segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Arbitrariedade e erro

Eu me impressionei ao esbarrar num site de gramática descritiva (perigoso procurar uma estatística da língua) em que o sujeito falava sobre os motivos da acentuação. Ao ver que estava num site "descritivo", imaginei pelo menos que poderia ter alguma informação interessante que desconhecesse. Ledo engano, o site era mais duro e ilógico do que as listas de regras tradicionalmente associadas à normativa. Mas o pior era que o sujeito sabia menos sobre o funcionamento da pontuação do que eu, que estou longe de me pensar apto a fazer um site de assunto tão amplo (Gramática Descritiva), de gigantesca bibliografia.

O problema é que o autor do site, pelo visto, entendeu ser "descritivo" no sentido puramente ideológico, ou seja, não só não ser um "gramático normativo", ser anti-normativo. Então ele se satisfez em dizer que não havia sentido para as regras, que ninguém mais comprava o chalalá que as embasara na tradição e que a coisa toda era arbitrária.

Usou a palavra, para dizer, é claro, "como um sujeito quis". Bom, é verdade que o acento não é da natureza de nenhuma língua, é uma regra criada para a escrita de algumas, como a nossa. Nesse sentido, é mesmo uma escolha arbitrária de quem cunhou o sistema. Também é algo que existe numa relação entre os elementos da língua, ou seja, algumas palavras são acentuadas, em parte, porque outras, semelhantes a elas, não são. Por exemplo, como as oxítonas terminadas em "a" são acentuadas, a paroxítonas que terminam em "a" não são (a menos que caiam em alguma das regras de exceção, como a de terminadas em ditongos). 

Agora, já nessa exposição, pode-se ver que arbitrário aqui não quer dizer "de qualquer jeito", como a expressão "como um sujeito quis" dá a entender. Agora, o fulaninho cria um site, lotado de informações sobre todos os aspectos da gramática, quer-se descritivo, e não é capaz de diferenciar os sentidos em que a escrita é arbitrária ou não? Confunde "como foi determinado" com "desmando autoritário sem sentido"? Não sabe que a possibilidade de que as sinaleiras tivessem a cor laranja para "siga" e lilás para "pare" não indica que a arbitrariedade do nosso sistema queira dizer "tradição burra"?

Para esculhambar de vez com o sistema de regras, o coitado ainda afirma que os falantes de uma língua, formados como leitores, conseguem determinar por contexto onde está a tônica, mesmo no caso de acentos diferenciais. Em primeiro lugar, isso nem sempre é verdade. Até mesmo alguns acentos facultativos ganharam essa liberdade porque a princípio tais palavras não deveriam ser acentuadas, mas a mídia e as editoras às vezes usavam acentos nelas por sentirem falta de matar alguma ambiguidade (caso clássico, forma e fôrma). Com nossa tendência de não checar gramática e mentir para nós mesmos, passavam às vezes a acreditar que o acento diferencial já existia ali, o que tornava a escrita da palavra suficientemente uniformizava entre a gente que os gramáticos escutam. Enfim, estes acataram o uso - isso está acontecendo atualmente, por exemplo, com a colocação de pronomes átonos, no que gramáticos arriaram muito nos últimos poucos anos.

Além disso, a capacidade dos leitores de supor um acento diferencial não quer dizer que isso ocorra na primeira leitura, de modo que o leitor pode muito bem passar batido por uma palavra e ter de voltar quando nota que supôs errado o que estava lendo, algo que as regras gramaticais buscam justamente evitar. Aliás, a recente retirada do acento diferencial de "pára" provocou isso, indicando que a lógica deveria vencer de motivos políticos quando o assunto é gramática. Apesar desse caso, o tronco das regras de acento ainda é lógico, não político.

Por fim, a capacidade das pessoas de entender o que estão lendo sem marcas "arbitrárias" varia por dialeto. Se livre dessas retrições que "não fazem sentido, não têm justificativa a não ser uma tradição caduca", nossa escrita perde não só acentos, mas pontuações, letras finais de palavras (não apenas "s" de plural, mas "r" de infinitivo, "u" de pretérito perfeito, particularmente no caso de verbos de primeira conjugação) e tudo o mais que é "não faz sentido" para cada fulaninho que está escrevendo seu texto no seu canto. 

