sábado, 30 de abril de 2011

Cultuadores do soco, frágeis à linguagem

Tive de discutir normas da escola com alunos de 11 a 14 anos (na verdade com duas exceções de 16) e presenciei um cuidado curioso da parte deles. Trata-se de uma escola pública típica daqui, no sentido de que os alunos estão sempre se batendo e se xingando, mesmo entre amigos. Isso é um pouco menos comum entre as gurias, mas não chega ser raro, assim como a violência mesmo física representa algo como 50% da relação entre homens e mulheres ali. Talvez um pouco mais. Os guris, pelo menos, não se tocam sem ser de forma bastante violenta. Nem apertos de mão acontecem.

Bem, retomando regras estabelecidas no ano passado, em contato com os alunos, toda a escola estava envolvida numa certa revisão e melhoria, de modo que eles podiam propor também novas. O que me chamou a atenção é que, aí, o poder que eles atribuem a insultos se manifestou mais claramente. Aqueles que conversavam comigo levantaram (espontaneamente, eu nem estava pensando a respeito na hora) os apelidos maldosos como formas de agressão, e os colocaram no mesmo patamar que os ataques físicos, sendo que estes tinham sido proibidos no ano passado quase que por imposição unilateral da escola. A sanção ao ataque verbal que os alunos propuseram tornava-o, em último grau, caso de polícia, e essa seria a punição imediata em caso de reincidência. O critério para determinar quais os apelidos "maldosos" seria o julgamento do endereçado.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Sexo para todos

Tem um movimento querendo instituir o Dia do Sexo?! Sério?

Vou ter de dar uma de chato e perguntar: a gente precisa disso (ou, não tinham nada melhor para fazer)? Dizem, como SEMPRE, que seria um dia para discutir o assunto abertamente, levantar suas realidades e políticas, chamar a atenção para certas situações, ou seja, o velho discurso pedagógico, mantendo viva a estranha noção de que marcar um dia no calendário abriria as portas sociais do debate e da educação. Também tem todo aquele papo de que o sexo é vida, está em todos os lugares - ora, então para quê um dia específico disso no calendário?

Bom, esse papo me parece falso, pelo menos no sentido de que é pouco provável que surgisse mesmo um dia de debate aberto e frutífero: não é a nossa tendência... A primeira coisa que deve acontecer, acredito, é pessoas começarem a levantar a bandeira de "todo dia é dia do sexo", ou deveria ser. Bom, eu de fato concordo com isso. Nenhum dia deveria ser sexualmente destacado dos outros. E isso vai gerar uma piadinha que, mesmo bem intencionada, vai cansar: "Lá em casa dia do sexo é todo dia! Hahaha"...

Ainda que a desculpa seja pedagógica, logo será sim celebrado (pelo menos por um grupo significativo de pessoas) como um dia de uma trepada especial, em homenagem ao tal de "sexo", o que vai motivar também certas festas comemorativas não indicadas para menores (mas televisionadas, suponho). Se ganhar mesmo o gosto do público, o dia pode até ter uma parada só sua, com muitas "afrontas à mentalidade conservadora" e blablablá.

Supondo, como disse, que a "discussão" ganhe popularidade, a dita afronta seria mesmo validada por uma reação conservadora, muito antes de qualquer data ser votada. Ia se debater a exposição do sexo na nossa cultura, as resistências religiosas, os limites do Estado, as brincadeirinhas de bar feitas por políticos a respeito, a incompetência de políticos envolvidos na decisão (o que o CQC não deixaria passar)... aposto que apareceria de novo nos jornais gente que nunca transa e se considera superfeliz assim, bem como algumas conversas com padres e afins.

Medidas efetivas para educação sexual, assim como os programas do governo para tratar de quaisquer problemas nessa área, dependerão ainda de pessoas dispostas a botar a mão na massa e das velocidades e incongruências da mão governamental. Muitos assuntos que envolvem sexo, aliás, já têm bandeira própria, como Lei Maria da Penha, aborto, estupro, homossexualismo. O quadro geral, enfim, não tem grandes probabilidades de mudar com um Dia do Sexo, nem a cultura das pessoas a respeito. Conheço poucas pessoas que mudaram sua visão sobre beijos, amizades ou garis só porque existe um dia especial para cada um destes. No outro extremo da polêmica, a discussão sobre homossexualismo que busca mesmo uma mudança cultural tropeça de todas as formas que se vê nos jornais e na rede.

Improbabilidade de atingir o efeito ideológico que pretende e probabilidade de provocar uma série de discursinhos e debatezinhos extremamente enfadonhos... Para que criar um Dia do Sexo e promover que até esse assunto vire chato hoje em dia?

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Zzzzzz


A qualidade do sono no inverno não tem comparação. Hoje o dia amanhaceu frio o suficiente para ao menos indicar o saudoso inverno, e eu já podia sentir aquela região tão prazerosa e esperada, aquele ponto profundo da mente no qual minha consciência parece se esconder somente quando está suficientemente frio. 

Agora, de noite, saindo para abrir o portão da rua, outra sensação muito esperada: os poucos momentos de frio na rua que servem apenas para estimular e valorizar a volta ao calor da casa. Calor que não é abafamento, bafo ou tortura. Nesse ponto do ano, em que diferentes espaços podem realmente ser quentes ou frios, aí sim podemos desfrutar de cada coisa, não ficamos saturados numa só sensação. E a vantagem de estar indo da temporada de calor para a de frio é que esse prazer característico, o sono verdadeiramente profundo, é uma prévia de um dormir confortável que, mesmo cortado pelo horário do trabalho, deixa no chinelo qualquer dormida no calor. Em comparação a dormir no inverno, dormir no verão merecia aspas.

domingo, 24 de abril de 2011

Rebeldia implica autoridade

Sempre que novos casos de violência contra professores, supervisores ou diretores ganham as notícias, é comum que alguns lamentem a falta de autoridade do "professor" atual, ou o fato de que os alunos não reconheçam mais tal autoridade. Eu não conheço grandes estudos específicos a esse respeito, mas a impressão que tenho é bem diversa. Os alunos reconhecem professores como figuras de autoridade, o que acontece é que esses alunos que atacam os profissionais da escola têm uma enorme revolta contra o poder que reconhecem manifesto ou simbolizado no professor, identificado exatamente como "autoridade". Ou seja, sua resposta violenta não surge porque não veem autoridade no professor, muito pelo contrário: é exatamente por a enxergarem que são violentos.

Essa revolta não é a importante manifestação de um "espírito crítico voltado contra o sistema", nem pode ser chamado ainda de uma crítica ingênua. Não vou enveredar pelo caminho dos que acham que isso é bom, porque creem que toda revolta seja boa. Claro que não: se fundamentadas em ilusões ou se desprovidas de causa, críticas são simplesmente asneiras destrutivas. Mas é preciso reconhecer a rebeldia desses alunos, em vez de subestimá-la como ignorância, ausência, fruto de uma simples não-educação. 

Eles não precisam aprender uma cultura submissa para ver autoridade nos profissionais do colégio. Eles conseguem chegar a essa conclusão sozinhos, ainda que muitos possam ter dificuldades para expressá-la verbalmente. Um dos grandes problemas, aliás, é que aprendam isso sozinhos, porque então reconhecem no professor o único tipo de autoridade que geralmente conseguimos enxergar quando somos jovens: a autoridade da violência. Não por acaso, já que autoridades são pais, policiais, professores... ou seja, unicamente pessoas que têm poder de sanção sobre nosso poder de ir e vir. Mais ainda, todos estão numa mesma cadeia de autoridade. Por exemplo, os professores, sem saída diplomática, chamam os pais (o que pode levar a surras em casa ou, no mínimo, castigos). Se os pais não resolvem o problema, a questão será tratada com Conselho Tutelar, na visão deles uma antecâmara para o problema ser levado à polícia. Tanto pais quanto policiais, se afrontados por uma revolta inflexível, tendem a apelar para a violência, e o discurso positivo ou interessado de alguns professores não podem esconder que, no quadro geral pragmático, são figuras de negociação que tentam resolver a crise antes que uma das outras autoridades tenha de ser chamada para, se quiserem, usar de violência. Além de tudo isso, professores tendem a não ser fisicamente violentos, a não ser com seu domínio sobre portas da escola ou com gritos, mas a possibilidade de um ataque físico nunca pode ser totalmente descartada, tanto que a televisão comprova que alguns se passam.

Os alunos entendem, portanto, que professores estão numa determinda posição de autoridade, e isso quer dizer que usam formas mitigadas de violência e podem apelar para pessoas que não têm as mesmas restrições, independente do que diz a lei (geralmente desconhecida dos alunos). A possibilidade de autoridades serem de outro tipo, como a intelectual, é basicamente alienígena para nossa cultura. Mesmo as pessoas que a reconhecem costumam fazê-lo depois (às vezes bem depois) dos 20 anos de idade, e muitas vezes ela é de fato apenas uma máscara para idolatria simples. O que poderia ser reconhecimento de autoridade moral também tende mais para a tietagem e submissão dogmática.

