domingo, 1 de dezembro de 2019

Peace, what is it good for?

Detroit: Become Human é um jogo de PS4 de 2018 que segue a estrutura dos antigos livros-jogos. A gente comanda três androides que fogem de sua programação e tentam viver de acordo com sua própria ética. Deles, o que inicia uma revolta contra os humanos era o que menos me interessava, até o ponto em que começamos a definir a postura geral do movimento: violência ou pacifismo.

Meu interesse no revoltoso sempre foi pelo caminho pacífico, porque eu queria muito descobrir qual era a opinião dos roteiristas a esse respeito.

Há tempos eu não consigo acreditar em mudanças sociais sem violência, por mais que eu propriamente seja muito pouco habilidoso para isso e, sempre que possível, um covarde. Eu não quero violência e o nível atual, sem guerra civil, já é mais que insuportável, a meu ver. Por outro lado, como qualquer coisa pode mudar se ninguém confronta o direito de violentar os outros, justamente a característica decisiva de qualquer elite (e rosas não ameaçam armas).

A retórica da unidade, do patriotismo,  do legalismo há muito escrachou sua natureza hipócrita de "racionalização para o status quo". A balela toda é infantil. A autoridade é sempre a máscara de uma violência que possa ser exercida assim que "se falte com o respeito".

É óbvio que existem outras formas de vínculo social facilmente confundíveis com autoridade, como o respeito, a admiração, o carinho... tudo isso pode provocar comportamentos que lembram a postura exigida por figuras de "autoridade", mas esta, se merece esse nome, é porque esconde uma violência potencial. O professor, o policial, o político, o traficante, todo o mundo só é "autoridade" se é capaz de punir aqueles que lhe desrespeitam.

Assim, o mantra da mudança pela paz flerta sempre com uma mentira sustentadora de elites: muita gente arrota pacifismo para justificar que se agrida quem ponha em cheque o poder, ou seja, que arrisque enfraquecer a autoridade (potencial de violência) da elite. Ora, quem tem poder de fogo só teme poder de fogo. Ao mesmo tempo, se alguém toma o comando via poder de fogo, nada nos garante que não o volte contra nós em seguida (como se vê nas trupes dos arrependidos em apoiar movimento ou partido tal, há séculos).

Enfim, qual a opinião dos roteiristas sobre o pacifismo? É um caminho difícil, martirizante, tênue, que só funciona depois de muitas mortes e no último segundo, com o apoio indireto de outras pessoas atipicamente éticas, construindo uma solução temporária, sem garantias. Tenho a impressão de que os roteiristas concordam comigo.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Aqui está bom, esta sala parece vazia

Então, é hora de retomar este espaço. Em parte, porque voltei ao Twitter, única rede em que marquei este blog; o real motivo, porém, é que estou precisando de uma desculpa para seguir escrevendo, especialmente se conseguir fazê-lo diariamente, sem a responsabilidade de montar um conto ou apontar para um romance. Passo por uma pequena crise de estilo, incomodado com coisas que se manifestam invariavelmente nos meus textos. Enquanto revejo minha perspectiva sobre o mundo e a humanidade, pensei em manter o exercício da escrita vivo por aqui.

Joyce Carol Oates costuma indicar para escritores que mantenham um diário, e isso certamente também é um fator para eu retomar o blog. Um diário clássico não faz meu estilo, mas quase ninguém deve passar por esta página hoje em dia. Suponho que apenas desavisados, enganados por qualquer link acidental, que logo saem correndo. Se as pessoas não querem ler meus posts, raros, de um parágrafo, no Face, ninguém deve acompanhar um texto num blog esquecido. Ou seja, aqui é o lugar certo para eu fazer um quase-diário.

Devo avisar, talvez, que, se alguém passar por aqui e quiser comentar, tranquilo. Eu pretendo ter raro ou nenhum leitor, mas saber que há gente lendo não vai me desmotivar de cara.

