sábado, 30 de julho de 2011

Falsas Igualdades

Precisamos de uma nova regra: toda dicotomia é burra. José Paulo Cavalcanti Filho, por exemplo, em seu novo artigo "Democracia também é não informar", iguala sem limites nem nuâncias Wikileaks e News of the World, simplesmente porque ambos divulgaram informações sigilosas. A "semelhança" da informação (ser sigilosa) faz com que curiosamente o autor passe por cima de um detalhe que menciona o tempo todo: o bem público envolvido em revelar determinada informação.

Só para começo de conversa, no caso do jornal inglês, temos informações privadas divulgadas em prol do lucro. No caso do Wikileaks, a relevância da informação é julgada moralmente por quem a publica, bem como se busca evitar a publicação do que possa representar risco à vida (ainda que possa, para alguns, ter havido casos em que o escrutínio foi duvidoso). Ignorando completamente a natureza da informação e a finalidade da publicação, José Cavalcanti afirma tranquilamente: "um exame isento dos casos revelará que há, em ambos, uma mesma questão de forma e uma mesma questão de substância".

Acho que entendemos forma e substância de forma muito diferente. Porque não sei como pode ser verdade que nos dois casos a informação deveria ser sigilosa pelo bem coletivo, se uma publicação visa em primeiro e último lugar o bem mercadológico do produto, o enriquecimento de seu produtor, e o outro visa problemas sociais, econômicos e políticos que dizem respeito a populações de diversos países. A importância de Assange não surgiu de ele publicar babado forte, mas de ter comprovado que havia uma relação de má-fé entre governo e população, bem como por ter provado que uma série de decisões internacionais e nacionais vinham sendo realizadas com manipulação consciente de informação. Ou seja, a questão não foi que Wikileaks passou a publicar coisa que deveria ser mantida em sigilo pelo bem de todos, muito pelo contrário, indicou uma quebra no contrato democrático pressuposto entre eleitores e eleitos. Mais ainda, o site indicou cumplicidade de determinados jornais com esses interesses.

A moralidade de tudo isso pode ser discutida, e se alguma informação revelada pelo site pode ter levado a alguma morte inocente vai mesmo ser posto em julgamento sempre que os governos puderem levantar a questão. Agora, como isso é comparável a espionagem de tabloide? Se a natureza do dado publicado, a finalidade e a revelância moral da publicação são ignoradas, como se está fazendo uma análise "rigorosa", Sr. ex-presidente do Conselho de Comunicação Social?!

É verdade que nem toda informação pode ser revelada a qualquer hora, mas também o fato, utilizado por José Cavalcanti, de que, em determinados países (como os EUA, que são cada vez mais exemplo pior quando o assunto é transparência governamental), determinadas informações não podem ser reveladas nunca em nada indica que essa postura de sigilo eterna seja moral, correta, ética ou superior. Apenas indica o porquê o Wikileaks balança tanto com a política internacional. Mais ridículo ainda é comparar a lenda da fórmula secreta da Coca-Cola e um pretenso problema de royalties com as consequências da ação de gente como Assange. Mesmo News of the World, causando dano a vítimas de crimes em prol de tentar desenvolver determinada notícia, em nada se presta à analogia.

Na conclusão, a Grande Dicotomia: "Ou não deve haver nenhum limite à informação, caso em que WikiLeaks e News of the World devem ser tidos como mensageiros do bem. Ou podemos (e mesmo devemos) admitir limites democráticos a esse acesso à informação, sugeridos sempre pelo interesse coletivo – caso em que Murdoch e Assange acabam sendo vilões muito parecidos.
 "Os leitores podem escolher. Um lado ou outro. Só não podem é louvar o WikiLeaks e mandar ao inferno o New of the World. Apenas por não ser razoável. Nem coerente. E isso basta."

Isso é retórica de referendo: finge liberar opção ao leitor quando decide a priori as opções, só duas aliás! Não há nada pacífico em colocar o tablóide e o Wikileaks no mesmo saco. É possível, mas a escolha é mais do que problemática, e seria ruim de fato se algum leitor realmente ficasse apenas entre as duas opções simplificadoras oferecidas. Literalmente, se aceitamos que existem "limites democráticos " ao acesso à informação (como afirma Cavalcanti), se o Estado os manipula as ferramentas para esse limite por má-fé, e se Wikileaks os denuncia, o site não é nem vilão, nem parecido com News of the World. Mais ainda, para algumas organizações internacionais, Assange age a favor de Direitos Humanos, sob critérios que diríamos ter News of the World agido contra. Cavalcanti não precisa concordar, mas nem considerou por que é possível se ler dessa forma o problema?!

O leitor talvez decida mesmo louvar um e mandar o outro para o inferno, mas não cabe a Cavalcanti atestar o que esse leitor pode ou não, quando sua exigência de coerência se baseia em tamanha simplificação. Esta é tentadora e, com imaginação, pode ser aplicada de fato a qualquer matéria - tudo é comparável a tudo, se quisermos muito. No entanto, para que serve simplificar o mundo a ponto de nublar todas as questões relevantes envolvidas num problema? Ajudar não ajuda, nem conquista qualquer tipo de "honestidade coerente", só aplaina o pensamento, o que não nos parece grande ganho para um veículo de discussão sobre imprensa, como o site em que o artigo foi publicado. Que vantagem se tira de escrever um texto assim para esse veículo? Talvez, no entanto, a mídia de publicação também seja dado irrelevante para o autor, já que tanto ignora para poder assemelhar Assange e Murdoch.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Democracia pra quê?

