-adolescentes).

2 - Quem sabe o motivo religioso do Carnaval? Quantas pessoas saem em procissões das padroeiras que motivam feriados regionais? O Dia do Índio, do Negro, da Mulher, da Independência, da República, da Revolução Farroupilha e outras tantas datas (feriados ou não) com base "civil" são de fato conhecidas por suas propostas e são debatidas em cima destas, não de acordo com um mercado que aproveitou o vácuo deixado pelo recuo da religião em tanto de nossa cultura. Na Páscoa se discute sobre vendas, produção e consumo de chocolate - fora de centros religiosos bem restritos. Talvez a bancada cristã consiga mudar isso em 2012, mas, com base no Dia do Hétero que passou tão despercebido, me parece improvável.

3 - Se é errado não-religiosos pararem em feriados religiosos, qual a melhor solução para isso? "Já que fazemos errado na Páscoa, vamos errar nos prédios públicos também" ou "Já que arrumamos os prédios, vamos arrumar os feriados"? 

4 - O aspecto "estão só querendo o que lhes interessa, esses vagabundos" da piadinha é o mais bizarro. Acaso religiosos se enfureceram com a questão por algum motivo que não lhes interesse? Cristão são imparciais quando se discute laicidade e crucifixos? É crime que ateus (supostos) sejam parciais? Ou a política é exatamente um campo de parcialidades, envolvendo, às vezes, o julgamento de alguém que não deveria ser influenciado por nada, NEM PELA RELIGIÃO?

5 - O Estado não se justifica pelos interesses, valores ou preceitos de religiosos ou ateus. O Estado se justifica por si. Eu sei que isso é um looping, mas é a loucura que institucionalizou a nossa forma de governo. No momento em que um grupo ou religião serve de base para uma lei, o Estado está se inclinando para algum lado, o que está errado conforme... a Constituição. Portanto, se os ateus querem ficar em casa na Páscoa, em nada isso justifica que estejam errados ao argumentar laicidade do Estado para reclamar de crucifixos. A questão é só se essa laicidade justifica tais posições ou não. As incongruências dos indivíduos nada têm a ver com a lei.

A ironia não era só "brincadeira", como creem muitos que as fizeram na "maior inocência". Ela indica que não se entendeu nem o motivo da ação contra símbolos religosos nem a ação em si. No entanto, ela era a grande resposta. Em busca de um motivo para tanto barulho, a única tentativa de argumento racional que encontrei de quem se opunha à decisão (do Tribunal) foi "Não faz sentido". "Como não faz sentido?" E lá vinha ela: "Sim! Se é pra tirar os crucifixos, vamos tirar os feriados, então!"

Mas o pedido não foi um movimento de vagabundos que se aproveitam da religião para descansar, só  não a querem no Tribunal; não veio de pessoas insensatas que torcem a Constituição usando palavras que ela não tem (argumenta-se e interpreta-se a Constituição, isso sim, mas, bem feito, chama-se Direito, não malvadeza - nenhuma lei é aplicada "na prática" sem argumentação e interpretação, não há uma tradução direta e imediata da lei em ação real); nem de pessoas que "odeiam crucifixos"; nem é perseguição religiosa; nem é um movimento esquizofrênico porque o país tem certos costumes de origem religiosa - aliás, "país", "cultura" e "Estado" não são a mesma coisa.

Trata-se de uma decisão legal conquistada pelos meios justos e corretos (que pode ser recorrida), argumentada também com base nas leis (por pessoas que fazem exatamente isso da vida) e, ao mesmo tempo, uma ação política, sim, mas de pessoas que acreditam lutar por igualdade e liberdade naquilo que mais lhes toca. Se os cristãos heterossexuais não são sensíveis a esses problemas, que se lembrem do ditado bastante religioso "de boas intenções o inferno está cheio". Talvez, sejam humildes para considerar, as "boas intenções" de religiosos não sejam imunes ao ditado. Particularmente se suas únicas respostas a quem lhes desagrada na política sejam ironia, insulto, desqualificação e difamação.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Vão-se os ciganos, ficam-nos os preconceitos

Chamem-me preguiçoso ou desinteressado, mas só hoje me dei o trabalho de ler a definição completa de "cigano" no meu Houaiss. Como um álbum que comprei logo antes de ter sua capa censurada, meu dicionário também agora é artigo de luxo. Foi depois, portanto, da censura que me animei a explorar a iguaria que tinha em casa com um novo gosto.