Nesse quadro geral, a posição entre violências (ou de violência mitigada) ocupada pelo professor coloca-o, para a percepção do aluno, como uma espécie de elo fraco da corrente. Ali há mais espaço de negociação do que com pais ou policiais, assim como a possibilidade de resposta direta do professor é mais fraca e lenta. De forma um tanto amadora, mas com suficiente clareza, a maioria dos alunos reconhece que é com o professor que seus estouros podem se dar de forma mais clara e aberta, ou que o número de "perdões" na escola supera imensamente o número que poderia receber de quaisquer outras autoridades.

Se vamos nos revoltar contra alguma autoridade, costumamos investir contra a mais fraca e menos violenta delas, lógico! O problema não é ensinar aos alunos brasileiros que professores são autoridades, mas ensinar uma relação completamente diferente com a autoridade em si, para muito além da escola. Isso exige, pelo outro lado, que nossas autoridades mudem. E alguém acha que uma mudança de postura das autoridades (pais, policiais, legisladores, conselheiros...) será atacada por projetos de educação (exceto leis que decretam novas formas de comportamento e que, por isso, não têm eficiência)? Ora, pense-se no irracionalismo da resposta dos governantes aos tiros em Realengo e se terá uma medida do tipo de raciocínio que assola nossas políticas públicas. 

Esses casos de violência são preocupantes de fato porque o problema das escolas é bem mais profundo do que temos coragem de questionar politicamente. Ele é, no mínimo, três vezes maior do que cabe no atualmente restrito conceito de "Educação". Se permissividade não é um caminho plausível, pesar mais ainda a mão, procurar simplesmente novas formas de repressão e supor que se precise reinjetar autoridade num professor supostamente esvaziado é só botar mais lenha na fogueira, ignorar que o comportamento do aluno é uma rebeldia.

A função social dos puristas

Algumas pessoas tremem ao ouvir "fluído", outras sentem nojo (associado a esdrúxulo anti-"indianismo") se alguém fala "pra mim comprar" e assim por diante. Não é apenas no campo da linguagem que isso acontece, é claro. Há séculos (se não desde sempre), a grande maioria da música popular tem enorme dificuldade para ser considerada como "música" por uma outra parte (pequena) da população, assim como certas políticas não são consideradas "políticas" por uns, muitos livros não merecem o nome de literatura, para outros... Mais do que isso, a maioria de nós, se não todos, concordam com alguns desses purismos. Alguns sujeitos, no entanto, conseguem reunir um número enorme destes pertencentes a muitos campos de conhecimento, ou todos de um só campo. Eis quem chamo aqui de puristas e, ainda que em geral tenham uma opinião tão mal embasada quanto qualquer um de nós defendendo essas opiniões, parece-me que os tais puristas têm um importante papel social.

Os puristas servem para defender publicamente suas ojerizas estéticas sem fundamento (racional válido), assim servindo de lembretes contantes para nós, indicando-nos cotidianamente quão ridículos estamos sendo quando defendemos opiniões do tipo. Não é que não possamos ter nossas supersensibilidades estéticas, mas às vezes encasquetamos com alguma delas e começamos a agregar densidade e repetição a um determinado discurso que não tem razão de ser e que, em geral, é a válvula de escape de alguma outra incomodação na nossa vida. Tudo bem que alguém ache, por exemplo, que "fluído" soa mal. A pronúncia apoiada pelos gramáticos ("fluido") era-lhe costumeira e agregou valores, sejam quais forem. De repente aquela outra pronúncia passou a incomodar simplesmente por ser estranha, reconhecida só a partir de uma determinada época, ou por agregar, por associação, os valores inversos aos que tinham sido associados à pronúncia dicionarizada.

Alguém acha, no entanto, que esse problema é tão digno de atenção (cotidiana) assim? Que é motivo para se incomodar no dia-a-dia, para sentir mesmo nojo ou qualquer tipo de repulsa, para dominar uma conversa porque "fere" a sensibilidade do sujeito encasquetado com isso? Uma coisa é achar que a opinião ou o estilo de outro é ruim ou pior em algum sentido, outra é se pensar que os males do mundo estão fundados nessas diferenças ou que existe algo realmente sagrado na língua, na música ou no que for - uma sacralidade, aliás, frágil e sensível a toda divergência (sintomaticamente se tratando as áreas de nosso conhecimento fossem algum deus grego, sempre sensível, bitolado, vaidoso e arrogante). Não somos nós que não aceitamos nenhuma variação ou divergência, "é a língua (literatura/música/costume/tradição/herança)"!

O que vem salvar essa pessoa repentinamente travada, por exemplo, em sua suposta repulsa à pronúncia de determinada palavra produzida por certos brasileiros? O purista! Assim que ele aparece, com suas defesas ridículas e às vezes engraçadas não apenas desse, mas de uma fila enorme de coisas que só mereceriam mais atenção num estudo sério ou no Guia dos Curiosos (ou seja, nunca numa conversa jogada fora no cotidiano), aquela pessoa estranhamente travada na pronúncia "fluído" pode se ver de fora, pode se questionar, pode recobrar a perspectiva em sua vida e decidir ou ir além, realmente entendendo o fenômeno e, nisso, não mais se importando da mesma forma (podendo inclusive desancar o purista); descobrir que é ridículo estar se incomodando há tanto tempo com isso e entender qual é realmente o problema que está estourando naquela bobagem; abandonar a questão como ridícula e não se questionar de forma mais profunda, deixando, torcemos, que sua real incomodação não se manifeste mais em reclamações cotidianas, mas em algo mais íntimo, a ser resolvido ou reclamado também em ambiente mais íntimo, ou seja, longe de conhecidos ou de quem só calhou estar no mesmo elevador que ela.

É, portanto, para nos mostrar quando estamos sendo ridículos que os puristas precisam existir. Seu grande serviço social é ser o palhaço sempre pronto a nos servir de espelho quando estamos nos portando como um, reduzindo assim, quem sabe, o tempo que perdemos com bobagens travestidas em reclamações obtusas "à inguinorância alheia".

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Moral sem Deus: um problema dos outros

Godkiller, godsavior
O grande verbo do pensamento, para mim, é encafifar. Certas coisas me deixam encafifado, outras não, mas aquelas têm esse poder à revelia de minha vontade ou proposição inicial. Isso chega ao ponto de eu herdar questões de outras pessoas: um sujeito menciona uma dúvida na minha volta, mas ele mesmo não tem vontade de pensar a respeito no momento. Não importa, se me deixou encafifado, lá vou eu, às vezes semanas a fio, tentando matar a charada, independente da curiosidade ou não do provocador ingênuo. Isso é particularmente verdade quando o problema é ético, moral, pedagógico, linguístico, artístico ou existencial. Agora, o mais curioso é que, às vezes, eu consigo até mesmo esquecer que herdei a questão, já que problemas encafifadores são importantes em si mesmos para mim. Se a pessoa que provocou meu raciocínio foi outro ou não, em geral pouco importa.

Mesmo assim, acho interessante descobrir quando o problema foi gerado por outrem, porque às vezes ele não nasceu meramente de outra pessoa, mas por aquela pessoa chegou a mim um problema gerado por outro grupo, um grupo a que não pertenço, e que tende a gerar aquela pergunta para um grupo a que eu realmente pertença (p. ex., um problema classicamente proposto por militantes para cínicos). É significativo, nesse caso, descobrir que aquilo que me encafifava não é apenas um acidente com que trombei individualmente, mas que essa trombada individual é tecnicamente como aquele "outro" grupo tenta prender, atacar ou anular o "meu" grupo. Foi com uma descoberta dessas que me deparei nesta semana.

Um problema me encafifara (há alguns anos): "como fundar uma moral sem um absoluto transcendente, como Deus", supondo que a pessoa concorde que uma moral é necessária, ou seja, que o relativismo cultural absoluto e o oba-oba não são conclusões que podemos aceitar para a vida humana na Terra? Eu tinha a minha resposta para a questão (e optei, sim, por uma moral), quando comecei a ler (há poucos dias) "Em que crêem os que não crêem", uma conversa pública entre Umberto Eco (representando os ateus, o que achei um tanto estranho, por mais que ele não acredite num Deus pessoal) e o cardeal Carlo Maria Martini.

O livro traz, depois da "conversa" (bem entre aspas), comentários de outros pensadores sobre exatamente esse problema moral, motivo das últimas "cartas" entre Eco e Martini. Logo de início colocaram um pós-moderno radical (interessante), depois um spinoziano e assim por diante. Ora, o pós-moderno coloca uma coisa que me fez me sentir muito idiota por ter esquecido: quem põe o problema da moral sem o Absoluto metafísico são os monoteístas; não são os ateus que se propõem esse problema. Mesmo historicamente isso foi assim, eram os monoteístas em crise, pressentindo o ateísmo em tocaia nas suas mentes, que levantavam a questão.