Estou cansado dos papos de "democracia" que usam clichês como "ditadura da maioria" apenas para desrespeitar o que foi votado, tentando usar a democracia como um acúmulo de individualidades, excluindo ostensivamente a ideia de "conjunto" desses indivíduos (sabem como é, o respeito ao grupo foi inventado por "comunistas"). Na prática, a organização ideal da maioria das pessoas parece ser uma junção bizarra de autoritarismo e egoísmo permissivo. A palavra "democracia", no entanto, continua sendo útil para as pessoas colocarem esse sistema em prática, apesar de nenhuma de suas instâncias ser de forma alguma democrática. Em especial, é claro, porque é bonito ser democrático. É pura estética, não apenas por envolver mais aparência e vaidade que outra coisa. Li recentemente um resumo interessante sobre um aspecto importante da democracia, então vou utilizá-lo para começar o papo sobre essa palavra badalada (para variar) da boca para fora:

"Se somos democratas vivendo num regime autenticamente democrático (...), reconheceremos na figura do presidente da República uma autoridade, mesmo que não tenhamos votado nele e não concordemos com suas leis: conseqüentemente, acatamos suas decisões, não porque tomaríamos as mesmas, mas porque legitimamos o processo pelo qual foram impostas." Yves de La Taille

Observe-se como essa explicação fundamenta a existência de uma democracia na postura ética dos governados, que assumem a decisão do grupo mesmo que contrária à sua. Observe-se também que isso não implica, como poderia parecer numa leitura apressada, que as mesmas decisões sejam inquestionáveis. Elas são, no entanto, ditas impostas, e às pessoas que não se enxergam sob imposição de nada recomendo pequenos exercícios de memória, como pensar se o ato de votar, respeitar leis de Saúde ou até de colocar filhos na escola não são obrigações

Além disso, o autor define um fato geralmente desagradável, mas mais verdadeiro do que aparenta: as leis sancionadas que nos afetam são comumente obedecidas, mesmo que de forma contrariada. Acredito que a ilusão de que todos são rebeldes ou independentes surja de algumas leis-chave que são desobedecidas por muitos, mas que em geral são ancestrais, como a sinalização de trânsito ou o respeito a funcionários públicos em exercício - o fato de que tantos infratores são multados não parece ficar registrado na mente das pessoas como uma punição por uma falta a determinada obrigação legal.

Obedecer a uma lei com que não concordamos, assinada por alguém que não queríamos no poder, portanto, é consequência a que estamos expostos seguindo um ethos democrático; é como que seu lado desagradável, mas necessário. O autor e eu, no entanto, estamos um pouco isolados por essa opinião. Em primeiro lugar porque se reconhece o Brasil como país sem leis, comandado por gente corrupta que não merece respeito (essa é a desculpa daqui, outras culturas têm as suas, racionalizações em geral tão úteis quanto a nossa). Em segundo, porque a imaturidade permitida em nossa formação social mediana dá uma sensação de independência, valor intrínseco ou mero senso "macho" para as pessoas que se vangloriam por desrespeitar regulamentos (legítimos). Em terceiro (numa lista que provavelmente mereceria mais itens), como disse no início do texto, porque o ethos geral de organização é bem diferente do democrático. Vamos a ele.

Todas as relações hierárquicas (tirando extremos, como o Exército) parecem facilmente cair numa dicotomia hoje em dia: é "preciso" ter um líder, um organizador, um colocador de ordem, mas valorizamos e respeitamos cada indivíduo no grupo, suas preocupações e sua singularidade. É para essa segunda parte que tanta gente se apega à "democracia". Para a primeira, a "necessidade" ou o "bom senso" surgem pelo senso comum para matar qualquer questionamento ao valor da autoridade de quem já está, por dinheiro ou cargo, por cima. Além disso, grupos são mais produtivos e eficientes quando necessidades ou interesses pessoais se identificam com o interesse do grupo, de modo que é bom conseguir convencer cada sujeito presente que ele está sendo respeitado, mesmo (de preferência, desde) que submetido ao poder central.

O pequeno e decisivo problema é que a democracia também implica acatar a decisão do grupo (que pode estar identificado com um indivíduo em sistemas como a... democracia representativa) quando ela não nos agrada, o que não pode acontecer no sistema espontâneo que estou descrevendo, porque a ordem geral vem de uma autoridade "totalitária" (chefe, diretor, supervisor, presidente de X...). Como a maioria das pessoas tem medo de se assumir como executor de poder totalitário (porque isso é "feio", como se toda decisão centralizada fosse necessariamente burra), é comum que o líder hierárquico abra certas decisões ao voto. É comum também que a vontade da maioria nem seja unânime nem agrade aos desejos sinceros e íntimos do chefe. O líder, tentando escapar de sua posição totalitária efetiva, cai em duas confusões sobre democracia: (1) a abertura do ouvido à opinião alheia esvazia de poder o posto de fato mandante, gerando uma democracia; (2) atender a egocentrismos é o mesmo que ser democrático.

Como o chefe justamente abriu mão de ser autoritário e perguntou o que os outros queriam, forçar a minoria a seguir o caminho decidido pela maioria seria "antidemocrático", ainda que a democracia implique muitas vezes se fazer exatamente isso. Para quem acha que não, recomendo que tente exigir do Serra decisões que são incumbência da Dilma, no momento. Pode-se resistir à política dela (fazendo-se oposição dentro da lei, aliás), mas não se pode meramente desrespeitar ou ignorar o resultado do voto. Democraticamente, não se passa por cima do que o grupo decidiu, como pode parecer aceitável para uns e outros.

Os chefes que fogem de serem chefes não querem, pelo mesmo medo, exigir unidade, porque seria "mandar que se aceite a decisão da maioria", pela confusa ojeriza ao verbo "mandar". Com a desculpa de ser democrático, quem deveria comandar cria assim um "cada um por si". No entanto, qual a função de um grupo votar algo para depois cada um fazer o que quiser? Por que seria "democrático" o individualismo somado? Ainda mais quando esse tipo de individualismo, que chamo assim exatamente porque não reconhece o grupo como uma unidade, não dá dignidade à decisão dos outros? Não se tem democracia se os indivíduos são apenas indivíduos, ou seja, se não são parte daquele grupo que se organiza na volta de um poder compartilhado.

