quinta-feira, 31 de julho de 2014

O dito animal social

Há meses tem me incomodado uma categorização que me veio à mente durante uma conversa - tardiamente eu diria.

A meu ver, há dois tipos de grupos humanos, aqueles em que todos se responsabilizam pelo grupo e aqueles em que o grupo serve para desresponsabilizar a todos. O primeiro caso é, negativamente, o que leva ao corporativismo e, idealmente, o que aponta para a fraternidade de "um por todos e todos por um". O ideal, no segundo caso, seria uma unidade democraticamente descentrada, como todos os recentes movimentos baseados no Ocupa Wallstreet pensam ser, mas seu negativo está mais próximo da prática, sendo tipicamente o ajuntamento psicologicamente adolescente que está junto só porque gosta, mas que pensa se unir por uma causa. O caso da polícia acusando Bakunin é engraçado, mas essa galera imitadora também não parece saber nada do Anarquismo que ostentam nas bandeiras.

A primeira consequência do descompasso entre seus motivos reais e sua ilusão é, claro, o típico desfazer desses grupos. Um exemplo ridículo é o que aconteceu com os manifestantes presos no Rio por suas supostas intenções (o que os conservadores preocupados com "polícia do pensamento" acharam natural e certo, nesse caso...). 

O caso contado por quem era do movimento lembra a infantilidade do clássico desmantelamento de uma banda de rock. Mas o que estou comentando aqui se aplica a outras esferas, e não tenho a pretensão de dar um golpe de vista psicológico e explicar o que está rolando agora, ignorando a ação da polícia, o poder financeiro da FIFA, as manifestações do ano passado e tudo que contribuiu para a postura policial.

Não, o que me tem chamado a atenção é que o grupo que usa a coletividade para se abster de qualquer responsabilidade acredita que nenhum deles pode ser culpado, porque os motivos lindos (almas irmãs, forças históricas, santos batendo) que os unem justificam suas ações e, praticadas em grupo, quem vai saber quem fez o quê exatamente?

Nenhum deles é a fonte do problema, eles estão bem intencionados, querendo apenas paz e companheirismo, portanto forças externas de autoridade não devem se meter. Ao mesmo tempo, ninguém pode responder pelo grupo, porque cada um ali faria o que acha certo; seria uma quebra da democracia fundamental entre os parceiros se alguém do grupo quiser afetar o comportamento do outro. Se um cobra do outro coerência ou respeito a acordos gerais, essa pessoa está sendo autoritária e abusiva. Ou seja, ninguém responde pelo grupo, mas todos podem se esconder nele.

O que une esse pessoal é o gosto estético pela tribo, é o curtir estar com os amigos e fazer absolutamente tudo juntos. Nada tem graça se não for compartilhado, e a sociedade perfeita envolveria justamente a troca direta e amigável do que é necessário entre todos. Os ritmos do grupo ditariam os ritmos da vida, e os desejos individuais precisariam ser discretos para não confrontar a maioria. Nesse caso, o grupo é uma compulsão.

Já o grupo em que todos se responsabilizam pelo que os outros fazem (no sentido de reconhecer o erro e tentar ajustá-lo, para poder impedir uma intervenção externa) tende a ser formado por pessoas que não querem estar necessariamente naquele grupo. Como a coletividade é uma necessidade, ela tem de valer a pena, e uma das condições para isso é que ela funcione para a devida finalidade. Por isso, uns cobram dos outros o que deve ser feito, aqueles que pesam demais ou atrapalham são retirados do grupo, e a melhor forma de ter valor para o próprio grupo é ser capaz de defendê-lo, demonstrando a coragem de enfrentar o de fora pelo bem de todos que estão unidos. Isso, por sua vez, motiva o grupo a defender o sujeito, e os apoios mutuamente se fortalecem, parecendo um feio corporativismo para quem está fora, mas representando a pura camaradagem para quem está dentro. 

Mais do que isso, esse grupo pode responder a unidades maiores do que eles, como um grêmio estudantil que pode lidar de forma construtiva com uma representação docente ou um sindicato de profissionais de uma área pode com um sindicato de todos os profissionais de uma gerência mais ampla. Obviamente, essas relações não costumam funcionar muito bem, em parte, porque todos os grupos atraem mais os esteticamente gregários.

Ao que me parece, os melhores grupos são formados por pessoas que não gostam particularmente de grupos, mas mantêm clareza de seus objetivos e têm a capacidade de se responsabilizar. O maior diferencial deles é justamente saber o que é responsabilidade, ironicamente por sua estrada mais individualista.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Feriado - ou outros motivos para nos irritarmos com o Carnaval na prática

No décimo quinto episódio da série original de Jornada nas Estrelas (ou seja, em 1967), temos o choque cultural entre Spock e os demais membros da tripulação frente à ideia de descanso. A Enterprise orbita de um planeta que parece absurdamente tranquilo e paradisíaco, e Kirk "ordena" descanso geral, uma oportunidade para descerem no planeta em busca de diversão e atividades recreativas. Spock não entende a noção de fazer algo para descansar, se o descanso seria justamente fazer o mínimo possível, a fim de gastar menos energia. Os tripulantes humanos riem da cara de Spock, de sua incorrigível "lógica que não nos entende".

Acontece que não há nada essencialmente humano na associação entre "descanso" e "porra-louquice", me parece. A ideia de feriado é que foi muito distorcida, a ponto de se pensar que descanso é sinônimo de atividade extenuante fora do comum.