Nossa, como eu posso ter me esquecido disso? Eu realmente considerava o problema válido para ateus, não para religiosos, mas ele surgiu na minha cabeça primeiro por Pascal, e então decentemente por Kant. Depois, sempre foram monoteístas que me surgiram com ela, até recentemente um católico num almoço e, por fim, no livro, o cardeal, propondo-a para Eco! 

Isso é interessante para o lado sociológico da discussão, não tanto para a lógica de sua solução, mas foi engraçado que eu tenha deixado passar que, no fundo, pensada assim, essa pergunta é outra modalidade, bem mais sutil e delicada, do velho argumento "medo" a favor da religiosidade (a ideia aqui não é simplificar, só mostrar um outro ângulo). Ela é um pouco mais daquele "imagina se" que propõe um mundo sem religião apenas para assustar, ou que coloca a possibilidade da religião para o ateu apenas para indicar que é mais seguro seguir o caminho monoteísta, nem que seja só para garantir. Tecnicamente eu acho que Pascal e até Kant não ficaram muito longe disso, pelo menos no sentido de que Deus acaba sendo "útil", fundado no homem, para eles, ainda que fossem crentes. Como Nietzsche disse, Kant matou Deus, só que foi necessário que Nietzsche viesse para proclamar o crime. E foi tal assassino um dos que pôs o problema da moral sem Deus de uma das maneiras mais complexas e convincentes.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Frase da década

"When historical information is no longer sensitive, we take seriously our responsibility to share it with the American people,” CIA Director Leon Panetta.

Contexto (que tira um pouco a graça).

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Maníacos por bullying

Fashion: E você, já falou contra o bullying hoje?

Acho que não sei mais o que é bullying. Estou aqui procurando ajuda dos leitores. Mas, antes, por favor observem o comportamento generalizado frente ao dito bullying que vou retratar aqui. Para a maior parte deste post, vou usar o conceito antigo de bullying, o último que pude aceitar.

Se uma manchete diz que ele afeta 84,5% dos estudantes da rede estadual do RJ, o que vocês pensam? Eu imediatamente penso que alguém tomou todas antes de escrever a notícia (ou de publicar a pesquisa). Lembram quando o bullying era uma violência de grupo ou que exigia um valentão muito dominador (ser bem raro, proporcionalmente)? Nesses casos, esse tipo de violência exigia que a maioria das pessoas envolvidas estivesse do lado ativo, e a minúscula minoria a sofresse; ou que um valentão dominasse algumas vítimas, mas esse sujeito tinha um limite de ação por motivos físicos, além de ser um indivíduo raro por população de alunos. 

Pior ainda que se diga que, nos colégios municipais do Rio, a porcentagem chegue a 90,2%. O bullying envolve isolar um aluno socialmente ou atacá-lo fisicamente para fazer isso ou tendo isso como consequencia. Como seria uma escola em que 90,2% da população sofresse isso? Não seria possível formar nem mesmo UM grupo de amigos numa população totalmente individualizada e em grande parte machucada ou cabisbaixa. Alguém já viu uma escola em que as formações grupais não fossem a regra? Ainda que bullying tenha sido um conceito esticado até compreender relações entre países, ainda se utiliza o termo quando há desequilíbrio evidente de poder entre as partes. Desequilíbrio de poder evidente entre 9,8 e 90,2% de alunos?! É claro que não se quer dizer isso com aqueles dados. Ora, se não é o que se quer dizer, por que se diz?

Se quase todos os alunos são afetados por um tipo de violência, é (era) porque não estamos (estávamos) falando de bullying. Especialmente porque não se trata de uma forma de violência cíclica. Quem sofre hoje não faz amanhã com outro. Não é assim simples de reverter um quadro real de bullying para que ele possa ser imediatamente reativo. A reação que pode causar, no máximo, é que uma criança que se erga da situação de bullying chute o saco do chefe do grupo que a violenta, mas chute no saco, meus caros, não é bullying.

Agora, lendo a matéria, vê-se que a informação real era de que 40,4% já foi vítima (ainda um número astronômico para o conceito) e 44,1% conhece alguém que já sofreu agressões físicas ou psicológicas no colégio.

Ora, além da incongruência do primeiro dado, pelos motivos que já expus, é ridículo somar as duas porcentagens e dizer que isso é igual à porcentagem de pessoas que "são afetadas" pelo bullying. Não apenas porque os dados para as duas porcentagens podem se sobrepor, mas porque é perfeitamente possível conhecer alguém que sofre bullying e não ser "afetado" por isso. Assim como "sofrer agressão física ou psicológica" na escola não é o mesmo que sofrer bullying. Para lembrar o recente exemplo, chute no saco é violência física e não é bullying, ao menos não necessariamente. Para sê-lo, o ato de violência tem de ser consistentemente repetido e intencional, ou melhor, intencionalmente repetitivo. Além disso, ele envolve necessariamente sofrimento psicológico na vítima, já que é este o problema diferencial do bullying. Não é que se está sempre fisicamente machucado, por mais que isso obviamente não seria bom e que seria também, em si, um tipo de violência que deveria ser resolvido.

Fora tudo isso, a segunda porcentagem é absolutamente falsa. 100% dos alunos de qualquer escola conhecem alguém que já sofreu agressões físicas ou psicológicas. Acontece que a forma de os "pesquisadores" olharem para a violência e a forma de as próprias crianças olharem é muito diferente. Exatamente porque nem todo tipo de violência na escola é bullying, nem toda ela é contabilizada pelos alunos (e pelos profissionais da escola, muitas vezes). Acontece que esses outros tipos de violência são, muitas vezes, problemas que deveriam ser atacados por profissionais sociais e que estão caindo no mesmo saco ou sendo ignorados simplesmente porque os alunos os aceitam como naturais, tornando-os invisíveis à maioria dos pesquisadores de oportunidade que andam maníacos por bullying e só enxergam isso pela frente. É impossível contabilizar a violência na escola numa pesquisa rápida e, menos ainda, oportunista, como os recentes dados regurgitados no Rio por causa do "atirador de Realengo" e, por consequência, em outras partes do Brasil.

O que acontece é que bullying virou moda por alguns motivos, com certeza incluindo ser um termo muito usado nos EUA e ter servido por aqui para oportunismo político. Mais uma forma de políticos fingirem que resolvem problemas por decreto, com suas leis mágicas. Fazer medidas a respeito se tornou algo reconhecível, simples de entender para o público, gerando um certo ciclo entre novas publicações que andam praticamente nada umas em relação às outras (algumas obviamente retrocedendo) e decisões mais verbais que efetivas, especialmente de vereadores.

No fim, seria possível pensar "ah, com enquadramentos conceituais errados ou não, pelo menos a violência na escola está sendo atacada", só que atacar uma forma de violência com base em outra não é nada eficiente. A maioria das escolas são violentas, é verdade, mas grande parte disso envolve muitos outros tipos de relações, como naturalidade da violência entre as famílias que compõem aquela comunidade, glamourização de certo tipo de violência e infantilidade clássica. Por incrível que pareça para os idealizadores da vitimização, a maioria das crianças (e adolescentes) tenta resolver suas frustrações e problemas na base da violência (grito, esperneio, soco, chute...).

Enquanto todo o mundo fica pensando numa forma que envolve necessariamente um "excluído" (que não precisa ser negro, gordo, gay ou trans, mas mais provavelmente é só o mais quieto, o mais baixo, o que tem o cabelo minimamente diferente, o que quer estudar, o que não conhece nenhum dos pais, o que tem um comportamento qualquer que provoca uma postura dominante nos outros), todas as outras formas e causas de violência deixam de ser tratadas seriamente, ou mesmo de ser percebidas. É possível até que cinco alunos ataquem diretamente outro depois da aula e isso não tenha nada a ver com bullying, mas simplesmente com algo que o aluno atacado fez antes e que é visto como "inaceitável" pela maioria dos colegas. Isso não é bullying, ou não era.