Tanto egocentrismo aturado pelo medo da "ditadura da maioria"... Sinto muito, mas, em termos comportamentais, muito da democracia pode ser sim chamado de ditadura da maioria ("muitos" decidem por algo e os "nem tantos" também obedecem a decisão) desde que não se torne uma ditadura no sentido de se impor silêncio aos derrotados - mesmo porque estes podem vencer amanhã, e a abertura a essa possibilidade é parte do valor da democracia. Tem batido recordes, no entanto, o quanto as pessoas se dizem democráticas por afirmarem que os democraticamente derrotados "não podem ser forçados" a nada. Podem sim. Aliás, cotidianamente o são. Acordem!

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Imagem pelo ralo

Eu fiquei realmente chocado quando vi 3 caras, com mais de 17 anos (menos de 25, com certeza) tirando fotos cada um de si próprio, fazendo pose no banheiro masculino de um shopping. O choque foi rápido o suficiente para não manifestar qualquer movimento ou olhar diferente, e em seguida eu estava longe e desligado, mas a cena foi realmente muito bizarra.

Sei que o "auto-retrato" é a modalidade da juventude (apesar de que só havia visto entre gurias ou entre matilhas de guris, todos na mesma foto). Uma febre incrível que tem pose marcada e produção em massa. Celebridades retro-alimentam a cultura twitando fotos suas, peladas ou não, bem como a possibilidade de exposição por várias mídias é tão atraente para a galera que, acredito, seria suficiente sem essa ajuda da gente famosa. Mesmo assim, aquelas poses no banheiro masculino me tomaram de surpresa. Se querem se mostrar, por que num banheiro? Por que público? Por que do shopping? 

Parece-me que a última informação, ser no shopping, tem mais chance de ser a resposta da charada. É isso? "Vitória contra exclusão"? A julgar pelo estilo e pelos comentários (sim, eu uso conhecimento prévio para prejulgar seres humanos no meu ambiente), não seria algo cotidiano para aqueles guris estar ali; talvez mal possam comprar algo naquelas lojas. Será que eu estava certo? Seria uma questão de "ascensão"? 

No entanto, se o for, por que o esforço por ascensão sempre clama pela estética? Por que as marcas de boné chegam antes dos interesses, do estilo de dedicação ou de linguagem que mantém quem está por cima exatamente onde está? Não me digam que é questão de consumismo, culpa do mercado. Este pode até explicar o amor inquestionável por uma marca, mas não explica fotos no banheiro. É claro que, na escolha do boné, o "mercado" é na verdade uma questão de fetiche, e do fetiche a humanidade não escapa, mesmo sendo seu veículo, por que razões forem, o espelho de um banheiro público.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Mais e mais do mesmo

Conforme a SUPER deste mês, visão no escuro, superforça e outros poderes fenomenais serão logo possibilidades genéticas para cada um de nós.

Sono.

Por que será que evoluções como educação, respeito, igualitarismo ou mesmo asseio pessoal são alterações genéticas tão pouco dignas de receber verba?

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Direito de greve, R.I.P.

"No STJ, o governo sustentou que 'ao direito de greve por parte do prestador do serviço, corresponde o direito de suspensão do pagamento pelo empregador (em sentido amplo)'. Haveria, na hipótese, lesão à ordem pública, na sua modalidade administrativa, porque 'a autoridade pública está interditada na sua capacidade de exercer as suas prerrogativas e os seus deveres de gestão da coisa pública em conformidade com o direito'." - 16/07/2011

Pergunto ao leitor, o que o primeiro "direito" do parágrafo anterior quer dizer? Do meu ponto de vista, trata-se de um termo hipócrita e tautológico. Em Santa Catarina, como no Rio Grande do Sul, como onde quer que se faça greve, sejam servidores municipais, estaduais ou federais, o discurso é sempre o mesmo: há direito de greve, mas o governo pode cortar o ponto (oposto do dito na segurança legal por greve) e o não-corte do ponto, quando é mantido, precisa ser citado no documento que encerra a greve, como "uma das conquistas". Em outros casos, como parece que será o de Santa Catarina, o ponto é efetivamente cortado, e em todos, com corte de ponto ou não, as "conquistas" são em geral inferiores ao moralmente devido e envolvem muito rearranjo de contas, de modo que os servidores (ou outras áreas fundamentais da cidade, como saúde) perdem algo para tudo que se conquista na greve, o dinheiro acumulado ilegal ou injustamente não é mexido, bem como os investimentos para inglês ver (como a Copa). Nenhum político sofre as consequências por quaisquer desrespeitos ou abusos de antes ou de depois da greve.

Os professores de SC ganharam um aumento, perderam dinheiro por outros lados, mas, mesmo com a troca ridícula, a que muitos não queriam aceitar, a greve não se sustentou mais, especialmente por já ter acumulado 2 meses sem aulas (o que desgasta os professores - muito para eles próprios -, não os políticos, tenhamos clareza). Nesse sentido, o corte do ponto funcionou. Tática de guerrilha: atacaram a comida do exército. Por que não se chama isso de terrorismo de Estado, mesmo? Ou se chama?

O direito de greve (parece-me o único sentido lógico) implica por diferentes ferramentas um impedimento de que o contratador retalie contra aqueles que façam greve. E por que essa proteção? Ora, porque obviamente o elo fraco é o empregado. O empregador tem tanto, tanto, tanto poder que é preciso em geral que milhares de pessoas parem de trabalhar e reclamem e gritem por dias, semanas ou meses a fio para que o contratador mexa um dedo. É óbvio que sua retaliação deve ser impedida por lei, ou em pouco tempo voltaríamos para o trabalho escravo (generalizado).