Visitar o blog tem outra vantagem: descubro que algumas crises minhas são anteriores ao que eu imaginava. O último post antes deste, por exemplo, eu suporia ter escrito em 2016, mas já estava daquele jeito um ano antes! É triste descobrir, porém, que o Brasil resolveu juntar 3 das 4 hipóteses que eu havia calculado como péssimos retrocessos. Não só os santos nos ajudam para baixo, o esforço dos eleitores é bastante poderoso.

Bom, eu não pretendo, por incrível que pareça, anotar nada tão obviamente político quanto aquele post. Na verdade, a Joyce, ou mais alguém que ouvi falar de diários, motivou-me a comentar coisas boas e curiosas que aconteceram no dia. Há algumas opções possíveis hoje, mas um papo na aula se destaca no momento.

Ontem uma série de gurias foram assaltadas depois de saírem da escola. Grupos diferentes delas foram abordados em sequência, por um mesmo cara. Hoje eu entrei na turma de formandos, no primeiro período, e as gurias assaltadas daquela turma vieram me contar a respeito. Elas já estavam meio recuperadas e logo, para minha surpresa, estávamos fazendo algumas piadas a respeito, mesmo que tenham perdido seus celulares e duas tenham sido ameaçadas de morte.

O positivo que eu pretendia comentar não é, por óbvio, que a violência seja tão pressuposta por todos que esse papo pudesse degringolar para o humor. O que se destacou para mim foi que, depois de anos dando aula para elas (sou professor de umas há dois anos e de outras há três), mesmo com atritos e muitas dificuldades, nosso convívio tenha promovido proximidade e confiança. Uma vez estabelecido que eu estava ali querendo que elas aprendessem e passassem de ano, nossas brigas recorrentes enquadraram-se numa perspectiva que favorecia uma boa relação, incluindo o esquecimento ou atenuação dos vários momentos ruins.

Eu não sou um professor afetuoso, comparado ao clichê de educadores. Não amo dar aula (muito melhor escrever) nem esqueço dos pesados abusos que governos e eleitores exercem contra a minha profissão todo santo dia. Eu odeio ser contratado por uma sociedade absolutamente hipócrita, que se engana por anos a fio a respeito do que espera da escola. Ainda assim, como disse, o convívio tem sua força, e em toda sala há gente com quem nosso santo bate. Foi um pouco o desgaste do cotidiano, portanto, com seu efeito benéfico, que preparou a mim e àquelas gurias, que tanto corrigi e com quem tanto já discuti, para que pudéssemos aliviar a violência e seu necessário trauma com umas leves risadas. O longo moer dos 200 dias letivos, pelo jeito, não planta só estafa.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

O paiseco à deriva

Entre Lava-Jato, "CPI do Mensalão", "Mensalão do PSDB + DEM", Zelotes e Petrobrás, o Brasil inteiro está sob investigação por corrupção. Há muito, admitimos a culpa de tudo e de todos. E o que se pretende oferecer como solução? Voltar ao passado, de não muito diferentes formas.

1 - Ditadura;
2 - Confiar no PT com paciência e perdão;
3 - Confiar no PSDB + velhos comparsas da economia da miséria;
4 - Confiar em pastores.

Haverá país mais deprimente? Com certeza, porque sempre existirão os que já estão em ditadura e os que vivem em guerra civil. Mas isso em si não o cúmulo da depressão? Que por pior que o Brasil seja, ele não é o pior. Não é, mas está tentando chegar lá.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

O dito animal social

Há meses tem me incomodado uma categorização que me veio à mente durante uma conversa - tardiamente eu diria.

A meu ver, há dois tipos de grupos humanos, aqueles em que todos se responsabilizam pelo grupo e aqueles em que o grupo serve para desresponsabilizar a todos. O primeiro caso é, negativamente, o que leva ao corporativismo e, idealmente, o que aponta para a fraternidade de "um por todos e todos por um". O ideal, no segundo caso, seria uma unidade democraticamente descentrada, como todos os recentes movimentos baseados no Ocupa Wallstreet pensam ser, mas seu negativo está mais próximo da prática, sendo tipicamente o ajuntamento psicologicamente adolescente que está junto só porque gosta, mas que pensa se unir por uma causa. O caso da polícia acusando Bakunin é engraçado, mas essa galera imitadora também não parece saber nada do Anarquismo que ostentam nas bandeiras.