Toda violência que é sistemática, mas generalizada e compartilhada por todos os alunos como natural ou aceitável, e toda violência que não é sistemática, qualquer coisa se enquadra como bullying agora. Fica tudo "chocante" no jornal, sem sentido na prática e lindo na estante da livraria. Então por favor me digam qual o novo conceito de bullying, porque o único que se enquadra nesse contexto, para mim, é "assunto chocante da moda". O grande resultado disso é banalizar para os próprios alunos o conceito. Ele vira em si uma bandeira tanto da campanha sem sentido e eterna dos adultos quanto uma boa ideia de como glamourizar ainda mais a própria dominação sobre o colega frente aos amigos.

sábado, 16 de abril de 2011

Quatro ateus e uma divina oportunidade

Encontrei hoje no youtube, bastante por acidente, uma conversa entre ateus militantes (aqui a primeira parte, depois é ir chamando as outras), no caso quatro dos que atravessaram a última década acumulando visibilidade (publicando livros polêmicos) enquanto suas campanhas intelectuais, começadas antes ou depois de 11 de setembro de 2001, ganharam reverberação com a Guerra contra o Terror e a teoria do Choque de Civilizações (Ocidente vs. Oriente) que embasou o primeiro discurso para aquela Guerra. Em resposta a esses ateus, religiosos e outros ateus responderam atacando-os e apresentando outros pontos de vista a respeito do problema ("God Debate"), o que gerou uma sinergia de lucro para ambos os lados e decidiu, de fato, pouca coisa, se compararmos tudo isso com movimentos políticos, decisões de EUA, União Europeia, ONU, governos árabes e grupos terroristas. De vez em quando alguma decisão judicial de apedrejamento por blasfêmia ganhou a mídia e toda essa discussão talvez tenha dado algum terreno mais fértil para se saber que decisões diplomáticas internacionais caem melhor para diferentes eleitores, assim como os debates sobre aborto com certeza ganharam nova cor até mesmo por aqui, mas a discussão entre Religião e Razão (como querem, simplificadamente, esses ateus militantes) ficou em grande parte restrita ao interesse de pessoas cujos cacoetes as impelem a problemas teóricos e éticos, como eu. Parece-me que, no Brasil ao menos, a gigantesca maioria da população nunca tenha mesmo lido seus nomes ou sabido do debate.

Os ateus no vídeo são Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam Harris e Christopher Hitchens, todos convidados pelo primeiro, acredito. A vantagem de ter quatro ateus discutindo e nenhum religioso é justamente que enfim (o vídeo é velho, porém postado no fim do ano passado) se pode ver o que eles têm a dizer fora de uma situação de debate, mas, ao mesmo tempo, trocando ideias, questões, provocações e experiências. Eles concordam em várias coisas, mas se colocam problemas e propõem dúvidas que têm ou a que foram expostos em suas próprias carreiras. Estão, portanto, avançando numa conversa, mas lidam com uma boa fé que seria difícil despontar se estivessem numa situação de ataque-resposta. Ao mesmo tempo, eles podem entrar em detalhes de certos problemas ou dúvidas porque a conversa, em certo sentido, anda. Existem certos caminhos metafísicos que ateus e religiosos não podem trilhar juntos. Amarrados, uns puxam para um lado enquanto outros puxam para o outro e ninguém sai do lugar. A vantagem, portanto, de se ter certa concordância no geral, é que o vídeo permite que se explore mais detalhadamente as discordâncias entre eles próprios. Também, por algum motivo, não sei se esse, na conversa Hitchens está particularmente calmo e bem intencionado, o que não considero seu natural. Para mim, na verdade, é o pior dos quatro, apesar de fazer algumas boas participações nesse vídeo. Não esqueço, no entanto, que foi capaz, em outro debate sobre religião, de apoiar a guerra dos EUA no Oriente Médio com a seguinte frase: "I know a just war when I see one". Além de considerar a proposta cristã de amar o próximo como obscena e radicalmente contrária à moral (porque ela implicaria, para ele, apenas não se defender do mal e entregar os próprios entes queridos e modo de vida à morte).

Enfim, meu principal estranhamento em todo o tal God Debate era que as religiões do mundo (todas) fingem uma unidade que não têm. Quando o assunto é aborto, todos que querem defender determinado ponto de vista com base em Cristo de repente parecem concordar como "cristãos". Só que seus cristianismos são na verdade conflitantes em quase todas as afirmações sobre o universo, Deus, vida e moral. Mais do que isso, cada religião em si, para mim, finge sua unidade: um católico que reza para Santo Antônio mais do que para Nossa Senhora Aparecida, outro que reza sempre e unicamente para Santa Clara e um que se concentra em Jesus Cristo e não dá muita bola para santos tendem a discordar não apenas em seus alvos de preces, mas também em todas as questões que citei (universo, Deus...). Podem achar que creem no mesmo deus único, mas descobririam que não se tentassem descrevê-lo ao mesmo tempo. Alguém versado em teologia absolutamente não tem a mesma religião que um cidadão que nunca ouviu falar em São Tomás de Aquino por mais que ele vá sempre à igreja e observe todas as liturgias. 

Apesar de tudo isso, por causa desse fingimento de unidade, os ataques de ateus militantes a religiões podiam combinar formas e crenças religiosas quase aleatoriamente, atacando algo com base na teologia e outra coisa com base numa paróquia da Flórida, o que me parecia injusto. Por outro lado, as defesas das religiões podiam aproveitar a mesma confusão e defender a paróquia usando teologia e filosofia sutil, quando estas obviamente não representavam a prática daquela.

Ninguém estava, portanto, lutando no mesmo terreno, ainda que os tiros de uns e outros tenham proporcionado a aparição de informações, anedotas e erudições interessantes para alguém que os acompanhasse como certo hobby (moi). Pois bem, a conversa quase entre amigos presente nesse vídeo permite finalmente que eles entrem nesse problema da diversidade de cada crente e do fingimento de unidade (é apenas um pedacinho da conversa, mas valeu), de modo que fica claro porque e como o problema se apresenta para cada um, o que também permite certas acusações graves (verdadeiras) a respeito dessa confusão quando utilizada por filósofos e teólogos. Ao mesmo tempo, esclarecem quais deles atacam todo tipo de religião (e por quê) e quais seus argumentos contra a prática cotidiana e a filosofia dos teólogos.

Enfim, não sei se o vídeo pode interessar a alguém, mas resolvi apresentá-lo aqui, como pude, porque ele é mais de uma hora para que se escute um lado do debate com certa atenção e sem o espírito belicoso de um debate, algo raro que deveria caber dentro de um debate, mas raramente acontece na nossa forma de discutir ideias hoje. Não acho que o grupo fale muita besteira, apesar de não concordar com algumas coisas, especialmente com certas afirmações perto do fim, portanto achei a indicação aqui válida. Também devo dizer que o vídeo está inteiro no youtube ainda que tenha alguma variação de postagem, de modo que às vezes é preciso diretamente procurar a outra parte em vez de simplesmente a encontrar à mão na coluna à esquerda da tela.

Politicamente mais correto

Li agora que se deve dizer e escrever homossexualidade, sempre. Homossexualismo virou termo homofóbico "porque 'ismo' é terminação de doença". Vocês sabem, como capitalismo, marxismo, judaísmo, hinduísmo, jansenismo, feminismo...

PS: A afirmação surgiu porque o raciocínio mágico que regra a relação dos politicamente corretos com a linguagem descobriu que, pela etimologia grega do sufixo, uma de suas acepções, naquela língua morta, seria "doença".

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Ditadura na nossa cara

Conforme a lenda, e a impressão de algumas pessoas que conheço e que estiveram por lá, a Alemanha passou por uma espécie de ressaca do Holocausto. Exposta a barbárie e derrubado o governo, dizem que eles não souberam o que fazer com aquele naco de sua história até recentemente. A campanha que mantém a memória do Holocausto viva ficou forte em outros países, principalmente nos EUA, claro. Enfim, a história foi ficando distante e, supostamente, memória e acusação foram saindo do silêncio autóctone. Ao mesmo tempo, claro, o neonazismo foi recuperando visibilidade.

A ditadura militar brasileira curiosamente fez um percurso que parece inverso, mas acho que está terminando na mesma porcaria. Em primeiro lugar, não precisamos nos chocar com o pior que fizeram, porque muito do que fizeram não é bem conhecido ainda. A maioria dos documentos escabrosos parecem ter ficado fechados (ou foram queimados) em vez de serem expostos por nações estrangeiras e inspirarem julgamentos internacionais e filmes americanos. Além disso, a derrubada de nossa ditadura teve grande propulsão interna, de modo que a galera que venceu tinha todos os motivos para, em vez de silêncio, fazer algazarra na ressaca.

Então por alguns anos foi óbvio odiar a ditadura. Eles eram demônios, terríveis, odiáveis, traidores, corruptos e, para piorar, uma galera deles seguiu no poder... Por outro lado, a falta ou destruição de documentos manteve o regime sob um silêncio prático. Se ideologicamente havia clichês à mão para detestar a didatura, o que mais se quisesse falar e estudar a respeito com algum embasamento andava sob fortes restrições.

As pequenas tentativas que foram feitas para nos recuperar desse silêncio parecem ter andado de par (como na Alemanha) com uma mania de se defender a ditadura, a ponto de militares andarem ostensivamente valorizando o golpe, inclusive fazendo com isso frente à presidente. 