Pois o primeiro sentido da palavra não só tem fundamento histórico quanto apresenta um elogio (se vamos considerar um "insulto" o sentido figurado que causou conflito). Define-se ali, entre outras coisas, que é um povo com talento para música e a magia. Ora, talvez os incrédulos não aceitem a inclusão de "magia" num sentido que não é figurado, que é mesmo o primeiro da definição. 

Não eu. Eu creio na magia dos ciganos. Se a 4ª interpretação de uma palavra (dependendo, portanto, do próprio texto que o leitor, auxiliado por seu Houaiss, tenta ler), mesmo que marcada como figurada, pode educar um povo (que não usa dicionário!) a ter preconceito, é nitidamente porque os dicionários fazem os significados de uma cultura, não o contrário. A única forma de isso fazer sentido é se os dicionários puderem ditar a realidade conforme o gosto do autor. Portanto, se o Houaiss diz que eles dominam magia, EU acredito.

Se as definições de mulher tivessem sido mudadas nos dicionários dos anos 1930, todo aquele sofrimento por sufrágio e perigosas (ou supostas) queimas de sutiãs não seriam necessárias... Será que a editora poderia incluir em "professor" o sentido "pessoa podre de rica", por favor?

sexta-feira, 2 de março de 2012

A língua é mais forte que a espada

"What would you prefer - a doctor who holds your hand while you die or one who ignores you while you get better? I suppose it would particularly suck to have a doctor who ignores you while you die." - House

Na saudosa primeira temporada, House coloca essa questão em alto e bom tom. Para mim, trata-se da mais importante explicitação de motivo da série. Não são os malabarismos jocosos, nem as impropriedades honestas, nem a absoluta falta de ética, nem a grande resistência do médico a drogas, tiros, choques e acidentes, nem - é claro - o fato de House ser um gênio (técnico) em sua profissão aquilo que torna a série "ficcional". Ou seja, nada disso dá a essência que separa os fatos criados pela imaginação humana daqueles da vida real. A diferença entre a série House e a realidade nossa de cada dia é, pela posição de House como herói, a resposta que está implícita para aquela pergunta. 

O herói parece aos coadjuvantes ser o terceiro tipo de médico, mas fica claro a todos, como o público suspeitava ou já sabia (bem como Cuddy e Wilson), que ele é na verdade o segundo. Mais do que isso, também fica implícito na série que ele ser aquele segundo, que dá resultado, que vence, que está certo (que enfrenta tudo aliás, por estar e para estar certo no fim), é exatamente o que lhe faz propriamente o herói. 

Ou seja, o melhor médico, o melhor profissional, o maior exemplo é o sujeito que atinge aquilo a que se propõe em oposição a todos os outros que, pelo mundo afora, falam e não fazem, ou se detêm por normas sociais, tornando-se por isso mancos em sua ação, digamos; o ser humano médio está impossibilitado de agir em liberdade - em nome da verdade -, porque age constrangido por medos e imposições formais que não têm fundamento justificável na verdade última dos desafios que enfrenta. Ou, pior ainda, nem tem a capacidade de ver a verdade. O herói não só vê como desafia as normas medianas (medíocres) para vencer (agir com competência).

Nada poderia ser mais ficcional. O heroísmo do dia-a-dia é o heroísmo do discurso, particularmente do discurso pronto, de fácil assimilação e pouquíssima novidade. Uma discussão em grupo para atingir um fim (geralmente, encontrar uma solução ou um plano) é geralmente uma competição de quem casa melhor clichês mais ou menos ao alcance da memória do grupo. A habilidade de compor elementos do senso comum numa grande expressão de, obviamente, senso comum é toda a retórica necessária para uma vida feliz na Terra desde que o homo sapiens é sapiens.

Não se trata, de modo algum, de algo restrito ao pedagogês e ao militantês, exemplos que imediamente vêm à mente quando se pensa no assunto, tenho certeza. Muitas outras línguas, fundamentais para as empresas, as variedades de "medicinas não-médicas" e, claro, para a vida política vivem desse alimento, dessa hiper-valorização (tanto implícita quanto explícita) de quem apresenta conforto, nunca resultados, fatos ou verdades.

A retórica literalmente vazia não é estranha a ninguém, certamente. Conversas sobre futebol, discursos políticos, novelas e programas da tarde ou de domingo vivem exclusivamente disso. No entanto, nem só o explicitamente decepcionante vive dela na nossa espécie. Também a vida profissional e o movimento da economia extraem dessa retórica seu maior valor. Torçamos que nunca ninguém queira seguir um supermédico da TV que luta pelos fatos. O heroísmo próprio à realidade está em iludir o paciente que morre.