A primeira consequência do descompasso entre seus motivos reais e sua ilusão é, claro, o típico desfazer desses grupos. Um exemplo ridículo é o que aconteceu com os manifestantes presos no Rio por suas supostas intenções (o que os conservadores preocupados com "polícia do pensamento" acharam natural e certo, nesse caso...). 

O caso contado por quem era do movimento lembra a infantilidade do clássico desmantelamento de uma banda de rock. Mas o que estou comentando aqui se aplica a outras esferas, e não tenho a pretensão de dar um golpe de vista psicológico e explicar o que está rolando agora, ignorando a ação da polícia, o poder financeiro da FIFA, as manifestações do ano passado e tudo que contribuiu para a postura policial.

Não, o que me tem chamado a atenção é que o grupo que usa a coletividade para se abster de qualquer responsabilidade acredita que nenhum deles pode ser culpado, porque os motivos lindos (almas irmãs, forças históricas, santos batendo) que os unem justificam suas ações e, praticadas em grupo, quem vai saber quem fez o quê exatamente?

Nenhum deles é a fonte do problema, eles estão bem intencionados, querendo apenas paz e companheirismo, portanto forças externas de autoridade não devem se meter. Ao mesmo tempo, ninguém pode responder pelo grupo, porque cada um ali faria o que acha certo; seria uma quebra da democracia fundamental entre os parceiros se alguém do grupo quiser afetar o comportamento do outro. Se um cobra do outro coerência ou respeito a acordos gerais, essa pessoa está sendo autoritária e abusiva. Ou seja, ninguém responde pelo grupo, mas todos podem se esconder nele.

O que une esse pessoal é o gosto estético pela tribo, é o curtir estar com os amigos e fazer absolutamente tudo juntos. Nada tem graça se não for compartilhado, e a sociedade perfeita envolveria justamente a troca direta e amigável do que é necessário entre todos. Os ritmos do grupo ditariam os ritmos da vida, e os desejos individuais precisariam ser discretos para não confrontar a maioria. Nesse caso, o grupo é uma compulsão.

Já o grupo em que todos se responsabilizam pelo que os outros fazem (no sentido de reconhecer o erro e tentar ajustá-lo, para poder impedir uma intervenção externa) tende a ser formado por pessoas que não querem estar necessariamente naquele grupo. Como a coletividade é uma necessidade, ela tem de valer a pena, e uma das condições para isso é que ela funcione para a devida finalidade. Por isso, uns cobram dos outros o que deve ser feito, aqueles que pesam demais ou atrapalham são retirados do grupo, e a melhor forma de ter valor para o próprio grupo é ser capaz de defendê-lo, demonstrando a coragem de enfrentar o de fora pelo bem de todos que estão unidos. Isso, por sua vez, motiva o grupo a defender o sujeito, e os apoios mutuamente se fortalecem, parecendo um feio corporativismo para quem está fora, mas representando a pura camaradagem para quem está dentro. 

Mais do que isso, esse grupo pode responder a unidades maiores do que eles, como um grêmio estudantil que pode lidar de forma construtiva com uma representação docente ou um sindicato de profissionais de uma área pode com um sindicato de todos os profissionais de uma gerência mais ampla. Obviamente, essas relações não costumam funcionar muito bem, em parte, porque todos os grupos atraem mais os esteticamente gregários.

Ao que me parece, os melhores grupos são formados por pessoas que não gostam particularmente de grupos, mas mantêm clareza de seus objetivos e têm a capacidade de se responsabilizar. O maior diferencial deles é justamente saber o que é responsabilidade, ironicamente por sua estrada mais individualista.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Feriado - ou outros motivos para nos irritarmos com o Carnaval na prática

No décimo quinto episódio da série original de Jornada nas Estrelas (ou seja, em 1967), temos o choque cultural entre Spock e os demais membros da tripulação frente à ideia de descanso. A Enterprise orbita de um planeta que parece absurdamente tranquilo e paradisíaco, e Kirk "ordena" descanso geral, uma oportunidade para descerem no planeta em busca de diversão e atividades recreativas. Spock não entende a noção de fazer algo para descansar, se o descanso seria justamente fazer o mínimo possível, a fim de gastar menos energia. Os tripulantes humanos riem da cara de Spock, de sua incorrigível "lógica que não nos entende".

