quarta-feira, 21 de agosto de 2013

O decisivo senso comum

Por mais que se fale mal do argumento de autoridade e da escolástica, se existe uma estrutura milenar firme na Academia é a estrutura de citação. A ideia é que toda pesquisa aproveita pesquisas anteriores e vai além, portanto em parte é preciso demonstrar essa trajetória e esse conhecimento acumulado pelo próprio pesquisador, que vai acrescentar algo e que pode afirmar isso exatamente porque conhece o que veio antes. Outra relevância desse formato é indicar certas "verdades" acumuladas até aqui pela Academia para que não se tenha que partir do zero a cada pesquisa. Não dá para todo astrônomo ter de começar redescobrindo a gravidade. A citação ainda é relevante para quem quer questionar a tradição ou resultados anteriores. Só se dá ouvidos à novidade se a pessoa que acha que descobriu algo novo indica que sabe e entende aquilo que ele está tentando criticar ou reformar. Outro motivo ainda é que afirmar algo que nós não descobrimos pode ser considerado plágio. Se vamos partir de ideias alheias ou coincidentes com outros autores, melhor dar os devidos créditos do que ser processado e descreditado depois.

Pois bem, essas são algumas justificativas para que ainda precisemos ficar citando uma galera em todas as pesquisas. Quando se pensa nisso tudo, dá até a impressão de que se está esquecendo ou subestimando a importância de outra força fundamental: o senso comum.

Pode parecer que a citação funciona contra isso também. Se eu estou contrariando o senso comum, de repente vai ser mais simples se eu indicar que o papa daquela minha área fez o mesmo, argumentou como eu, mas isso não é verdade. O senso comum é capaz de distorcer a leitura que se faz de qualquer citação bem como de apagar a memória justamente a respeito daquela citação do papa. A citação é importante para muitas coisas, mas nem ela enfrenta essa outra força tão poderosa, o que é um irônico enfraquecimento para o argumento de autoridade: mesmo esta perde para o que é aceito sem questionamento algum, para o que é cotidiano, para o que embasa qualquer raciocínio mais consciente.

O mais curioso é que discutir o senso comum é impossível, sem que ele seja localizado em alguns autores muito importantes - ou seja, em papas ou bispos. Assim, para se discutir o senso comum é preciso trazê-lo na forma de citações. Caso contrário, ele é uma forma nebulosa, uma impressão qualquer, algo fácil de se desconsiderar e de, portanto, permanecer exatamente como está. Quando citamos o senso comum, no entanto, ele não será ignorado, já que o próprio corrompe até a leitura das citações?

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Eu não entendo a Legião da Boa Vontade

Sempre que a LBV me liga eles começam falando como Jesus me ama, as crianças me adoram, como todos queriam me agradecer pelo meu grande coração (sic), desejar Feliz Feriado-Mais-Próximo etc. Tudo isso, é claro, fazendo de tudo para que eu não tome a palavra (ou seja, sem nenhuma intenção de ME escutar) e fingindo que eu não sei que eles querem dinheiro. Ora, por que me tratar como criança, e uma criança imbecil, seria o caminho para chegar ao meu bolso? Sério que eles imaginam que eu vá sentir vergonha e POR ISSO lhes doar dinheiro? Não é doação para as crianças que eles querem, mas sim esmola extorquida por vaidade?

Como é que uma "Legião da Boa Vontade" pode passar décadas com a tática de se posicionar moralmente na situação mais detestável possível e então... pedir dinheiro!?

domingo, 11 de agosto de 2013

Por uma cultura mais individualista

Michel de Montaigne
"Nunca houve no mundo duas opiniões iguais, nem dois fios de cabelo ou grãos. A qualidade mais universal é a diversidade." 