Como é possível, então, que aquela afirmação lá no alto seja repetida por todos os lados, em todo o Brasil? Como o trabalhador tem direito de greve e o governo tem o direito de puni-lo pela greve? Isso é o mesmo que dizer que alguém é livre para fazer o que quiser, mas, se desobedecer, vai para o inferno. Essa oposição transforma a expressão "direito de greve" na tautologia "é claro que todo o mundo tem o direito de greve, se isso implica decidir sair nas ruas e reclamar em vez de trabalhar: o sujeito é livre!" O que é importante, o que seria um direito socialmente relevante, seria o de fazer isso e não sofrer uma punição incapacitante em seguida. Os trabalhadores de SC (só para seguir com o mesmo exemplo) concorrrem a perder algo como 50 dias de salário

Preciso citar de novo: o governo alega "lesão a ordem pública" por estar sendo impedido de "exercer as suas prerrogativas e os seus deveres". É de chorar que isso seja argumentado com o rosto sério, como se não fosse a incompetência administrativa que provocasse greves, além de ser triste (a ponto de ser melancólico) que a contradição abissal de "ao direito de greve por parte do prestador do serviço corresponde o direito de suspensão do pagamento pelo empregador" não jorre pelas mídias, por todos os "certames intelectuais" da Internet, além de, é claro, por grupos de políticos, como uma causa justa, a ser levantada por uma bancada de __________ (não há representação política para ESSA luta), que processasse uma administração que abre a boca a fim de pronunciar esses abusos.

Todo esforço passado, requiescat in pace.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Duas vezes ministro, três vezes inseguro

Ministro fala como fazer; contradizendo suas ações, que falam por si.

Vamos ver se entendi: Paulo Sérgio Passos, que agora volta a ser ministro dos Transportes, foi questionado sobre aditivos contratuais (aumento nos gastos por redirecionamentos ou reorganizações de obras e serviços). Isso porque agora os critica, mas, durante o governo Lula, primeira vez em que ocupou o cargo, foram assumidos aditivos que somaram R$ 700 milhões.

A essa questão, sua resposta foi: "Entendo que os aditivos que foram celebrados foram feitos dentro da legalidade, dentro daquilo que prevê a Lei das Licitações, não há nenhuma transgressão do ponto de vista legal."

E essa afirmação tentou ser confiável? Já é curioso e suspeito quando alguém afirma confiar que determinada decisão não apresenta transgressões do ponto de vista legal, o que para mim sempre implica que transgressões há, mas de outros pontos de vista (como, sei lá, moral?), mas o sujeito reforçar três vezes é fazer emenda pior que o soneto. Agora, a emenda trágica mesmo é o complemento da afirmação. O ministro completou suas três juras esclarecendo que falava "de uma maneira geral, porque não cabe ao ministro de Estado ficar examinando projeto a projeto, nem tampouco aprovando nem assinando aditivos."

Bah, confiei...

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Menos uma letra nos EUA

Os Estados Unidos da América começaram de vez seu processo de desaparecer com a letra cursiva. Os primeiros estados já a estão retirando do ensino, primeiro com um "não precisa ensinar", mas caminhando com segurança para o "não ensina!" Apesar de ser uma questão de legislação estadual, nesse caso os estados estão mesmo unidos. Parece-me irônico, mas eles concordam mais com a abolição da letra cursiva do que a respeito de o ser humano ter evoluído de outras raças ou Deus tê-lo criado "perfeitinho" do jeito que é.

Os argumentos são, obviamente, de trabalho. Vão aproveitar o tempo ensinando "coisas mais importantes", como... digitar rápido - como se crianças expostas a computadores todo o tempo e se divertindo por eles precisassem de grandes treinos de digitação... O que é irônico é que não se está abandonando a escrita à mão, mas propriamente a cursiva. Essa letra foi inventada para que se escrevesse mais rápido, e agora querem que a letra de forma seja a treinada em escolas, além da tal digitação. Ou seja, nesse mundo acelerado, escolheu-se a letra do computador e a que tecnicamente não pode atingir a maior velocidade à mão. É claro que nem todo o mundo escreve mais rápido só por escrever emendado, mas isso porque geralmente não temos efetivo treino. Escolhemos uma letra e praticamos (usamos) apenas aquela, tornando-nos pessoalmente mais rápidos nela. A lógica subjacente à cursiva, no entanto, foi esquecida, até pelos políticos de educação.

Dizem por aqui também que letra cursiva treina coordenação motora fina da criança, aliás. Their loss... O que me chamou mesmo a atenção, no entanto, foi a importância que deram para a questão e o fato de que é um corte, não uma liberdade, digamos, entre se ensinar ou não. 

Cortes são feitos em geral para que algo seja uniformizado nacionalmente, e é bem o que está acontecendo aí, de forma proposital. Mas todas as uniformizações recentes no ensino dos EUA têm recebido resistência marcante de professores e alunos (digamos, os mais envolvidos com educação, né?). Depois que erguemos, por esse hemisfério, uma cultura tão individualista, os potenciais individuais viraram uma mania muito comum, e eles são particularmente atraentes para professores, que precisam interessar seus alunos, e para estes, que querem aprender sobre o que acham interessante, não sobre o que os adultos lhes dizem que é válido. Bem, o contrário desse individualismo é a padronização. Mesmo assim, desde o No Child Left Behind Act, de Bush (mas com lógica geral mantida no governo do Obama, sendo política acordada pelos dois partidos), a padronização é a ordem do universo educacional, e aquela padronização típica, que corta conhecimentos gerais, referências amplas e, claro, as artes. História Antiga e música são menos importantes para todos os seres humanos, sem exceção, ou pelo menos esse é o resultado do programa NCLB.

Os EUA vêm, portanto, há 10 anos numa política de cortes na educaçao que afunila todo e qualquer sujeito meramente para passar nos testes que devem dizer que há qualidade no ensino. Como nosso Ensino Médio era cada vez mais um treino para o Vestibular (até o Enem desafogar um pouco o funil), assim a Educação por lá vem se reformando desde o jardim de infância (sério). Não faltou gente para dizer que habilidade para passar em testes não é exatamente habilidade para fazer qualquer outra coisa, como trabalhar, criar ou inovar, mas nós sabemos bem como governos democráticos são ineptos para a polifonia.