Acontece que não há nada essencialmente humano na associação entre "descanso" e "porra-louquice", me parece. A ideia de feriado é que foi muito distorcida, a ponto de se pensar que descanso é sinônimo de atividade extenuante fora do comum.

Em primeiro lugar, creio que a ideia de feriado vem de dia sagrado, e um dia sagrado é um momento de intensa e importante atividade, o que entenderíamos hoje como mais trabalho. Numa festa religiosa, a comunidade está envolvida em contribuir com a natureza, vista de forma divina, a fim de que a ordem em que a comunidade saiba viver se perpetue. É, portanto, nos tristes termos atuais, um dia de vital trabalho comunitário, em que as pessoas não podem desrespeitar mais horários ou uns aos outros, mas sim devem agir de forma estrita e calculada para não irritar o deus ou os deuses trazendo ruína para seu mundo. É um dia ainda mais regrado que o dia "comum" (que também tinha seu caráter sagrado, diga-se de passagem). Não conseguir mandar um bode expiatório para o deserto, significava conviver com o pecado entre a tribo, ou seja, morte e destruição desenfreada.

Só uma comunidade totalmente centrada num trabalho bitolado e alienante (e não em si mesma, ou seja, no usufruto de uma vida boa em comum) pode distorcer, como conseguimos, uma situação destas a ponto de entender que feriado, férias, descanso é quebrar todas as regras, fugir de si mesmo, ignorar o mundo e os outros, o que inclui quaisquer noções associadas obviamente àquela atividade "chatíssima e supra-ordenada" (por uma entidade impessoal, mas que no fundo é outro humano), o trabalho!

O desafio de inverter esse comportamento nem é grande, portanto. Não é preciso, como Spock, compreender o sentido da palavra "descanso" e aplicá-lo na prática. Longe de mim querer que o vaidoso ser humano seja lógico.

Bastaria as pessoas terem vidas em que reconhecessem maior sentido, que as tornassem mais felizes. Bastaria a gente levar o individualismo a sério, talvez (como a humanidade quase sempre levou a comunidade a sério): se é pra viver preocupado primeiro com o próprio umbigo, que seja a regra constante, de fazer o que se gosta e o que realiza cada um. Um grupo de humanos felizes, bem, realizados, não precisa desrespeitar os outros nos poucos dias em que acha que pode ser alegre. Não precisa, portanto, se matar na vontade de encontrar alguma gota de alegria num mundo de extenuante e entediante trabalho, em que as regras não lhe fazem sentido e que, portanto, geram a ideia de que desrespeito e alegria necessariamente andam juntos.

Um grupo de seres humanos felizes podem descansar quando é para descansar, sem confundir isso com a mania de uma anestesia egocêntrica e destrutiva. E as pessoas felizes que realmente gostam "sair da linha" sempre conseguem fazê-lo sem causar danos. Chega a ser quase impressionante, frente à gigantesca galera infeliz.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Idiossincrasias de Montevidéu

Eu devo dizer que Montevidéu (e o que peguei do Uruguai) é um lugar com elementos pitorescos que exigem comentários. Primeiro, no entanto, um aviso: este não é um post para elogios de viagem, por mais que eu tenha curtido o local. Assim, assumam que concordo com os elogios clássicos ao Uruguai, com exceção do que se diz sobre o "povo acolhedor e muito simpático". Eles não são ruins, mas me parecem absolutamente normais. Aliás, as pessoas que me trataram de forma digna de nota eram turistas ou naturalizados. Vamos dizer assim: se o Uruguai merece notas altas em receptividade, então o Brasil é realmente anormal em sua hospitalidade.