Só que, mesmo que a VAR Palmares tivesse torturado filhos de militares, nada justificaria o regime que se sustentou no Brasil de 64 a 85. É absolutamente ridículo que se honre quaisquer datas relacionadas a uma ditadura que, com o pouco que se sabe objetivamente, com certeza matou e torturou inimigos políticos (categoria, como se sabe, incrivelmente ampla) além de manter a democracia brasileira trancafiada por todos esses anos. Além da violência direta, imediata e óbvia, quantos outros resultados esse tempo de ditadura deixou no Brasil, seja na educação, na cultura ou no habitus político do país?

A Comissão da Verdade pode ter os problemas que tiver, isso nunca vai ser argumento pró-ditadura de 64! Que coisa mais mentecapta de se pensar política nacional como briguinha de crianças. Um lado não ter razão NÃO é prova de que o outro tenha! Nem mesmo a Lei da Anistia permite que se fale bem da ditadura. Ela diz respeito a esquecer (judicialmente) o feito por dois lados, e é só isso que ela permite. Não é, no entanto, porque não se é exigido publicamente por seus atos que esses mesmos atos tornam-se moral e historicamente neutros, menos ainda louváveis! Não é porque alguém não é punido judicialmente que sua culpa deixa de existir. Que aconteceria se a Dilma se vangloriasse de atos terroristas, mesmo que contra uma ditadura, fossem diretos ou indiretos? Por que se aceita que militares se vangloriem por uma ditadura, ou que tentem tratá-la como uma evento aceitável e compreensível de nossa História? Por que têm podido valorizar a merda que impuseram a todo o país?

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Shakespeare's the man

Sei que meu título repete algo que já foi atestado muitas vezes, mas preciso expressar minha última experiência comprovando o poder desse cara.

Por uma série de motivos, o texto ideal para trabalhar minha matéria com duas turmas finais de Ensino Fundamental me parecia ser o discurso de Marco Antônio na cerimônia fúnebre em homenagem a César, texto da peça Júlio César, de Shakespeare. Isso para turmas que não trabalharam teatro com ninguém, não estavam nem conversando sobre literatura comigo, que dirá sobre Shakespeare. Só que era O texto! Eu sabia que maioria deles não sabia nem quem eram Shakespeare e Júlio César (fato que comprovei hoje), mas era O texto. Bom, o jeito era apresentar todo o quadro e torcer para que estivessem abertos.

Quando terminei de apresentar os personagens relevantes para a cena (César, Marco Antônio e Brutus) e de relatar o lendário assassinato do imperador dentro do senado romano, a galera já estava bem disposta a prestar atenção no texto. Mas, sempre tem aquele zunzunzum, especialmente na última das duas turmas, que esteve particularmente agitada hoje. Pois bem, conseguindo que a maioria prestasse atenção (em minha tradução, livre e em prosa! - mas mantendo a cadência do texto, dentro do que consegui), comecei a ler, e a força do texto me deixou mesmo impressionado. Nunca tinha lido isso para gente tão nova (13-16 anos), então achei impressionante como o ritmo e o tom foram tomando conta da sala, um silêncio atento tomou conta da turma. Parecia que nem havia mais barulho fora da sala (nas duas vezes em que li o texto!). Não sou nenhum ator, mas notei que o ritmo do texto e o crescente silêncio fizeram com que minha voz fosse lentamente se levantando e se tornando mais dramática, sem que eu fizesse força para isso ou tentasse afetar emoção. 

A leitura do texto foi como uma pequena viagem intimista com a turma e teve um efeito muito inesperado. Aliás, não só eles entenderam o texto, como pegaram imediatamente o implícito, a ironia com que Marco Antônio tenta insurgir o povo contra Brutus e os demais senadores. Alguns inclusive tinham pegado nojo do Brutus, que era um "cara nada a ver". 

Uau! Shakespeare definitivamente é o cara!

terça-feira, 12 de abril de 2011

Ônibus passados

Hoje uma daquelas pessoas simpáticas entrou no ônibus largando o cigarro e bafando toda a fumaça para dentro do veículo. Afinal, a lei proíbe cigarros, o que a fumaça teria a ver com isso? Nada!

Bom, mesmo estando a 3 bancos da roleta, comecei a sentir o cheiro de cigarro do cara enquanto ele procurava trocado na carteira. E eis que tive uma surpresa: aquela forma decantada de cheiro de cigarro, o fedor característico do fumado por aquele cara ali era um componente importante e dominante no cheiro de ônibus clássico! Eu lembrava o quanto era desagradável andar de ônibus numa determinada época, mas achei que a modernização da frota e o enrijecimento de meus sentidos tivessem todo o crédito por eu não achar nem de longe as viagens de ônibus atuais tão ruins quanto aquelas antigas. Mas, vejam só, muito daquele fedor característico era cigarro decantado, que eu, na época, não sabia discernir! As coisas que aprendemos com os desagradáveis do dia-a-dia...

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Pedagogia, Ciência desHumana

Como a polícia do politicamente correto ainda não encontrou a pedagogia? Eu sei que se tem a impressão contrária, por tantos cuidados na escola com todo tipo de etnia e separação social, com termos como pedagogia do oprimido ou inclusão, mais ainda agora com o "Escola sem Homofobia", que causou tanto frisson com a apresentação pública feita pelo Bolsonaro. Mas tudo isso é o politicamente correto (entre outras coisas) dentro da pedagogia. Pergunto como os politicamente corretos não se voltaram para a própria pedagogia, para a formação para o papel de educador, para o questionamento do que ele é, a começar (como impõe seu fetiche pela linguagem) pelo próprio termo.

Diz-se que pedagogia vem de paidós (criança) e agogé (condução). Diz a lenda que o pedagogo era o cara (escravo) que "conduzia" a criança na Grécia e que, por pequenas transformações, passou a acumular responsabilidades educativas. Foi lá ainda que (no século V a.C., provavelmente) o sujeito que ensinava gramática, música e ginástica (educação como se entendia até então) passou a precisar também formar o aluno como cidadão. Essa coisa de cidadania e educação, portanto, está longe de ser novidade pós-moderna. Até a passagem de "condutor" a professor especializado se repete ainda hoje. Na última década, por exemplo, as "tias" de creches (maioria das profissionais da área, que tecnicamente não eram consideradas profissionais no sentido rígido do termo) passaram a sofrer pressão legal para se especializarem e ostentarem diplomas.

Pois bem, eu pergunto: como assim "conduzir", cára-pálida? Quer dizer que os politicamente corretos aceitam que alguém possa ser responsável por indicar caminhos e cercear outros para uma criança?! Esse é um ato rico em analogias que deixam os politicamente corretos de cabelo em pé (cercear, censurar, impedir, direcionar). Como pode que ninguém gritou e o termo não caiu? Com certeza não é por número de pedagogos nem por praticidade: quantas vezes os deficientes, por exemplo, mudaram de nome nos últimos cinco anos, deixando até os especialistas na área um pouco perdidos e (ufa!) cansados de malabarismos verbais com eufemismos sem sentido?

Minha teoria é que pedagogos (e politicamente corretos, grupos que nem sempre coincidem, por incrível que possa parecer para alguns) preferem continuar com ênfase na condução (ou seja, na ideologia), não na técnica (conhecimento), e isso implica, por sua vez, seguir "direcionando" e "conduzindo", novamente buscando usar a escola para formar cidadãos, aliás, como há quase 2500 anos atrás (e depois acham que a sala de aula é a coisa mais antiquada da Educação). É essa ênfase que mantém a educação entre as Ciências Humanas, só que isso no mal sentido. Sei que parece uma coisa boa, mas me parece que isso tem tido consequências "humanamente" mais nefastas do que se supõe.

Permitam-me esclarecer que estou questionando a Pedagogia num sentido amplo, não apenas no sentido do curso de Pedagogia das universidades. Todas as licenciaturas consideradas em grupo, todos os professores pensados ao mesmo tempo, todos os pedagogos lecionando, aconselhando ou supervisionando... pense-se em tudo isso e então se olhe para a questão: a pedagogia é mesmo a "ciência da educação", como quer sua definição? Ou ainda, por que motivo a pedagogia não é uma ciência "não-humana"?

Porque todos os alunos são diferentes...? Pelo conhecimento científico atual, podemos prever muito mais sobre alunos que entrarão nas salas de aula no ano que vem do que sobre galáxias e estrelas, nem por isso Astronomia não é ciência dura. Cada sujeito é especial, único? Ora, cada molécula é diferente da outra, se quisermos! O problema filosófico da identidade, aliás, pode se aplicar até a um elétron que esteja em dois lugares ao mesmo tempo. Nesse sentido, nitidamente o objeto é criado pelo método de análise. Nosso olhar para os alunos é o que destaca sua diferença ou semelhança, e destacar a diferença é contraditório com nossa valorização da educação, por um motivo simples: não se quer que cada aluno saia igual do colégio, raras vezes na história deve se ter até cogitado tal absurdo, mas por milênios se quer ensinar as mesmas coisas para o grupo todo de cada turma. O problema da padronização aterroriza mesmo pelo lado ideológico, não pelo técnico. Este herda o terror daquele, e as pessoas acreditam que não querem alunos massificados, mas há aí uma confusão associativa e, como geralmente é o caso, ilógica. 