Sempre que estou tendo algum tipo de preconceito, ou suspeito que esteja, faço o esforço de esquecer o enquadramento que meu cérebro está dando para a pessoa e olhá-la com radical individualismo. Acho um exercício bem difícil, particularmente quando o cérebro já tirou várias conclusões e formulou táticas para a reação à pessoa baseada nos enquadramentos prontos. Ainda mais difícil, claro, porque tal é obviamente um resultado complexo do instinto de sobrevivência. Por isso se fala tanto que temos bastante preconceito com aquilo que nos incomoda: o cérebro se apressa a ativar as estratégias para resolver o incômodo, o que geralmente envolve destruir o objeto odiado ou sair dali o mais rápido possível (ou seja, não lidar realmente com a situação).

Não estou dizendo que luto contra o preconceito em mim porque acho bonito. Acredito que a pessoa preconceituosa sempre sai em desvantagem das situações. Essa força de fuga ou destruição inerente ao preconceito é inimiga do que considero a postura mais vantajosa na vida: presença de espírito. Além disso, sendo professor, se algum preconceito me toma eu sou tanto anti-ético com o aluno quanto posso sofrer bem mais que o necessário. Vê-lo como indivíduo faz com que encontre mais rápido a solução para os problemas dele e para os meus, resolvendo a relação da forma mais lucrativa e recompensadora para ambas as partes. O mesmo se dá na relação com colegas de trabalho. O preconceito é tão errado quanto contraproducente.

(Acho meio óbvio, mas vou explicar, que nem todo preconceito é terrível. Se achamos que uma pessoa sozinha, vestida de forma que não vejamos muito o rosto, ou andando como quem está meio alterado, pode querer nos roubar ou atacar de qualquer forma, atravessar a rua não é o fim do mundo.)

Voltando, ver as pessoas radicalmente como indivíduos me parece a única verdadeira solução para o preconceito. Tentar lembrar que, por mais que os recortes culturais reconhecidos naquele que nos fala lembrem clichês, existem exceções em todos os grupos, portanto aquela pessoa tem tanto a individualidade na realização desse clichê quanto a responsabilidade, ainda que seja inconsciente em alguns casos, de ser como é, de ceder a si mesmo, digamos, além de não poder escapar, em algum grau, a determinadas características genéticas inescapáveis. Até mesmo o que é inescapável só o é de forma particular. Algumas pessoas ansiosas têm outras características que as possibilitam controlar isso, outras simplesmente têm problemas mais sérios de personalidade a resolver e precisam conviver com a ansiedade a externando. Não vamos, realmente, querer que ela lute contra a ansiedade e deixe outras características se desenvolverem.

Nesse sentido, o maior tributo de nossa sociedade esforçada por igualitarismo ainda vem do Humanismo. Talvez este venha mesmo de ideias em parte desenvolvidas por certa cultura árabe do fim da Idade Média, que passou do norte da África para a Itália, mas o que quero destacar não é a origem em si da postura individualista, apenas que, desenvolvido na nossa cultura europeia (no sentido de ser, por exemplo, responsável por estamos entendendo este blog todo escrito em alfabeto românico), o individualismo foi uma daquelas forças que mais é elogiada em seus primeiros séculos e destratada nos últimos. Creio no entanto que ele seja não só a raiz de nosso igualitarismo, mas nossa última salvação para realizá-lo. Ironicamente, que eu saiba Marx concordaria comigo, aliás, sendo a realização do indivíduo o grande lucro que ele via no desenvolvimento do capitalismo, lucro que ele defendia ser condição sine qua non para uma sociedade que superaria as desigualdades do próprio capitalismo. Muitos dos destratores de nossa "sociedade individualista" devem ter leitura bem diferente de Marx! But I digress... 

Minha questão era só que sejamos mais individualistas. Está ainda fazendo falta. Basta não confundir individualismo e egocentrismo. Bem pensados, eles não têm nada a ver, já que valorizar o indivíduo e defender sua radical independência de todos os outros indivíduos não é lógico, mas alucinatório. O exercício é não subsumir o indivíduo aos grupos em que o enquadramos pela natureza de nossa congnição. Outra coisa é pensar que o mata-mata é uma boa estratégia social. O individualismo não pressupõe, necessariamente, esta postura política, que me parece flagrantemente burra. No entanto, como não ter preconceitos sem olhar direta e violentamente para quem está bem na nossa frente, resistindo à nossa animalidade que quer sempre enquadrar?