Nenhum escritor percebe o país inteiro e que características fazem sentido em cada praia ou sertão. O que torna a escrita uniforme num território maior do que poucos quilômetros quadrados é exatamente a imposição de um código arbitrário (eu, pelo menos, vejo apenas motivos contrários para se crer na teoria de que a norma culta seja capaz de criar uniformidade suficiente para um país inteiro). Mas "imposição de código arbitrário" não é o mesmo que dizer "como deu na telha de um gramático nazista". É verdade que existem regras burras e certas questões mais políticas que lógicas na gramática, mas as regras básicas de acentuação não estão entre essas. É ignorância comprar o pacote do descarte ideológico de qualquer coisa antes de tentar entendê-la. Não só isso, é preciso lembrar que "arbitrário" ainda guarda sua relação com "arbitrar" e "árbitro". Será que traduzindo para "juiz", pelo futebol, cai a ficha nessa gente?

domingo, 25 de setembro de 2011

Novo verbete

"Science (...) allows us to understand the world in spite of ourselves."

Neil DeGrasse Tyson

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Lula e o free jazz retórico

Lula afirmou, para os estudantes que tanto têm vaiado Haddad, que eles só podem exigir 10% do PIB para a educação agora porque o governo (ele) garantiu os 7%. É óbvio que até a insatisfação estudantil com a Educação do governo do PT se deve às benesses "dadas" por Lula à população brasileira. Retórica lulística básica, nada de novo até aí. Estranhamente, a "promessa" de Haddad é justamente os 7%, para 2014. Acho que não entendi. O ex-presidente garantiu uma quantia que continua sendo "proposta" inovadora, progressista, socialmente revolucionária e de improvável realização (conforme o próprio Haddad)?

Bom, o mais legal mesmo é que Lula continuou essa ideia de que se pede 10 agora porque ele garantiu 7 dizendo que se tivessem pedido 10 na época dele, teriam sido atendidos. Aí a loucurada me pegou. O governo agora luta para garantir 7, não pode atingir 10, mas se estudantes tivessem pedido antes isso teria sido atingido? Mais ainda, o argumento dele é não ter sido avisado de que a Educação precisava de mais dinheiro?

É claro que, há algum tempo, Lula pode falar o que quer, e sabe disso. Ninguém exige grande coerência dele há muito tempo e seu maior mérito como orador sempre foi conseguir dizer o que melhor agradava seu público imediato sem se preocupar com o fraco efeito contrário que a publicação de suas palavras aos cidadãos ausentes poderia causar. No calor do momento, ganha os aplausos necessários. Quem leu e não gostou do que ele disse vai gostar quando ele estiver ao vivo falando outra coisa, adequada a esse público. E o resto, que não gosta nunca, perde para a maioria que curte ou sua retórica ou sua prática política (ou, simplesmente, não gosta da alternativa "oposicionista").

Ainda assim, a capacidade de dizer não-argumentos como argumentos é algo que me impressiona sempre na raça política. "Não pediram antes" como argumento para não ter investido uma quantia em Educação é uma afirmação de quem sabe que tem uma liberdade retórica digna de celebridade mundial. Tais poderes parecem sempre infinitos até serem contestados com eficácia. Essa eficácia não se encontra por aí.

O velho senso comum, mais comum que sensato

O desembargador Roney Oliveira, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, determinou que a greve dos professores estaduais deve ser suspensa. Ponha-se o máximo de peso nesse "deve", pois cada dia sem aulas deverá ser pago pelo Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais. O valor é R$ 20 mil pelo primeiro dia e R$ 10 mil por cada dia a mais. 

Já foi pedido mandado de segurança contra a determinação.

A meu ver, poucos atos poderiam ser ao mesmo tempo mais imorais e mais apoiados em opinião pública, mesmo que haja brechas nesse apoio. Na hora de reclamar, todo o mundo concorda que "os políticos são péssimos"; a função administrativa do governo é juntamente jogada na vala comum. No entanto, quando alguém causa algum dano à sociedade, como quaisquer grevistas, não me parece que se pare para pensar que a greve é um fenômeno que escancara assustadora mal-administração. 

O fato de que servidores públicos entram em greve sempre provoca que algumas pessoas acusem sem-vergonhice, preguiça ou ganância "dessa gente", mesmo que, quando estão na ativa, sejam geralmente caracterizados como abnegados, explorados ou coisas do tipo. Na prática, as acusações de "greve para ficar em casa" têm dois grandes problemas: não se paralisa nem metade de um grupo de servidores com facilidade. A resistência a greve é fortíssima antes e durante as paralisações; as pessoas em geral não acham que vale a pena essa luta de braço desigual com governos a menos que os ganhos da greve sejam muito grandes, e eles praticamente nunca são. Além disso, o pessoal realmente preguiçoso ou desinteressado tem muito maior terreno para manobra quando os serviços estão andando. A greve chama a atenção e pode ocasionar perdas eventuais a todos, mas, enquanto a máquina está andando, mesmo que mal, há uma série de ferramentas que podem ser distorcidas a favor do preguiçoso ou cínico das mais diferentes formas. A maioria dos trabalhadores carrega uma minoria hipócrita ou desrespeitosa que lucra e descansa mais quando há trabalho para ser feito do que quando há greve.