Em primeiro lugar, creio que a ideia de feriado vem de dia sagrado, e um dia sagrado é um momento de intensa e importante atividade, o que entenderíamos hoje como mais trabalho. Numa festa religiosa, a comunidade está envolvida em contribuir com a natureza, vista de forma divina, a fim de que a ordem em que a comunidade saiba viver se perpetue. É, portanto, nos tristes termos atuais, um dia de vital trabalho comunitário, em que as pessoas não podem desrespeitar mais horários ou uns aos outros, mas sim devem agir de forma estrita e calculada para não irritar o deus ou os deuses trazendo ruína para seu mundo. É um dia ainda mais regrado que o dia "comum" (que também tinha seu caráter sagrado, diga-se de passagem). Não conseguir mandar um bode expiatório para o deserto, significava conviver com o pecado entre a tribo, ou seja, morte e destruição desenfreada.

Só uma comunidade totalmente centrada num trabalho bitolado e alienante (e não em si mesma, ou seja, no usufruto de uma vida boa em comum) pode distorcer, como conseguimos, uma situação destas a ponto de entender que feriado, férias, descanso é quebrar todas as regras, fugir de si mesmo, ignorar o mundo e os outros, o que inclui quaisquer noções associadas obviamente àquela atividade "chatíssima e supra-ordenada" (por uma entidade impessoal, mas que no fundo é outro humano), o trabalho!

O desafio de inverter esse comportamento nem é grande, portanto. Não é preciso, como Spock, compreender o sentido da palavra "descanso" e aplicá-lo na prática. Longe de mim querer que o vaidoso ser humano seja lógico.

Bastaria as pessoas terem vidas em que reconhecessem maior sentido, que as tornassem mais felizes. Bastaria a gente levar o individualismo a sério, talvez (como a humanidade quase sempre levou a comunidade a sério): se é pra viver preocupado primeiro com o próprio umbigo, que seja a regra constante, de fazer o que se gosta e o que realiza cada um. Um grupo de humanos felizes, bem, realizados, não precisa desrespeitar os outros nos poucos dias em que acha que pode ser alegre. Não precisa, portanto, se matar na vontade de encontrar alguma gota de alegria num mundo de extenuante e entediante trabalho, em que as regras não lhe fazem sentido e que, portanto, geram a ideia de que desrespeito e alegria necessariamente andam juntos.

Um grupo de seres humanos felizes podem descansar quando é para descansar, sem confundir isso com a mania de uma anestesia egocêntrica e destrutiva. E as pessoas felizes que realmente gostam "sair da linha" sempre conseguem fazê-lo sem causar danos. Chega a ser quase impressionante, frente à gigantesca galera infeliz.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Idiossincrasias de Montevidéu

Eu devo dizer que Montevidéu (e o que peguei do Uruguai) é um lugar com elementos pitorescos que exigem comentários. Primeiro, no entanto, um aviso: este não é um post para elogios de viagem, por mais que eu tenha curtido o local. Assim, assumam que concordo com os elogios clássicos ao Uruguai, com exceção do que se diz sobre o "povo acolhedor e muito simpático". Eles não são ruins, mas me parecem absolutamente normais. Aliás, as pessoas que me trataram de forma digna de nota eram turistas ou naturalizados. Vamos dizer assim: se o Uruguai merece notas altas em receptividade, então o Brasil é realmente anormal em sua hospitalidade.

O primeiro elemento curioso é que eles vão muito além de usar as praças, como se fala. Eles usam a rua, ocupam-na mesmo. Ela é lugar para tudo, até para cochilar. Não se trata de um que outro, nem de doido ou morador de rua. Por essa naturalidade, em toda rua parece ter pelo menos um sujeito sentado tranquilamente na soleira da porta. Mulher com cachorro, amigos conversando, velho cansado, o degrau da porta é para todos e todas.

Segundo elemento: o domínio sobre a água. Que chuveiros bons! Ok, eu usei de hotel, de pousada e de um apartamento, mas todos são fantásticos tanto para aquecimento quanto para controle da quantidade de água. A água da torneira também é boa! Francamente não sei por que temos tanta dificuldade nessa área - ou, sei lá, o motivo para o mercado de chuveiros ser tão mal servido no sul do Brasil...

Além de tudo, Montevidéu parece estar à venda (a parte de dentro da muralha, em Colônia de Sacramento, também). Com tantos prédios renovados de forma genial, tanto local antiquíssimo mantido e reutilizado com máximo conforto, a quantidade de prédios à venda e de ruínas com plaquinhas de que estão sendo renovadas é um tanto chocante e provoca certa pena. Fico sem saber se posso acreditar que esses locais se tornarão outros tantos bons de se conhecer como os que vi, ou se passei por um resquício de investimentos que morreram.

Por fim, as moscas. O país é medianamente limpo, os restaurantes não parecem dever nada aos nossos, mas há sempre, no mínimo, uma mosca em todo lugar. Sua presença é tão chata que fiquei imaginando as propagandas de Turismo com o escudo de Montevidéu, ou a imagem do Artigas, e uma mosquinha sempre pousando no logo - Ok, há uma exceção, um café chamado "Ouro do Reno", em que não vi mosca alguma...

Como isso parece uma crítica mais pesada do que realmente é, vou terminar com um elogio um tanto clássico: a carne é ótima. Como acontece com o café em Natal, qualquer birosca tem carne boa de verdade! Nossa, que diferença para o mercado cada vez mais complicado do Rio de Grande do Sul, onde a gente sofre tanto no orçamento para conseguir ainda comer carne, que sempre se revela não ser lá essas coisas.