O primeiro elemento curioso é que eles vão muito além de usar as praças, como se fala. Eles usam a rua, ocupam-na mesmo. Ela é lugar para tudo, até para cochilar. Não se trata de um que outro, nem de doido ou morador de rua. Por essa naturalidade, em toda rua parece ter pelo menos um sujeito sentado tranquilamente na soleira da porta. Mulher com cachorro, amigos conversando, velho cansado, o degrau da porta é para todos e todas.

Segundo elemento: o domínio sobre a água. Que chuveiros bons! Ok, eu usei de hotel, de pousada e de um apartamento, mas todos são fantásticos tanto para aquecimento quanto para controle da quantidade de água. A água da torneira também é boa! Francamente não sei por que temos tanta dificuldade nessa área - ou, sei lá, o motivo para o mercado de chuveiros ser tão mal servido no sul do Brasil...

Além de tudo, Montevidéu parece estar à venda (a parte de dentro da muralha, em Colônia de Sacramento, também). Com tantos prédios renovados de forma genial, tanto local antiquíssimo mantido e reutilizado com máximo conforto, a quantidade de prédios à venda e de ruínas com plaquinhas de que estão sendo renovadas é um tanto chocante e provoca certa pena. Fico sem saber se posso acreditar que esses locais se tornarão outros tantos bons de se conhecer como os que vi, ou se passei por um resquício de investimentos que morreram.

Por fim, as moscas. O país é medianamente limpo, os restaurantes não parecem dever nada aos nossos, mas há sempre, no mínimo, uma mosca em todo lugar. Sua presença é tão chata que fiquei imaginando as propagandas de Turismo com o escudo de Montevidéu, ou a imagem do Artigas, e uma mosquinha sempre pousando no logo - Ok, há uma exceção, um café chamado "Ouro do Reno", em que não vi mosca alguma...

Como isso parece uma crítica mais pesada do que realmente é, vou terminar com um elogio um tanto clássico: a carne é ótima. Como acontece com o café em Natal, qualquer birosca tem carne boa de verdade! Nossa, que diferença para o mercado cada vez mais complicado do Rio de Grande do Sul, onde a gente sofre tanto no orçamento para conseguir ainda comer carne, que sempre se revela não ser lá essas coisas.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Falsas valorizações

Aviso: no gancho das parabenizações de Dia dos Profs, resolvi fazer um post de generalizações a respeito de escola pública.

Há poucos dias, conversando com uma pré-adolescente rica e bastante erudita, me veio uma expressão que tem me perseguido. Eu disse para ela que meus alunos, em geral, não acham que devam usar o cérebro para a escola. 

Eles não pensam, claro, exatamente assim. Eles falam que são burros e, ao mesmo tempo, só tentam "ser espertos". Ser esperto é, para os guris, não ser passado para trás por ninguém, passar pessoas para trás quando necessário, encontrar caminhos alternativos (mas diretos, nada de dois ou três passos) para conseguir o que se quer, ser o mais (ou um dos mais) engraçados do grupo e transar com o máximo de gente, assegurando as mais gostosas apenas para si - óbvio, ideal nunca atingido e, então, desdenhado. Para as gurias, a lista é muito parecida, mas inclui vencer brigas com as rivais, ser bem bonita e fingir mais perfeitamente que não se importa com isso, além de poder esnobar o máximo de guris com o mínimo de esforço aparente. Nenhuma dessas habilidades exige conhecimento acadêmico. Na verdade, elas não dependem nem mesmo de alfabetização. Tirar boas notas, ter conhecimento básico de matemática (quatro operações), geografia (saber que "Porto Alegre" não é um estado), história (até saber que todos os anos "antes de Cristo" vieram antes dos "depois de Cristo") e coisas tais não estão incluídas em ser esperto, mas  qualquer ignorância pode servir como status, no sentido de não saber "aquelas coisas chatas" ou "ser burro, ha-ha-ha".