Por outro lado, se a iniciativa privada surge como opção atraente para todos que querem falar mal dos trabalhadores em greve, não se pensa numa coisinha: nunca mais conseguiria emprego na vida um administrador que conseguisse provocar uma greve numa empresa privada dedicada a serviço ideologicamente autosuficiente. É preciso um descomprometimento assustador para se exercitar a incompetência necessária para travar um grupo de trabalhadores que insiste em avançar aos trancos e barrancos apesar de seus problemas e de uma ideologia auto-justificadora, que virtualmente justificaria greves até que tivessem salários de deputados.

Mesmo que todo dia seja dia para se falar mal de políticos, as greves imediatamente fazem com que muita gente olhe para o lado e xinge o esgotamento do sistema em vez de acusar quem o esgotou. Escrevo isto em tempos de "faxina" no governo e críticas a ela na oposição apenas para indicar mais um dos indícios de que a popularização de se acusar governantes corruptos não é o mesmo que interesse ou consciência política. Pelo menos nisso ainda há verdade na afirmação de Joseph-Marie Maistre (1753-1821) "cada povo tem o governo que merece". Nós ainda temos incomodação política não por compreensão dos fatos, mas por cunhagem.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Beleza interior no dos outros

Fui num casamento em que experimentei algo quase único: a noiva parecia com ela própria. Apesar de superarrumada e maqueada, ela estava reconhecível para qualquer pessoa que já a tivesse visto pelo menos uma vez na vida. Acho extremamente irônico que mulheres confundam, no caso de formaturas e casamentos, maquiar-se com disfarçar-se. Não é, no fundo, um auto-insulto tentar se embelezar e acabar parecendo outra pessoa? 

A noiva foi um alívio agradável, mas outras convidadas, pelo menos as que eu conhecia, compensaram: não reconheci nenhuma de vista, e dependi sempre de referências ou de traços de personalidade se manifestando para identificar cada uma. Todas as propagandas de Dove e todo o discurso anti-homens que busca valorizar cada mulher como ela é e culpar a macharada pela "ditadura estética" ainda nem arranhou a competição feminina que escala a importância da maquiagem na vida e do photoshop nas revistas para convencer todo o mundo que qualquer mulher admiravelmente bonita o é porque não é de verdade. Quando é para se emperequetar, tão poucas suportam o próprio rosto...

terça-feira, 6 de setembro de 2011

A política de acordo com a não-tábula rasa

"A nonblank slate means that a tradeoff between freedom and material equality is inherent to all political systems. The major political philosophies can be defined by how they deal with the tradeoff. The Social Darwinist right places no value on equality; the totalitarian left places no value on freedom. The Rawlsian left sacrifices some freedom for equality; the libertarian right sacrifices some equality for freedom. While reasonable people may disagree about the best tradeoff, it is unreasonable to pretend there is no tradeoff. And that in turn means that any discovery of innate differences among individuals is not forbidden knowledge to be supressed but information that might help us decide on these tradeoffs in an intelligent and humane manner."

Steven Pinker - The Blank Slate

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Rio Grande do Sul e a imposição de uma pátria brasileira

Meu desgosto com símbolos pátrios, como o hino, em geral pode ser mantido de forma muito discreta, já que raras vezes esperam de mim qualquer manifestação nessa área. Para minha sorte, no ano passado, minha escola passou meio batida pelas datas comemorativas de setembro, com exceção, é claro, do que diz respeito à Revolução Farroupilha, antípoda amiga das celebrações da nação. 

Este ano, no entanto, não me permitiram a mesma sorte. E uma das piores partes de se ser professor, como acho que já mencionei, é termos de limitar o quanto de nosso desrespeito a determinadas tradições se manifesta no ambiente escolar. É importante, no mínimo, deixar que os alunos escolham ser fiéis aos símbolos civis compartilhados, se acharem sentido nisso. 

Estamos "hasteando a bandeira" (não há corda), ouvindo/cantando o hino e perdendo tempo de aula com o desconforto geral dos alunos de não quererem ficar quietos e expostos no pátio, indecisos entre cantar, fazer cara de nojo e conversar, podendo ter a atenção chamada por pessoas de tão alta hierarquia quanto a diretora. Lembrando de meu tempo de escola, não poderia compreendê-los melhor...

As celebrações do Brasil me parecem ainda piores pelo contraste com as comemorações farrapas, exatamente no mesmo mês e começando sempre quando as arrumações para a festa nacional também são iniciadas. A diferença, é claro, é que as comemorações farroupilhas duram semanas a mais, enquanto o Brasil é semicomemorado por uma semana apenas, e olhe lá.