Então, agora, a educação da língua (parte obviamente favorecida nessa política até aqui) sofre também o seu primeiro corte (que eu saiba): não precisa treinar um tipo de letra. Como se todo o mundo fosse igual, como isso fosse atrapalhar todo e qualquer aluno. Até nesse detalhe subjaz a lógica que não apresenta diversas técnicas e caminhos para que o aluno descubra o que melhor, individualmente, lhe serve. E o raciocínio é interessante: as letrinhas estão prontas no computador, vamos seguir o padrão dele.

Não é uma grande derrota, acho, no ensino de escrita, mas não deixa de ser curioso e, claro, bitola um pouco. Com o devido tempo, o acesso dos alunos ao código de documentos relativamente recentes já vai começar a complicar. Não esqueçamos a preguiça de nossa raça para ir atrás de suas próprias soluções, ainda mais de um povo bem padronizado. Agora, por que não largam contas também? Todo computador ou celular tem calculadora... Por que não param de estudar narrativa? Não se tocaram que todos os filmes e livros vêm prontos? Bom, quem sabe essas leis estão prontas no forno?

domingo, 17 de julho de 2011

Manhã gostosa em casa vs notícias do mundo

Príncipe Encantava

Para onde foi aquela mulher de quadris largos que vai me dar um herdeiro digno de seguir aumentando minhas terras e comandar tantos servos?

O príncipe encantado não lava a louça, não arruma a cama, não limpa a  casa, não organiza suas coisas nas prateleiras, não recolhe roupa nem guarda o que é seu, e ninguém sabe como se sai depois das preliminares, ainda que "viveram felizes para sempre" possa ser lido como um eufemismo. Tirando o último elemento, portanto, e apenas se formos leitores maliciosos, nada mais do clichê atual da perfeição se encaixa com aquele dono de terras belicoso. Aquele cara faz o favor de matar a madrasta de sua pretendente, espantar as rivais e, em muitos casos, matar um monstro, mas não exibe grandes méritos do que se esperaria num homem moderno. Por que, então, ele segue sendo símbolo de expectativas idealistas femininas?

Contrapondo, lembremos que um homem que resolva seus conflitos na porrada, ande armado e cante uma mulher o quanto possa unicamente baseado em tê-la achado bonita é considerado péssima notícia. Nem por isso, no entanto, esse cara, mesmo que bonito, teria seu comportamento creditado a lendas remotas ou contos infantis. Seriam culpados imediatamente os genes masculinos ou uma simples e genérica estupidez de neandertal. Não é culpa da TV ou da carochinha, é que ele é homem.

O pobre príncipe encantado não dá mais conta dos desejos femininos. Por mais que a grana dele continue sendo cobiçada por muitas em seus partidos, isso mesmo está restrito demais comparado com o uso da expressão. Deixemos o coitado em paz. O idealismo não vem da Disney há muito tempo.

sábado, 16 de julho de 2011

O Mal

Ontem eu conheci o que, devido a recente novela, ficou popularmente categorizado como psicopata. Na verdade, não o conheci ontem, mas descobri ontem sua frieza, sua falta de culpa, seu perfeito descaso por qualquer moralidade ou mesmo peso da nomenclatura dessa moralidade. Ele, no caso, não chegou a fingir que se preocupasse, não tentou manipular a mim ou a outras pessoas para quem levei o caso, o que me pareceu estranho e o porquê de eu fazer a referência à novela: não estou diagnosticando o sujeito neste blog, apenas procurando a forma mais didática e sucinta de apresentar sua perfeita pureza de ato.

Chamo de "puro" porque eu ia escrever "não-culpa", mas isso ainda é partir da ideia de culpa, o que estaria completamente errado. Não havia menção de preocupação com o outro ou com o julgamento alheio naquilo que fez. Ele podia, agiu. Nem ganhava muita coisa no ato. Na verdade, ganhava quase nada. O pouco que lhe favorecia e a mera oportunidade de agir, muito provavelmente saindo ileso, levou-o a entrar em ação.

O que, francamente, me lembrou O Ateneu, de Raul Pompéia. Apesar de sempre tê-lo achado chato, mesmo conhecendo e concordando com os argumentos de sua valorização literária, esse livro tem uma base que me parece verdadeira nos mínimos detalhes desde que entrei numa escola como professor: a escola é um reflexo curiosamente proporcional da sociedade, com o detalhe de ser um reflexo mais definido que a imagem original. Assim como há o paralelo no romance com a monarquia que é derrubada, concordo que até mesmo a política da sociedade se replica na escola, ao menos no caso das brasileiras. Só que eu diria que podemos até descartar a gestão e ainda reconheceremos a cunhagem da política brasileira ali dentro.

O grande problema, claro, é que nossa sociedade vai muito mal. Como não damos conta uns dos outros, a escola também é um lugar insuficiente para tudo que nela acontece.

Pois bem, como última volta no raciocínio, permitam-me recordar que por esses dias, na ÉPOCA, foi publicado um texto (postado por uma galera em facebook, twitter e tudo o mais) em que Eliane Brum falava sobre os jovens não serem educados a sofrer ou lidar com problemas, mimados por pais que se mantinham voluntariamente alienados (da vida efetiva dos filhos) e alienantes (de seus próprios filhos). É claro que ela se referia à classe B. Ou seja, tratava-se de um problema de "elite", quero dizer, a única elite que é discutida na mídia. Ter-se-ia uma geração da pressuposição do sucesso, do despreparo para o fracasso, do que (em comparação com outras classes ou gerações) podemos chamar aqui de geração do choramingo - com trágicas consequências, às vezes.