Como eles se acham burros, o que significa não tirar notas boas e, portanto, não "ser puxa-saco do professor" - falta de conhecimento leva a péssimas notas, mas boas notas não indicam conhecimento, só puxa-saquismo - esses alunos pensam que a boa escola, a escola forte, é aquela que os roda, que os expulsa. Os mais radicais se orgulham anos a fio porque acham que um professor abandonou a escola ou a profissão graças às bagunças deles. Uma turma ter feito Fulano chorar também é um orgulho meio envergonhado que é lembrado com sorrisos por muito e muito tempo.

O problema sempre acaba sendo cultural. Algumas raras famílias sabem o que fazer com conhecimento acadêmico, e o efeito disso em seus filhos é patente, mas a questão cultural necessariamente sai do círculo mais imediato deles. Alunos de escolas públicas em geral sentem o efeito mais agudo de uma situação bem maior, sem a boa mediação de pais ou responsáveis fortuitos. 

A escola pensada é uma coisa, e é ela que todo o mundo gosta de defender, da conversa no ônibus ao Domingão do Faustão. A escola de fato é um bicho estranho e revoltante, que ninguém quer e que horroriza quem pára para olhar de frente. Ela não forma tanto, mas forma demais; ela veicula pouco conhecimento, mas conhecimento demais; ela não defende bandeiras o suficiente, mas as defende demais; ela não doutrina os alunos, mas doutrina demais; ela é conservadora, mas muito progressista etc. A escola na verdade não é domada por nenhuma força política, mas todas a querem. Os alunos estão no meio do fogo cruzado, então fazem o que uma criança faz melhor. Elas imitam. Imitam para aprender a viver na cultura em que estão crescendo, cultura essa que, não querendo a escola que as obriga a querer, joga os alunos para todos os lados. Dependendo de onde se olha para a escola, o aluno nunca tem razão, ou sempre tem. Ele deve resistir, mas obedecer, aprender, mas duvidar, criar vínculo, mas manter distância. Eles até mesmo estão certos ao odiar a escola, mas certos ao gostarem dela também. No ideal, como o resto da população, defendem a ideia da escola, mas a odeiam na prática, com ainda mais razão que os adultos, já que, no momento, são eles quem precisa manter e aguentar na pele a farsa paradoxal de todos.

domingo, 22 de setembro de 2013

Devil Inside

(Vídeo só por causa do título)

Se existe uma tendência minha mal posicionada é a seriedade com que costumo levar acordos. Por algum motivo eu respeito pequenas combinações do dia-a-dia, pequenos contratos, busco cumprir os papeis que assumo e trato as pessoas conforme os papeis que decidiram tomar, às vezes até insistiram, duvidando de que eu cumpriria o combinado. Mas eu cumpro. E a maioria das pessoas não. Por isso fico pensando volta e meia "Por que diabos eu busco cumprir essas coisas?"

Logo eu sou tachado como muito certo, muito comportado, muito duro, muito caxias, ou "o único professor que exige X". Estou longe de restringir o problema à minha relação profissional ou ao comportamento geral de professores. É um desvio que tenho com a humanidade mesmo. Ou, para dar o benefício da dúvida para outras culturas, meu desvio em relação ao meio em que vivo. 

O mais engraçado é que as pessoas, por isso, se surpreendem ao descobrir qualquer lado meu que desrespeite regras, etiqueta ou tradição. Logo elas percebem, no entanto, que esse desrespeito tem tudo a ver com minha personalidade, que elas deveriam suspeitar mesmo do tipo de demônio que levo comigo. E então elas se questionam por que alguém assim seria tão caxias. Resposta: porque eu não sou caxias com "as coisas", eu apenas acho que trato é trato. Pensando bem, talvez seja mesmo outro traço demoníaco: o de respeitar contratos e acordos.

domingo, 8 de setembro de 2013

Os poderosos clichês

Eu não lembro se já as comentei aqui no blog, mas o post anterior me fez retomar duas teorias que tenho sobre clichês.