Existe uma enorme quantidade de conhecimento, alguns inclusive bem complexos, que se quer sim idêntico em todos os alunos: ler, escrever, calcular, localizar-se espacial e socialmente... É claro que todos atingirão níveis diferentes, mas o espectro socialmente valorizado é na verdade bem curto. Alguém acha que se fica satisfeito com alunos que não sabem que vivem no Sul ou no Norte (do estado, do país, do planeta...)? Alguém acha que alunos podem escrever o próprio nome errado? Ora, as pessoas se escandalizam por alguém não conhecer a bandeira de seu país, ou se ridiculariza os EUA por tantos americanos não saberem nem onde ficam os países com que o seu trava guerras! Chega de hipersensibilidade a termos: a padronização é sensivelmente ruim quanto mais ela significa falta de senso crítico, mas existe uma penca de coisas que precisam ser sabidas para se ser cidadão. Tudo isso não implica necessariamente alterar diferenças ideológicas individuais (é possível gostar das mesmas músicas que antes e ser alfabetizado), mas, no que diz respeito a "conhecimento para todos", o que se quer ensinar pode ser considerado "massificante", só que essa massificação não é ruim. Nem todos precisam concordar com o hino, mas todos deveriam saber interpretá-lo.

Toda essa formação básica é necessária para se ser um cidadão minimamente próximo do ideal descrito em qualquer planejamento pedagógico ou em qualquer plano de escola brasileira. Pois bem, todos os alunos têm mais ou menos os mesmos cérebros (se comparados a macacos, elefantes, ratos...). A respeito desses seres humanos, neurociência, linguística (um lado dela), psicologia, antropologia, sociologia... uma série de ciências acumularam e acumulam conhecimentos. Quanto disso é usado no ensino? Perto de zero. É verdade que pedagogos (psicopedagogas em especial, pela minha experiência) utilizam o que estudam de algumas dessas áreas na sua prática, mas isso em geral vem de esforços próprios, cursos de especialização (sendo raros os de qualidade, claro) e outras buscas pessoais. Além disso, mesmos os que mais se esforçam não sabem tanto da maioria dessas outras áreas, porque muita formação ideológica e muito tempo de trabalho tomam o tempo de que precisariam para aprofundar tais conhecimentos. O quanto os educadores NÃO sabem sobre educação, seres humanos e neurologia, o quanto os cursos de licenciatura NÃO usam a Ciência para formar seus currículos, o quanto NÃO se estuda do conhecimento objetivo que se tem acumulado sobre o ser humano ANTES de as pessoas trabalharem com educação é impressionante. 

O que se estuda em pedagogia e nas licenciaturas? A ideologia, em grande parte. Repetições de clichês se acumulam com certas revisões das leis, como se saber leis e exercê-las fossem coisas análogas. A maioria (se não todos) os professores reclama de não ter aprendido a dar aula nas faculdades que cursaram. Por que isso é uma regra? Por que essa regra não muda? Porque a ênfase não sai da ideologia. Aquilo de que os professores recém formados sentem falta é da técnica! E técnica, diferente do que ideólogos de plantão ironizam, não implica ignorar ideologia nem, pelo outro lado, quer dizer  "receita para dar aula". Essa ironia vem do fato de que muito da preocupação com a formação cidadã ignora o quanto temos de aprender para nos tornarmos cidadãos, o mesmo valendo para a preocupação com a formação de uma postura crítica.

Ironicamente, esse tipo de ideólogo ignora também um outro sujeito da escola: o professor. A relação entre professores e alunos é (dã) pessoal, sempre! Existe muito espaço para ideologia aí. Melhor dizendo, tudo na construção do conhecimento é ideologia, ou está imerso nela (mais até do que esse tipo pedagogo ou professor enxerga). E os alunos têm curiosidades ideológicas muito mais do que conteudísticas ou informativas. Se a ideologia está implícita e sempre presente, para que fingi-la, para que trabalhar a ideologia de forma afetada se ela estaria lá mesmo que não quiséssemos? Se tudo é ideologia, para que colocá-la em primeiro plano? Não há maior exemplo de péssimo letramento: querer inserir no ensino aquilo que se afirma onipresente!

Uma ênfase na técnica, portanto, na ciência do ser humano, da aprendizagem e do conhecimento na formação de educadores não apagaria de nenhuma maneira a formação ideológica da prática de sala de aula. No entanto, uma formação que só vê a ideologia e ignora tanto conhecimento e tanta técnica quanto consegue, usando alguns saberes mal colados e agregados sem método como base de uma formação ideológica (cidadã, crítica...) falha miseravelmente, porque é preciso conhecimento para questionar, criticar, duvidar, supor, até imaginar, assim como é preciso conhecimento para formar os alunos, tanto técnica quanto ideologicamente. Um professor com a bandeira que recebeu na universidade é, em sala de aula, um mudo tentando falar com surdos. Um professor com técnica e conhecimento não deixa de ter uma bandeira, mas ela provavelmente é diferente daquela que seus formadores queriam que fosse, porque um professor com técnica só pode ser um autodidata.

Por natureza, a maioria de nós agrega pouco conhecimento e horizontes curtos. Não criamos as escolas à toa, mas porque sentimos a necessidade de formar crianças num estado intensivo e arbitrário. Por que se "valorizar" tanto a escola e a educação e ainda se sentir tanta vergonha do caráter autoritário que está sempre implícito nela? É óbvio que não precisamos ser autoritários além da conta, mas é impossível forçar o comportamento de uma criança (impedindo-a de estar em casa ou brincando na rua, para começar por baixo) por pelo menos 5 horas de 200 dias por ano e sustentar que não estamos sendo autoritários nessa relação. Para formar alguém que possa até mesmo nos criticar, é preciso antes formá-lo, e esse verbo não vem sem certo custo para as sensibilidades politicamente corretas. Bom, azar o delas.

Sei que isso é muita exigência, mas Pedagogia nem deveria ser uma faculdade, mas uma especialização acessível apenas por pós-doutorado. Por que não formamos para educar apenas pessoas que já estudaram (muito) o ser humano? Por que achamos que podemos aprender a educar sabendo tão pouco sobre os sujeitos com quem vamos trabalhar? Por que a pedagogia ser uma Ciência Humana acaba implicando despreparo e falta de método?

The ennui of Ferris Bueller, by Joseph Brett

sábado, 9 de abril de 2011

Enfim uma boa teoria para as pirâmides



Cuidado, ele grita muito...

Livro comércio

Uma coisa muito chata do livre mercado é que um resultado comum acaba sendo termos uma só opção de qualidade. Todas as outras, frente à vencedora, merecem ser enterradas e esquecidas. É o caso de Porto Alegre, em que há apenas uma livraria. A única outra alternativa de verdade é a Internet. 

Visitar a loja das concorrentes é sofrer, e sofrer tanto mais porque temos o horizonte daquela que é uma livraria de verdade, ou pelo menos o melhor que a cidade pode oferecer. Antes, podíamos sair de mãos vazias e um pouco incomodados das que já existiam por aqui. Mas nos últimos anos, mal acostumados, saímos quase revoltados daquelas mesmas lojas. As livrarias não pioraram, em geral até melhoraram um pouco, mas elas comem poeira da campeã. Falta a seus donos competência, tino, organização... São tantos os defeitos desses empresários frente aos do único estabelecimento decente da cidade que quase dá pena. Só não dá pena mesmo porque eles deixam a desejar demais, tanto que irrita.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Quatro dias sem luto: meus sentimentos segundo Dilma

Eu não sou grande especialista em República, mas estou ficando ainda mais confuso com os poderes presidenciais. Nas últimas duas semanas, tivemos 10 dias de luto, pelo que entendi (7 para Alencar, 3 agora para as crianças de Realengo). A coisa me pareceu ainda mais bizarra quando vi o Washington Post falando sobre o crime parar/chocar (to stun) a nação.

Desculpem os mais sensíveis, mas que nação? É claro que os jornais estão em cima com toda a vontade, e é claro que muitas pessoas ficaram impressionadas ou tristes, mas "choque" não foi o sentimento que dominou os viventes por aqui, sinto muito.

Dilma até mencionou em seu discurso repudiar esse tipo de ato violento. Ora, o assassino está morto e, pelo que tudo indica, não batia bem. Alguém tinha dúvidas de que nosso governo repudiasse loucos matando crianças em escolas? E aqueles assassinatos até dizem alguma coisa sobre o Brasil, mas muito pouco: basicamente que temos bullying (para usar o nome da moda), falta de segurança e loucos. Parece-me que pouca gente ficou realmente chocada exatamente porque, bem... já sabíamos de tudo isso. Tentaram inventar umas questões religiosas para salgar a história, mas não cola, além de não acrescentar nada ao quadro geral; aquilo não é religião, é insanidade.