Apesar de não fazer um post que pretendia, problematizando o texto, vou referir apenas a essência do que me ocorreu: o buraco é muito mais embaixo. Todos os problemas que ela lista não se resumem à classe abordada, no entanto todas as causas que citou se restringem a essa classe. Ou seja, creio que ela está atribuindo à grana familiar e a determinado tipo de criação o que não está nascendo aí, porque aqueles problemas todos se formam nos jovens até bem mais pobres do que os que ela abordava, muitas vezes com abuso em vez de paparico, trabalho em vez de clube, dificuldade excessiva em vez de facilidade excessiva. Existem outros elementos que cruzam a geração e que não se resumem ao que os pais estão fazendo. Óbvio que esses têm muita responsabilidade, mas outras ferramentas estão educando a galera que está para sair dos colégios por agora, e não parece haver muita gente sabendo dizer o quê. Como, aliás, aconteceu desde que existe escola. O fato é que a prática diária educa a todos nós a cada momento, toda a nossa sociedade é (só poderia ser) um enorme ato de educação. Acusamos os alvos fixos, como pais ou escolas, mas o problema é sempre bem mais amplo, o que inclui, com internet, filmes e semelhantes, um quadro que eu não diria global, mas supranacional com certeza.

Desde problemas como essa "educação para a facilidade", passando-se pelos reflexos mais óbvios da sociedade na estrutura da escola e na relação entre os alunos, até a psicopatia, o que queria dizer é que as diversas formas de mal que pululam na escola formam um quadro riquíssimo de como vivemos, e o despreparo, a falta de soluções ou de ideias para se lidar com toda essa pletora de crueldade, egoísmo e violência são também um perfeito reflexo do mundo.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Verdade e pessimismo nas escolas

"So I was right. This is what it feels like to be right!... It's oddly unsettling." Chandler Bing.

Na hora de comprovar cálculos e suposições sobre os fatos, as pessoas pessimistas têm um irônico problema: ou as coisas dão certo (legal), portanto erraram em seu julgamento (chato); ou acertaram em seu julgamento (legal), portanto as coisas deram errado (chato).

Sou, claro, uma dessas pessoas, e a última frase ("It's oddly unsettling"), em particular, me ocorre demais quando acerto. E é exatamente o que sinto sempre que vejo qualquer pessoa que trabalha com educação, em qualquer cargo, chorando por estafa ou desesperança.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Professor substituto - o herói dos politiqueiros

Como a maracutaia é solta, político brasileiro nem tenta aprender a mentir. O senador Álvaro Dias (PSDB-PR) - só para dar um exemplo - diz que a nova lei para que pessoas sem pós possam dar aula nas faculdades vem de uma necessidade do mercado, que não encontra profissionais titulados para lecionar. 

Em primeiro lugar, o "mercado" precisa de gente qualificada, e não há locus mais importante do que os cargos efetivos. Essa lei, no entanto, está focada no contrato de professores temporários, ou seja, os cargos para os quais NÃO HÁ LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA, e rebaixa a qualificação exigida. Market my ass! Esses cargos formam um campo em que as instituições públicas fazem mais ou o menos o que quiserem e em que as privadas fazem absolutamente o querem. Desculpem-me, mas isso me soa pior ainda porque, pela maioria dos casos que conheci, professor substituto é um tapa-buraco atualmente, muitas vezes levando cursos nas costas, os quais mantêm seu "valor" por nomes grandes de gente que não dá as aulas que deveria. É uma forma que políticos e grupos privados encontraram de "cortar gastos" na educação cotidianamente. Sabem como é, porque educação dá muito gasto para eles, enquanto a criação ou manutenção de faculquetas dá voto para os primeiros e isenção de impostos para os segundos.

A galera responsável por contratação em suas respectivas áreas comprova o que pós-graduados em geral parecem saber por observação: há muita gente com pós no mercado. Muita. O que falta é um número significativo de lugares atraentes para se trabalhar. As faculdades competidas são MUITO competidas. Até as menos interessantes conseguem atrair gente suficiente para que Doutorado seja merreca no currículo. No entanto, o salário e o plano de certas particulares, bem como o ambiente de certas cidades ou estados, podem fazer com que os profissionais não se interessem por determinadas faculdades ou por determinadas regiões. Seus problemas acabaram: a politicagem rebaixa a exigência e faz com que se possa contratar gente que, legalmente, não vai receber tanto e que pode aceitar, por estar no início na carreira, mais merda do que pessoal com pós (não estou dizendo que gente com pós atualmente exija muito, o que justamente indica quantos destes estão se estapeando por vaga).

Na verdade, há bastante gente com pós que vai mal no quesito "experiência". Exatamente porque os certificados mais altos são tão necessários para se competir, o pessoal vem entrando verde no Mestrado, sem nenhuma experiência de mercado em muitas áreas. Agora, pelo menos esse pessoal teve mais tempo para desenvolver seus conhecimentos, seu espírito crítico, sua habilidade na área e na vida em geral. Não é que todo o mundo aprenda muito no pós, mas há sim gente que cresce com a experiência. Agora, competente ou não, a enorme maioria deixa mais a desejar antes do que depois do Mestrado; que dirá do Doutorado. Além disso, a importância do pós gera atalhos pouco éticos em alguns lugares, como sempre, mas também provoca que os cursos mais sérios tentem aprimorar suas pós-graduações. A diminuição de sua busca, porque "não precisa tanto", pode também afetar indiretamente o direcionamento desse tipo de preocupação qualitativa.

Só para aterrorizar, vou lembrar que tem gente entrando na faculdade analfabeto, ok? Não é a maioria, desde que ignoremos o analfabetismo funcional. Os políticos ignoram-no; o "mercado" pode fazê-lo também?

Qual a tática, então? Pegar o cargo menos organizado por lei e diminuir as exigências de formação para esse mesmo cargo, deixando o desespero da falta de emprego e as incompetentes faculdades particulares (exceções de qualidade representam quantos porcento delas?) se combinarem numa equação ridícula, com a desculpa de que é a falta de profissionais em algumas áreas, em algumas regiões, que motivou a lei! Ora, que a legislação desses locais lide com as exceções, que a Constituição cobre das faculdades privadas sua competência ou seu fechamento! Agora que conseguiram que Educação Infantil precise de formação adequada e comprovada, vão arregar no Ensino Superior, que estava mais organizado, ao menos na lei.

É uma pena que a natureza não aprenda com nossas falcatruas. Como a vida seria mais simples se, na falta de solo fértil, Senadora Natureza mandasse as plantas exigir menos nutrientes, ou depender menos de luxos como água para gerar frutos...