A primeira delas é o que o cansaço que temos com clichês nos leva a subestimá-los, mas eles na verdade representam, em geral, verdades superconcentradas. Essa concentração se dá com o tempo, exatamente como no processo natural de decantação. Muitas histórias ou muitas versões estão sempre sendo aventuradas sobre tudo. Aquelas muito verdadeiras (coloque aqui seu teor de relativismo cultural, a gosto) sobrevivem por mais tempo e dominam as outras. O clichê do herói e da heroína formarem um casal, por exemplo, tem muito de verdadeiro. São duas pessoas que sobrevivem e vivem melhor juntas (tanto que ganham a aventura por isso) postas numa situação de stress, em que a confiança no outro é fundamental, e tudo isso gera uma série de vínculos e dependências que são uma mão na roda para o Cupido. É claro que muita projeção da plateia favorece tal tipo de relação romântica, mas isso é verdade para tudo, não só para os clichês.

Enfim, acho que eles são histórias ou esquemas que se repetiram e repetem muito, por isso mesmo viram clichês. Quem quer resistir a determinados valores precisa então atacar esses clichês, mas tal status não parece ser o melhor alvo. O argumento "isso é clichê", nesse sentido, reforça-o, pois afirma que aquilo aconteceu e segue acontecendo muito.

A outra questão é que clichês precisam ser concluídos. Como eles resultam de um acúmulo de experiência, a resposta pronta não quer dizer o mesmo que para aqueles que tiveram que chegar a ela batalhando e pensando. Assim, o mau cheiro do clichê em geral é reflexo de que a pessoa não o entendeu direito, está vendo-o de fora, precisa viver e até negar aquele clichê para chegar a ele. 

É esse aspecto que me incomodou no post anterior. Exatamente porque estou falando sobre o choque entre minha visão de mundo e a de tanta gente que me cerca, fico pensando quem poderia entender o post anterior no sentido que eu pensava. Estou falando mal de um "sistema", reclamando sobre uma idiotização da vida à Hollywood, tudo coisas que se fala muito, mas em geral num sentido diferente do que eu buscava. Como não tento explicar a minha vida aqui, a leitura do post deve indicar para muita gente o caminho errado. Ele deve ser lido em sentidos opostos aos que eu pensava. Mas, se eu acho justamente que a complicação da Mafalda é de tradução, esses mal entendidos acabam por reforçar meu argumento...

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Mais Mafalda!!!

Um exemplar mais a mão, entre outros possíveis...

Eu sou um fã atrasado de Mafalda. Fiquei sabendo da personagem no início da faculdade, ou um pouco antes. Todo o mundo falava muito bem, ou ficava quieto por não achar, aparentemente, que poderia falar mal ou demonstrar indiferença. Não observava o mesmo silêncio de ignorância como o meu. Consegui ler realmente mais coisa do Quino apenas depois de um bom tempo - afinal, entrar em Letras é também descobrir que toda a literatura que já lemos não é nada nem para uma simples conversa de bar.

Como foi verdade com outras leituras, fui gostando mais e mais, com o tempo. Nunca conseguia, mesmo assim, localizar por que achava essa graça tão particular nas tirinhas. Agora, acho que encontrei: gosto do problema proposto, que é, a meu ver, a dificuldade de se comunicar em outra língua. Mafalda não fala "sucesso" quando abre a boca, nem todas as coisas atreladas a isso geralmente. Ou seja, ela questiona a ordem do mundo, sem confundir as pessoas que realizam essa ordem no microuniverso do dia-a-dia com a ordem em si - ainda que reconheça que tais pessoas possam se tornar meras ferramentas, esquecendo elas próprias outros aspectos de sua existência. Ela pressupõe que exista um ser humano (no sentido rico, variado, do humanismo) no policial, ou até mesmo no político, e sente seu direito de cobrar dignidade e juízo desses indivíduos.