Essa comparação me parece deixar a festa pátria ainda mais irritante exatamente por ficar mais patente como as pessoas se forçam, desconfortavelmente, a tentar respeitar ou elogiar o Brasil, pelo menos aqueles que dão bola para essas coisas. Ou seja, até quem acha que deve, não sabe bem como. A festa é tão esquizofrênica com a vida real que não há qualquer proximidade ou naturalidade que sirva de manifestação para um suposto respeito pátrio. Em contraposição, nosso bairrismo é tão natural que pode ser idolatrado, respeitado, debochado ou ignorado, e tudo isso funciona muito bem junto. A própria possibilidade de fazer humor de um "orgulho gaúcho" indica, a meu ver, o quanto a valorização regional é algo que faz sentido, que tem qualquer proximidade com nosso cotidiano, que nos permite fazer parte por livre e espontânea vontade. A solenidade é sincera, ou pode ser ignorada, um sorriso de canto pode ser uma resposta tão adequada às festas farroupilhas quanto os extremos de se cantar o hino de Grêmio ou Inter no lugar do Hino Rio-Grandense.

O país não nos pertence, não na nossa experiência cotidiana. E as justificativas de tradição que eram usadas para impor símbolos pátrios caíram há gerações. A imposição de uma nação seria totalmente sem sentido se a administração do governo não nos forçasse a limites bem claros, particularmente no que diz respeito a segurança e comércio. Já no caso do Rio Grande do Sul, a identidade é uma expressão pessoal, e integrar-se nela não se confunde com viver em território rio-grandense, responder ao Tarso ou escrever nesta ou naquela língua. De forma alguma estou dizendo que o gauchismo não foi inventado. Mas uma tradição que preste, ao ser inventada, é confundida com a vida real de forma que nela se entranhe, tornando-se parte orgânica, sendo alimentada, portanto, na própria vida cultural de uma sociedade. A única função da unidade nacional é engordar políticos de Brasília e todos os estados poderem se vangloriar pelas mesmas Copas.

Até mesmo a letra dos hinos recebem respostas diferentes, e o deboche de trechos do gaúcho fazem parte da brincadeira. O deboche da letra do nacional é um desrespeito, uma afronta ou uma desvalorização. Definitivamente, a possibilidade de humor interno nos indica a relevância de um símbolo. Quando o cômico é uma negação do símbolo, é porque ele, no fundo, não é nosso.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Políticos e sua estrelinha

Achei tão interessante Rui Falcão, presidente do PT, fazer esta crítica no 4º Congresso do partido:

"Não é a mídia nem a oposição que vai dizer para nós como isso [a dita "faxina" da corrupção] vai ser feito, querem "demonizar" os políticos, jogar todos na vala comum".

Achei a afirmativa interessante porque ela está errada nos mais diferentes sentidos. Em primeiro lugar, a imprensa tem uma enorme responsabilidade pelas delações públicas de alguns escândalos, sem o que ninguém teria sido acusado de nada, muito menos demitido (com exceção de uns casos específicos de investigação de outros aparatos do próprio governo). Em segundo, qual o problema de a oposição e a mídia se envolverem diretamente no problema de corrupção? Eles não está lá exatamente para isso? A oposição não serve para representar a galera que teve minoria de votos, deixando em cheque quem "detém" a maior fatia do poder político no momento? Em terceiro, "demonizar" políticos e jogá-los na vala comum não tem problema nenhum, se são pessoas corruptas que traíram o país inteiro por ganho próprio. 

Não é que "não se trata de demonizar", apenas. Isso é fato, agora, se der pra demonizá-los, por que não? Anjinhos eles não são e, se a ética é própria do humano, tanta falta de ética deveria justificar questionamentos a respeito de sua humanidade. Além disso, estamos todos na vala comum hoje em dia. Quando vamos trazer os políticos para junto do povo?

Eles me perseguem

- Não, é só o gatilho dela que tá ruim. Não, tava com bala, mas ela nem atira. O quê? É, não ali tá tudo bem. Não é, cara, é o gatilho, mas vou entregar funcionando. Não, sem bala. Claro, meu, vou entregar sem bala. Tá doido, se eu deixo com bala dentro eu entrego a arma e quando virar as costas ele atira em mim já. Não, vou entregar direitinho, com o gatilho direito, mas ele que compre as balas depois.

Assim ia falando um sujeito do outro lado do corredor do ônibus em que eu estava. Bom som, bem tranquilo, conversa confortável pelo telefone. Foi estranho no entanto ouvir isso no ônibus e não estar em um dos que iam para meu antigo bairro.