A educação brasileira vai mal em todo o seu espectro. Como um político ainda acha que rebaixar a exigência na formação de profissionais (basicamente a área em que todas as empresas querem que o país se reforce, há décadas) pode ser justificado pelas áreas e pelas faculdades que estão piores num quadro que já é alarmante? Ah... sendo um político brasileiro, claro.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Nossas bobagens vs nossa história

Pelo jeito, a versão iletrada que afirmou que livro do MEC ensinaria criancinhas do ensino regular a falar errado (além de não ser o caso, reforcemos de novo que seu público seria de EJA) será mesmo a versão oficial e o senso comum da imprensa a respeito do recente "escândalo". Essa é a versão que sobreviverá, porque, mesmo agora, tão próximos do caso, alguns jornalistas insistem em contar a história assim, mantendo-a viva e falsa.

No entanto, o livro dos colégios militares que ensina que o golpe militar de 1964 foi uma revolução democrática contra o comunismo que nos invadia (História do Brasil: Império e República, de Aldo Fernandes, Maurício Soares e Neide Annarumma) segue livre e solto, sendo usado sem problemas e sem provocar a ira dos debatedores de redes sociais/jornalistas. Fantástico!

quarta-feira, 6 de julho de 2011

O machismo nos olhos de quem vê

Two girlfriends about to strike. Two boyfriends about to watch.

Tornou-se quase um clichê a frase, pronunciada por uma mulher em direção a algum namorado ou semelhante, "Vai deixar ele/ela me tratar desse jeito/dizer essas coisas sobre mim?!" Muito mais comum que tal clichê é a mulher simplesmente ficar quieta, mas pensar algo muito próximo da mesma frase, não necessariamente em plena expressão linguística, magoando-se com a falta do comportamento masculino "adequado", "defendendo sua honra". Igualmente recorrente é que se atribua tal expectativa de tantas mulheres a resquícios da cultura cavalheiresca, ou seja, de uma imagem mais que ultrapassada de homem e que sempre, mesmo quando foi inventada, nos estertores da Idade Média, nunca condisse com a realidade. Acha-se no comportamento feminino, portanto, uma marca da cultura machista "entranhada na nossa sociedade".

No entanto, se pensarmos na situação inversa, em que um namorado ou marido é insultado na frente de sua parceira, é muito comum que a mulher salte com unhas e dentes para atacar a fonte do insulto ou pelo menos sinta o fortíssimo impulso de fazê-lo, a ponto de mal esconder, se necessário, esse impulso. Se a situação é suficientemente inadequada para tal reação, é muito provável que a mulher sinta tamanha indignação que a pessoa que insultou seu companheiro fique marcada para toda a vida, estigmatizada com a potência antiga do termo.

Comparando-se as duas situações, não é difícil imaginar que, em vez de um comportamento machista das mulheres, a expectativa de que um namorado ou marido defenda a honra de sua companheira pode bem ser uma simples projeção, em que as mulheres esperam que homens se comportem como mulheres naquele determinado contexto. Como não há uma cultura sobre a ética das mulheres nesse sentido, a menos que extrapolemos a expectativa do senso comum a respeito da defesa da cria (acho que um tanto restrita à classe média, hoje em dia, entendida no lato sensu), e a ética dos romances de cavalaria é ainda muito presente, apesar de seu rápido enfraquecimento, a racionalização da expectativa feminina apela para o ideal desses cavaleiros, não para os sentimentos da própria mulher como uma projeção baseada em seu próprio comportamento. A expectativa em relação aos homens é compreendida com base em clichês a respeito do homem, quer ele cumpra o clichê ou não, e a mulher que sente essa expectativa é esquecida pela racionalização.

Ou seja, se essa hipótese estiver correta, não é a mulher que exige defesa masculina quem demonstra um comportamento machista, ela está apenas fazendo uma projeção egocêntrica, digamos. É, de fato, quem a julga machista que o está sendo, ao imaginar que a mulher se baseia nos resquícios de um ideal pratriarcal e não em seu próprio egocentrismo. 

É claro que essa hipótese de inversão de machismos se aplica, assim explicitada, apenas à situação que expusemos: não se deve aplicar lógicas semelhantes para se justificar de consciência limpa, por exemplo, que o homem pague a conta... Obrigado.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Ato "falho"

Trecho da Folha de São Paulo

O líder venezuelano disse ainda que "agradece principalmente [ao ex-ditador cubano] Fidel Castro, que praticamente chefiou a equipe médica venezuelana e cubana que o operou".

Sim, o Fidel chefiando a equipe médica soa ridículo, mas não é a retórica do Chávez (muito típica), mas do próprio jornalista que achei digna de nota. Pergunto: se o texto está entre aspas, por que está na terceira pessoa? Não deveria ser "agradeço", "me operou"? Na verdade, a frase não poderia encaixar nunca depois daquele "que" do jornalista. E este tem certeza de que o meio do discurso do Chávez é o lugar mais adequado para definir Fidel como "ex-ditador"? Entre ser sutil ou crítico, conseguiram ser maldosos. Prêmio Desatenção!

domingo, 3 de julho de 2011

Enfim, mais para meu dicionário

"Largely that's what education consists of, namely figuring out the analogies which, when selectively applied, allow you to understand something very, very unfamiliar in terms of something that is much more familiar."

Steven Pinker

sábado, 2 de julho de 2011

A mágica dos dias ruins

Mistério da existência: por que uma barreira no nada, do nada, estúpida e teimosa?

Nem medo da morte, nem conforto para grandes perdas, nem o mistério da existência; nenhuma dessas três clássicas desculpas são o que mais me atiça a necessidade de soluções metafísicas para a vida. O que mais me provoca a necessidade de um pensamento mágico/religioso ou o sentimento de falta deste é ter um dia muito, muito, muito ruim! O tipo de dia que reúne acidentes dos mais bizarros, azares grandes e pequenos, além de consequências ruins que precisamos até de alguns dias posteriores para descobrir o quanto os acontecimentos daquele fatídico dia foram ruins.