Alguns impressionados, outros não... independente disso: por que a presidente (ela ou quem estivesse no cargo) pode declarar luto por todos? A gente vota em presidentes para que façam um monte de coisas, mas para governar ou expressar nossos sentimentos a respeito das ocorrências da vida e do mundo? Não creio... E, se ela está mesmo expressando "nossos" sentimentos, por que o Alencar ganhou 7 e as crianças merecem só 3 dias de luto? Vai dizer que o tiroteio não moveu mais gente que o ex-vice que saía e entrava no hospital havia meses e que não significava nada para a enorme maioria da população? Já as crianças, especialmente as desconhecidas, sempre têm sentido para nossas personas. Pressupõe-se que tinham uma vida pela frente. Acaso Alencar já tinha ganho muitas dias de homenagem e não sobraram tantos de uma cota mensal de luto oficial?

Mas, como disse, entendo pouco do nosso governo. Talvez a presidente possa falar pelos sentimentos de "seu" povo, assumir determinadas posturas morais, pressupô-las para todos, ou impô-las para aqueles que não seguiram as expressões obrigatórias dos pesares de praxe. No fim das contas, ela acaba colocando todo o mundo bem na foto, o que talvez seja um trabalho digno. Mais estranho ainda é que ela deva fazer tudo isso. Que lhe seria cobrado não ter falado o óbvio por todos e realizado algum tipo de ação burocrática simbólica, como decretar esse luto.

Enfim, curiosa essa nossa relação com presidentes: seja como for que experimentemos um acontecimento, podemos descobrir nossos sentimentos oficiais pelos jornais.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Os pescadores e as políticas públicas

Numa frase que é mais complexa do que aparenta, eu devo dizer que há dois tipos de professores: os bons e os ruins. Isso é mais complexo porque "bom" e "ruim" não são aqui variações num mesmo espectro. Eles são mesmo denominações de seres que têm natureza diversa.

Os professores ruins são os que impedem o desenvolvimento dos alunos. Ofertam exercícios ou práticas emburrecedoras, cortam a criatividade e a curiosidade deles, tratam-nos mal, seja de forma desrespeitosa ou diretamente violenta. Os bons professores não tornam seus alunos inteligentes, nem desenvolvem neles criticidade, ainda que os tratem bem. Essas coisas podem ser provocadas pelos professores apenas de forma figurada. Os bons professores, para usar outra figura, são pescadores. Eles lançam a rede e ajudam os alunos a sair do mar primordial da ingenuidade (em relação a conhecimento, lógica e horizonte) para a existência adulta. É claro que isso é feito aos poucos, e nenhum professor ajuda no processo todo; cada um dá um empurrão, mas é nessa direção que o sujeito vai. Por isso professores bons e ruins são de natureza diferente. Os ruins constroem e reforçam barreiras, os bons desenvolvem e lançam redes. Quanto pior o professor, mais forte, mais opaca e mais alta a barreira. Quanto melhor, maior a rede e mais longe ele a lança. - Apesar da diferença de "natureza", a maioria dos professores não é sempre bom nem sempre ruim, me parece.

O aparente bucolismo da imagem de um professor lançando redes pelo mar da vida não está aqui para embelezar o trabalho dos professores, apenas para criticar uma precaução da pedagogia moderna. Trata-se atualmente como se o professor educasse e o aluno aprendesse, indicando-se com isso que os dois movimentos são diversos, nenhum implica necessariamente o outro, ainda que ambos sejam necessários na escola. Um professor "educar" não significa necessariamente que um aluno "aprenda". A coisa toda deve ocorrer de maneira mais dialógica do que se pensava a.P. (antes de Paulo [Freire]).

Isso não é suficiente. Pela imagem do pescador quero dizer mesmo que o professor nunca "educa". Ele pode ajudar peixes a sair do mar, não pode gerar bons peixes no mar. Pode permitir que uns sofram metamorfose, mas não pode fazer essa metamorfose por eles nem indicar realmente o valor dela, a não ser em situações raras demais para embasarem nossa crença ou espera por um futuro melhor. O professor não pode, também, aumentar o número de bons peixes onde eles são raros.

Ora, que preconceito da minha parte! O que seria um "bom" peixe? Aquele mais adequado à minha bitolada visão de mundo? 

Sim. Minha bitolada visão de mundo diz que as pessoas deveriam aprender a andar com os próprios pés, julgar a vida de acordo com boas e significativas experiências, bem como pela lógica e pelo mais vasto conhecimento de mundo que conseguirem arrecadar de livros, internet, amigos, conhecidos, desconhecidos e, especialmente, experiências. O "mau" peixe, para mim, é aquele que não quer sair do mar, o que, correndo o risco de soar um pouco freudiano, quer dizer aqui "sair da barriga da mãe". É claro que por isso eu não quero dizer sair da barra da mãe, porque só as mães de certos grupos particulares são protetoras e carinhosas. "Mãe" tem necessariamente sentido muito amplo e metafórico aqui. Indica basicamente tudo aquilo que nos protege e nos mantém numa redoma. Que curte que fiquemos nessa redoma. Pode ser o Grande Irmão, o Grande Pai, o Grande Pastor, o Grande Partido, a Grande Igreja, a Grande Lei, a Grande Bolsa, ou, quem sabe, a Grande Mãe mesmo (para clérigas de religiões matriarcais). Qualquer coisa que nos proteja a custo de nosso desenvolvimento.

Apenas ofertam conhecimento e questionamentos, os bons pelo menos. As pessoas educadas ou propensas a aproveitar aproveitam, saem do mar porque querem (mesmo que não saibam dessa vontade). O grande mérito que o professor pode puxar para si é o orgulho de não ter levantado barreiras (o que é bem mais complexo do que deve aparentar sendo posto assim).

Não conheço muitas coisas que educam. Políticas públicas, porém, eu decididamente colocaria nessa lista. Essas políticas educam. Basta dar dinheiro para um pessoa ir para a escola e o sujeito não apenas passa a ir como aprende que merece dinheiro por isso. Que, sem salário, não deveria ir na escola. Familiares também educam, porque são capazes de ensinar para alguns que, apesar da bolsa, não é por ela que se deve ir à escola, mas por alguma outra coisa que o professor lhes irá ofertar. Mas familiares estão no mundo conforme a educação que seus próprios familiares deram, enquanto as políticas são pensadas e planejadas por profissionais com um objetivo uno e claro.

Políticas públicas educam, e têm conseguido maravilhosos resultados. Uma massa de pessoas hoje em dia, por exemplo, por mais que não se gostem, que não se deem valor, que se considerem o esterco da humanidade, que se esforcem só até conseguir sexo, comida e música, querem com muita força receber auxílio. Querem ser ajudadas, mas porque sofreram, ou sofrem; porque têm dificuldades e boas intenções (ou só porque dizem ter). Elas esperam uma mão amiga. E isso sem se darem nenhum valor e sem acreditarem que, por esforço próprio, chegariam a algum lugar.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Brasil e Bolsonaro, feitos um para o outro

Este post pressupõe forte desrespeito pelo ser humano. Sinto se ficares insultado.

Eu costumava pensar que o feminismo e o politicamentecorretismo mais chatos eram aqueles que não permitiam que se fizesse nem piada no bar sobre qualquer coisa. Mais: o cara podia estar bêbado, entre amigos e em contexto plenamente favorável a ser bem compreendido: falou "judiar", queima!

Continuo contrário à conclusão de que alguém ser queimado seja solução para problemas sociais, mas estou sinceramente repensando meus julgamentos a respeito das obsessões desses "chatos". E o que tem feito isso é um assunto que eu pretendia ignorar no blog, mas não consegui: o (novo) caso Bolsonaro.

Superficialmente eu diria que é errado policiar o que as pessoas pensam, mas eu não posso dizer isso com a cara séria por alguns motivos, especialmente porque o que as pessoas pensam realmente não incomoda ninguém, é o que elas dizem ou fazem em cima disso que incomoda. O que o "vilão" pensa aterroriza apenas por indicar que a pessoa pode repetir a ofensa que disse ou fez. Assassinato é oficialmente repudiado pela maioria das pessoas, mas saber que alguém é um psicopata assusta muito mais, exatamente porque isso implica que o sujeito pode matar de novo. É por isso que eu uso como metáfora de exagero a ideia de que "se policia até aquilo que as pessoas dizem no bar". Sei lá, me dá uma impressão de ser o melhor exemplo de contexto relativo e relaxado onde se libertam às vezes ideias mais sinceras (e menos permitidas) entre ouvidos amigos e em pretensa inconsequência. 