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Concern trolling

Nossa, esse era um termo que me faltava. Sei que ele tem pelo menos dois sentidos já, mas o que me interessa é o que especifica a retórica de dizer que um assunto debatido está levando as pessoas a ignorarem outra questão ou que ele deveria ser considerado apenas por quem se preocupou com a tal outra questão, acontece que esta não é realmente do interesse da pessoa que está argumentando isso. Só o que ela quer é mudar o assunto e enfraquecer a discussão que está acontecendo. 

É o uso da velha artimanha do cult: "isso todos estão valorizando agora, mas é muito mais cool pensar como eu, que na verdade sei uma outra coisa, ignorada, com muito mais valor de afetação do que a primeira em questão". No entanto, é esse processo ainda mais esvaziado, e o que está em questão não é ser cool, mas se sentir e se mostrar "humano", termo que também detesto nesses blablablás e que já xinguei muito em algum post antigo. 

O concern trolling é particularmente comum em discursos conservadores de alcance nacional (ou sobre temas nacionais), apesar de me parecer mais recorrente em discurso esquerdista de pequena escala. Boa parte da esquerda toma facilmente o papel de "bom cidadão longamente ignorado", o que muitas vezes pode ser verdade, mas tenta e alimenta bem a prática do concern trolling. 

O que me lembra, em paralelo, que George Carlin era muito bom em desmistificar esses desvios retóricos. Aliás, ele era ótimo também em fazê-los a fim de criar piadas, que pareciam pura fuga do assunto até a punch line, em que finalmente se via que ele não estava fugindo de assunto nenhum. Muitas vezes essa é a falta que bons comediantes mais fazem: deixar um vácuo de figuras públicas que não deixem a hipocrisia desviar preocupações sociais com movimentos retóricos. A educação talvez pudesse suprir esse papel, até certo ponto, mas com ela bem sabemos que não podemos contar. 

domingo, 4 de agosto de 2013

Mitologia cotidiana

Eu ainda me surpreendo quando reconheço alguma força ou atividade no dia-a-dia que demonstra como determinadas mitologias tinham razão a respeito do nosso comportamento. Como é estranho quando vemos algo que encaixa perfeitamente com a descrição de Eros (Cupido), por exemplo, ou com a relação entre Perséfone e Hades. 

Por outro lado, por que isso deveria ser surpreendente, né? Os mitos, incluindo a parte comportamental do que chamamos de religiões hoje, são o resultado de um acúmulo e de uma decantação de séculos de observação, resumidos a um centro condensado do que se falou ou se pensou a respeito. Isso é mais verdadeiro inclusive para as que levaram mais tempo para serem escritas, sobrevivendo com o esquecimento necessário de uma cultura oral. 

Essas histórias justamente sobreviveram porque resumiram, melhor que suas concorrentes, devemos supor, o comportamento humano observado por séculos e séculos. É claro que muita coisa ali está culturalmente restrita, mas algum tronco precisava estar certo. E a gente, em menos de uma vida, fica comparando nossa visão de mundo com esse acúmulo impressionante e nos chocando quando comprovamos verdades que ali estejam. É no mínimo curioso.

Parece-me que isso de ficar julgando se os gregos, noruegueses, judeus, ovimbundus ou guaranis estavam certos é uma grande prepotência, no final das contas. Mas uma prepotência absolutamente saudável! O que não é muito classicista da minha parte, aliás... A única forma de aprendermos com essas histórias é justamente questioná-las e pô-las em cheque, como é verdade com qualquer outra coisa. Se as confrontarmos por nossa individualidade e tivermos simplesmente de capitular no final, bom, teremos comprovado a relevância da trajetória das tragédias... clássicas.