Não se trata de humor nem de outras coisas que poderiam ser explicadas por psicólogos; não havia padrões de acontecimentos que pudessem ter alguma interpretação matemática ou estrutural; não parece haver nenhuma relação necessária que explique o acúmulo e a sinergia dos acidentes. E claro que não há, por que haveria? Afinal, a vida não faz sentido. Mesmo assim, uma confluência tão grande de "azares" dá a impressão de que haveria algum sentido. Por que diabos coisas tão ruins ficariam concentradas num único dia? Desde quando "dia" é medida de alguma coisa, a não para alguns seres vivos, como nós? 

Toda a existência, todos os fatos, não terem sentido, é uma coisa. Outra, mais estranha, é dizer que uma série de fatos com determinado valor (ruim, no caso) não têm sentido. Valor implica sentido, de alguma forma. Seu acúmulo parece provocar a crença num significado em comum subjacente aos fatos. Dias melhores virão, suponho, dias que não angustiem a ponto de provocar instintos metafísicos.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

A Fraca Força Sindical

"Força sindical" infelizmente é uma expressão de extremo ridículo. Já de imediato ela pode causar tristeza, porque seu uso indica a ilusão de que sua antiga força sobreviveu aos tempos. Não bastasse isso, há uma contradição prática muito forte entre a ideia de força e a de grande reunião de pessoas, indicada por "sindical", contradição que não é visível, pelo jeito, para as pessoas que ainda a usam. "Juntos somos fortes", tentam dizer, de diferentes formas. É, mais fortes que sozinhos, mas será que a diferença de força é tão grande assim? Será mesmo que a reunião de muitos trabalhadores chega a merecer o status de "forte" em relação às outras forças do mundo? Só para humilhar, e ser bem claro: 2 advogados em contexto favorável são incalculavelmente mais fortes do que 2 mil trabalhadores, mesmo que também em contexto favorável.

O primeiro problema da ideia de força sindical é que ela presume que as pessoas envolvidas tenham valor. Ora, um sindicato reúne trabalhadores, portanto seria necessário que trabalhadores, ou o próprio trabalho, tivessem valor. Não têm. Em vez de explicar longamente, vou apenas apontar o leitor para que leia tudo que motivou a revolta dos bombeiros no Rio e quais as consequências do movimento. Creio que ficará claro o quanto mesmo trabalhadores respeitados pelo senso comum não têm valor social efetivo, ou seja, político.

O outro grande problema, na raiz do fato de 2 advogados poderem causar muito mais estrago (portanto demonstrar mais força) do que 2 mil trabalhadores, é que os mesmos trabalhadores quase não podem causar estragos. Com exceção de algumas funções-chave, por isso mesmo abusivamente restritas em seus direitos de greve, a maioria dos trabalhadores afeta apenas a si ou à população de fraco poder político. Se seu trabalho parar, outros trabalhadores serão afetados, só isso. Não são apenas os trabalhadores sindicalizados que não têm valor no Brasil. Caminhar, fazer faixas e berrar uma ou duas frases de efeito (geralmente com fraquíssima lógica) não afetam a vida política brasileira. 

Ao mesmo tempo, 2 mil trabalhadores poderiam fazer um estrago muito maior do que 2 advogados se a multidão apelasse para qualquer tipo de violência, mesmo que fosse sonora, diretamente sobre políticos. Isso, no entanto, não pode ser feito, porque seria imediatamente tratado como crime. E isso, por sua vez, porque é considerado crime tudo que atenta contra a paz. Agora, "paz" é uma palavra complicada, que precisa talvez de mais explicações do que "força sindical", então vamos com calma.

Um sociedade que valoriza a paz pode ter cidadãos roubando, estuprando, matando, humilhando ou violentando (em sentidos mais variados) outros cidadãos. Numa sociedade de paz, também é possível que o Estado roube, estupre, mate, humilhe ou violente de diferentes formas os cidadãos em geral. O primeiro tipo de violência, entre cidadãos, é proibida, para quem acredita no valor da letra impressa. Nem sempre, aliás quase nunca, essa letra precisa ser levada ao pé da letra, no entanto. Grande parte das humilhações e violências mais inventivas nem podem ser comprovadas conforme os métodos válidos para a lei. Boa parte da violência é tolerada, na prática, por todos, inclusive estupros e assassinatos. Fala-se mal, mas não se vai além disso.

O segundo tipo, do Estado contra o cidadão, é o mais simples de se analisar, exatamente porque geralmente se desenvolve na impunidade completa. Muitas vezes é difícil de perceber, para a gigantesca maioria da população, e pode ser realizada de forma bastante indireta. Vários métodos dessa violência são cotidianos, sendo por isso mesmo esquecidos pela maioria na hora de pensar a respeito das diferentes formas que o Estado tem de humilhar a população que não faz parte de sua máquina, e muitos dos que fazem parte até.

A "Paz" que caracteriza nossa sociedade define-se pela impossibilidade (sacramentada) de qualquer cidadão, em grupo ou sozinho, revidar a violência do Estado. Portanto toda humilhação, todo abuso ou toda violência em geral devem ser respondidas com pacíficas passeatas e lindas frases, escritas com muito cuidado, pois críticas verdadeiras podem ser consideradas ofensivas, o que já constitui violência profana do cidadão contra o Estado. Mesmo que, roubando, corrompendo e mentindo, um ministro seja um individualista, na hora em que é insultado torna-se magicamente embuído de seu cargo, de modo que toda ofensa pessoal será respondida da altura poderosa de seu título, geralmente mais honorífico que profissional.

Sendo, nos sentidos expostos acima, pacífica e sem valor, a força sindical podia procurar o ostracismo. À luz do sol brasileiro, por enquanto só lhe resta passar ridículo.

PS: Este post é sobre a expressão e sua ideologia implícita. O envolvimento dos partidos com os sindicatos, na prática, muda um pouco o poder efetivo das organizações.