Além disso, é meio engraçado dizer que é errado policiar o que outros pensam quando todo o mundo quer saber o que pensamos e quer nos julgar por isso mesmo. Está longe de ser exclusividade de governos e ONGs. Então a crítica à "censura do pensamento" é literalmente à punição financeira ou física ao indivíduo pelo que ele expressa em qualquer situação. Censura ao pensamento não pode ser literalmente combatida porque é ainda vontade geral da nação: nenhum grupo social está livre de perder boa parte de seu tempo tentando "corrigir" os outros (a menos que não tenha nenhum respeito ou interesse no outro grupo - o que implica ser mais poderoso que esse outro em relação a seus próprios interesses). Essa "correção" nem sempre é, mas cai facilmente em censura, ainda que uns escorreguem e caiam nessa postura volta e meia enquanto outros armem a barraca por lá.

No entanto, ingenuamente eu fico pensando que (no alegórico bar) é possível deixar escapar coisas as quais, numa situação bem pensada, não seguiríamos, que é possível dizer uma coisa ao léu e não agir conforme aquela bobagem. Pode até ser uma piada; quem sabe a pessoa tem senso de humor?! Enfim, imagino sempre uma refração entre o pensamento espontâneo ou descuidado e a prática social séria de um mesmo indivíduo. Eu sei que dito assim a coisa parece ingênua demais, mas isso me vem da seguinte situação: muita gente diz que gostaria que outra morresse. Isso acontece a todo momento, milhões e milhões de vezes. Pelo que me consta, chacinas são coisas que acontecem em situações sociais bem específicas e não nascem desses comentários nem de todos os ódios que existem na Terra. Quantas pessoas nesse momento acham que querem transar, mas na hora H fugiriam da raia? Quantos querem esmurrar aquele atendente, mas não vão?

É claro que essa refração é pequena. Não acho que uma pessoa que defenda machismo à la anos 1950 não seja machista, mesmo que o diga num bar, mas também não acho que ele pratique todo o machismo que professa. Enfim, o que quero dizer é que há uma margem de erro entre o que se diz e o que se faz, assim como entre reações momentâneas ou emocionadas e a postura social que sustentamos.

Quer dizer, isso é o que eu achava. 

O não-problemático para essa teoria é o que Bolsonaro disse, já que espero imbecilidades de um imbecil. O problema é que as pessoas que diriam por reflexo "Tem que matar esse cara" realmente o disseram da maneira mais pública que encontraram. E não apenas o fizeram como sustentaram a reação emocional, burra, ignorante e absolutamente animalesca a sério. O Bolsonaro é idiota de achar que o que ele sente e o que ele pensa são a mesma coisa e, por isso, a soma de suas reações ao que acontece no mundo formaria uma bola racional e coerente que merece ser defendida publicamente. Não bastasse isso, seus sentimentos são violentos e suas ideias são infundadas. A mistura dos dois lados forma um amálgama difícil de se encontrar fora de grupos militantes universitários (de qualquer partido).

Ou seja, refração zero nesse cara aí. Só que quem respondeu a ele fez a mesma coisa. Transformou a primeira reação que teve em "bandeira moralista", defendendo uma resposta sentimental animal (nem tente se dizer que boa parte de nosso contemporâneo autopoliciamento politicamente correto não é adestramento do tipo estímulo-resposta) como bastião da razão, do respeito e da democracia. Ora, o que é moralista deve existir em relação a uma moral. Nossa reação instintiva de suprimir aquilo de que discordamos no mundo NÃO É uma moral. (Muitos diriam até que é o contrário de uma moral, que envolve sempre algum, se não completo, sacrifício de nosso interesse subjetivo.)

Talvez a ocasião faça mesmo o ladrão, e o poder de refração, que implica certa responsabilidade pelo que dizemos ou fazemos quando não estamos jogando conversa fora, seja mesmo algo inexistente, mais uma ingenuidade que descubro em minha mente pretensamente cética e pessimista. De repente, eu sinto dizer que o ultrapoliciamento de feministas e qualquercoisa-chatos tenha sim sentido, razão de ser: se a opinião de bar é a postura social moral das pessoas, então é melhor pegar o problema quando ainda não saiu do bar. Afinal, tanta gente acha, seriamente, que um Bolsonaro deve ser "corrigido" na porrada, exatamente como ele quer "corrigir" o homossexualismo em filhos alheios. A infantilização que as políticas públicas costumam praticar tem aí um bom argumento! Esses "cidadãos tão engajados" são sim um bando de crianças.

Este post, enfim, não conclui nada de muito novo. Talvez exista só para eu dizer para mim mesmo que, se um povo merece os políticos que tem, não há nada de se estranhar que os brasileiros tenham Bolsonaro, mesmo que, pelo partido dele, pudéssemos pensar que haja alguma oposição entre o sujeito e as pessoas que o criticaram. Partidos, bem se sabe, não querem dizer nada no Brasil. Considerando, então, a imbecilidade do Bolsonaro, quão assustadora é a conclusão "Brasileiros e Bolsonaros se merecem"?

A única resposta inteligente foi mesmo a do CQC, tanto comercial quanto democrática: chamaram o cara para conversar de novo. Sabem que conversar e concordar não são necessariamente sinônimos.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Not so Happy Port

Da Redenção para o chão

Pois é, pessoal, na madrugada do dia em que escrevo um post sobre a Redenção e os Novos Bêbados da região, o pessoal ataca a ponto de merecer notícia na Zero Hora.

Eu realmente achava que a confusão nos domingos da Lima e Silva tinha sido contida. O que acontece, conforme a notícia, é que o pessoal segue migrando e aprontando como antes (sexo, drogas e vandalismo). E olha que a rua é superpoliciada. Claro que não se pode destacar um batalhão inteiro para vigiar emos (que perderam, já há algum tempo, seu lado "sensível") e companheiros, mas tem uma concentração de PMs na Lima e Silva difícil de se ver em qualquer outro lugar de Porto Alegre (a não ser no Palácio da Polícia, que, aliás, é a poucas quadras dali).

É triste. Uma das grandes coisas da rua é sua segurança (em proporção às outras da cidade num mesmo horário) e o fato de o Zaffari estar sempre aberto. Do jeito que vão, será a reprise do que acontecia no meu bairro antigo: tudo que é bom atrai de tudo, inclusive vandalismo, e este termina com tudo que é bom...

domingo, 3 de abril de 2011

Happy Port Redemption



Acabo de voltar da Redenção e devo dizer que algumas mudanças, ainda que anunciadas, chamaram minha atenção quase como se fossem puras novidades.

Por exemplo, o fumo passivo de maconha definitivamente atingiu os mesmos níveis do fumo passivo de cigarro a que se está exposto no parque (ambos baixos só porque tem muito vento e muita árvore). Cães e crianças seguem correndo felizes (quem sabe mais felizes agora?), só que o número de cachorros já promoveu o desenvolvimento de uma sociedade canina de complexidade inovadora. A civilização canina se diverte com os humanos passantes, mas não lhes dá mais o mesmo nível de atenção que antes, absorta em seus próprios afazeres e problemas.

As tribos que sempre estiveram representadas aceitaram os emos pelo jeito como membros definitivos. Todos os grupos seguem, claro, tão misturados quanto ignorando uns aos outros, o que significa que a convivência pacífica de sempre segue imperando. Se se está na Redenção, pertence-se à Redenção, ao que parece. Basta chegar lá e se é aceito como se sempre fizéssemos parte da paisagem. As pessoas ainda são procuradas pela polícia se vão lá resolver suas brigas adolescentes à bala, mas, fora isso, tudo é aceito.

Mesmo a bebedeira, devo dizer. Nunca vi tanta gurizada bêbada por lá. Os adultos chegados numa cachaça ou em largas quantidades de cerveja seguem comparecendo, mas no mesmo número de antes. Agora, a piazada trocando as pernas definitivamente aumentou de número. Tinha até gente se achando o Tom Cruise em Cocktail.

Há muito que a burguesia MAIS burguesia abandonou a Redenção por academias e condomínios fechados (e um cara mijando na árvore me lembrou o porquê dessa migração), mas ainda há algo de "burguês" em passear ali, apesar de ser mesmo uma região hippie/emo/punk/família, em que cada grupo coloca suas drogas (maconha, cerveja, cigarro ou chimarrão) em pé de igualdade. Acho que esse ar "burguês" ainda resiste porque, mesmo em flagrante, todos ali são inocentes. É a Redenção, e não o Estado ou o Sistema, quem diz o que é aceitável nela. E foi isso o que me lembrou Shawshank.


sexta-feira, 1 de abril de 2011

A fine but silly effort

Jogo livre com o tempo

ou "Jornal Hoje eloquente"

"Nesta época do ano, em que o Pantanal tem uma das maiores cheias da história."

Isso é a natureza brasileira: todo ano faz um recorde, todo ano ela é mais! Uhuuuu!