Com exceção do momento em que decidi fazer Letras e de quando me encaminhei a dar aulas, poucos confrontos tive com o discurso do sucesso ou da ordem das coisas - dos desejos que devemos ter, das ordens que devemos seguir sem questionamento possível. Geralmente eu parecia ir nessa direção, porque o que eu queria coincidia com a ordem óbvia. Procurar emprego, por exemplo, faz as pessoas acharem que estamos querendo "crescer na vida" e coisas tais. Mas é possível procurar emprego, sei lá, para se sustentar, sem confundir carreira com vida, nem trabalho com única possibilidade de realização pessoal. Eis que agora sou todo dia confrontado com a exigência ou pressuposição de que eu deveria querer dinheiro, tanto por ele próprio como para fazer coisas que propagandas de margarina e filmes de Sandra Bullock implicam ser o ideal universal. Estou impressionado com a força e a acriticidade desse discurso nessa minha pacata cidade, tão longe de Hollywood... E me surpreende que eu precise desenhar para as pessoas que, a Sandra Bullock, prefiro Mafalda.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

O decisivo senso comum

Por mais que se fale mal do argumento de autoridade e da escolástica, se existe uma estrutura milenar firme na Academia é a estrutura de citação. A ideia é que toda pesquisa aproveita pesquisas anteriores e vai além, portanto em parte é preciso demonstrar essa trajetória e esse conhecimento acumulado pelo próprio pesquisador, que vai acrescentar algo e que pode afirmar isso exatamente porque conhece o que veio antes. Outra relevância desse formato é indicar certas "verdades" acumuladas até aqui pela Academia para que não se tenha que partir do zero a cada pesquisa. Não dá para todo astrônomo ter de começar redescobrindo a gravidade. A citação ainda é relevante para quem quer questionar a tradição ou resultados anteriores. Só se dá ouvidos à novidade se a pessoa que acha que descobriu algo novo indica que sabe e entende aquilo que ele está tentando criticar ou reformar. Outro motivo ainda é que afirmar algo que nós não descobrimos pode ser considerado plágio. Se vamos partir de ideias alheias ou coincidentes com outros autores, melhor dar os devidos créditos do que ser processado e descreditado depois.

Pois bem, essas são algumas justificativas para que ainda precisemos ficar citando uma galera em todas as pesquisas. Quando se pensa nisso tudo, dá até a impressão de que se está esquecendo ou subestimando a importância de outra força fundamental: o senso comum.

Pode parecer que a citação funciona contra isso também. Se eu estou contrariando o senso comum, de repente vai ser mais simples se eu indicar que o papa daquela minha área fez o mesmo, argumentou como eu, mas isso não é verdade. O senso comum é capaz de distorcer a leitura que se faz de qualquer citação bem como de apagar a memória justamente a respeito daquela citação do papa. A citação é importante para muitas coisas, mas nem ela enfrenta essa outra força tão poderosa, o que é um irônico enfraquecimento para o argumento de autoridade: mesmo esta perde para o que é aceito sem questionamento algum, para o que é cotidiano, para o que embasa qualquer raciocínio mais consciente.

O mais curioso é que discutir o senso comum é impossível, sem que ele seja localizado em alguns autores muito importantes - ou seja, em papas ou bispos. Assim, para se discutir o senso comum é preciso trazê-lo na forma de citações. Caso contrário, ele é uma forma nebulosa, uma impressão qualquer, algo fácil de se desconsiderar e de, portanto, permanecer exatamente como está. Quando citamos o senso comum, no entanto, ele não será ignorado, já que o próprio corrompe até a leitura das citações?

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Eu não entendo a Legião da Boa Vontade

Sempre que a LBV me liga eles começam falando como Jesus me ama, as crianças me adoram, como todos queriam me agradecer pelo meu grande coração (sic), desejar Feliz Feriado-Mais-Próximo etc. Tudo isso, é claro, fazendo de tudo para que eu não tome a palavra (ou seja, sem nenhuma intenção de ME escutar) e fingindo que eu não sei que eles querem dinheiro. Ora, por que me tratar como criança, e uma criança imbecil, seria o caminho para chegar ao meu bolso? Sério que eles imaginam que eu vá sentir vergonha e POR ISSO lhes doar dinheiro? Não é doação para as crianças que eles querem, mas sim esmola extorquida por vaidade?

Como é que uma "Legião da Boa Vontade" pode passar décadas com a tática de se posicionar moralmente na situação mais detestável possível e então... pedir dinheiro!?