quinta-feira, 17 de junho de 2010

Eagle Eye ou A Espoliação Cultural e o Cético

Pensei várias vezes em dizer no blog, em algum lugar, que 95% do que publico aqui é deboche, ironia ou citação de caráter ridículo autoevidente - até porque já fui mal interpretado numas coisas um tanto chatas. Pensei em aproveitar e fazer aqui o contrário, dizendo que este post não é nada dessas coisas, nem é pra ser curto como demanda a preguiça do leitor médio de Internet. Quem procura o costumeiro aqui deveria ler de "Tri selado!" pra baixo.

Este texto é de fato uma reunião de comentários sobre a agressividade em momentos de luto, escrito porque não quis deixar que passasse batida a morte da minha sogra (mãe da namorada - quem me conhece e chegou a ler até aqui não precisa se assustar: não casei sem avisar), uma mulher com quem pude conviver de verdade apenas durante poucas horas. Publico, claro, para que seja lido, mas não com o mesmo convite irrestrito que a maioria dos outros textos do blog. Não se trata, por fim, de um momento de intimidade expresso na dor, portanto os abutres que incidentalmente tenham caído aqui podem alçar voo.

Acompanhei, em algumas horas mais de perto que em outras, suas últimas duas semanas de vida de modo particularmente atento, em especial se se considerar que nossa relação até então se resumia, basicamente, a um dia de convívio. Boa parte do que tenho a dizer não se refere a ela, portanto, com uma exceção: vítima de câncer, ela resistiu à morte até o último momento, suportando qualquer natureza de dor, sempre evocada pelos familiares e presentes como motivos para que ela aceitasse o fim que se aproximava e descansasse. Considero essa resistência também um tipo de agressividade, a vontade irrestrita e intransigente dos seres vivos para permanecerem vivos, que sempre me faz lembrar o constante esforço do corpo para simplesmente existir, mesmo em nossos momentos de mais desatenta saúde. Sempre me chama a atenção que nossas células ininterruptamente trabalhem (o que inclui, às vezes, a reprodução delas próprias), pois lembro que o conjunto de seu esforço resulta num ser geralmente preguiçoso e distraído (sei que a carapuça serve, mas não me refiro apenas aos seres humanos). Há uma ferocidade em nós (para mim atraente) que nos leva, conscientemente ou não, a agarrar a vida, seja ela com sentido ou sem, boa ou má, por todos os instantes que ainda pudermos. Talvez seja o caráter unívoco da resposta negativa que nos motive também conscientemente a reforçar essa vontade premente: viver é sempre uma riqueza de possibilidades (ainda que dúbias), enquanto sua negação é apenas o véu plenamente opaco da morte. No caso de um estado terminal, se já vamos para lá mesmo, por que não demorar um pouco mais aqui, não?

Enfim, pouco mais posso falar sobre a agressividade natural dela, apesar de ter-se asseverado à minha volta muitas vezes que ela era osso-duro com suas vontades. Menos mal, ela tinha obstinação carismática, até onde pude ver.

Quanto aos circundantes, as possibilidades de agressividade são milhares. Em primeiro lugar, é claro, há a revolta contra a impossibilidade de se alterar o destino fatal de um ente querido. Em segundo, o potencial, estranhamente rico, de se irritar com os outros visitantes ou companheiros que querem bem aquele que morre. A maior parte desse potencial parece desenvolver-se da mesma fonte que a primeira irritação: as pessoas ainda não aceitam que alguém querido morra, mas, frustrada a vontade de dominação a respeito do fato em si, a mesma vontade se volta aos espólios de memória a respeito do morto, o que vou chamar de espoliação cultural, sem saber se o termo já foi cunhado.

No caso da minha sogra, que trabalhou em postos de saúde, a espoliação cultural variava de quase imperceptíveis comentários de ex-pacientes até os pressupostos inconciliáveis das decisões feitas pelas amigas e irmãs da morta durante o funeral. O fenômeno manifestava-se já no hospital, quando seu estado era extremamente grave, e alguns comentários que tinham por pressuposto uma imagem dela feria (ou quase) a imagem que outra pessoa tinha. As esquivas eram naturais: a maioria lembrava que esse momento de dor excessiva não é chão em que se fundamentem julgamentos a respeito de ninguém, portanto as possíveis incomodações eram deixadas de lado, ou o esforço para tal existia. A religião, no entanto, parece perfeita para provocar esse tipo de choque, pois a mera pressuposição de que determinado ato litúrgico pode ser feito (ou sua realização ser efetivada sem que todos os parentes mais próximos sejam questionados a respeito) fere a noção ou o conhecimento que outros presentes têm a respeito da religiosidade da própria pessoa que morreu. Quando se está no funeral, aliás, a espoliação passa a correr solta, aproveitando-se de que o morto não pode mais frustrar cabalmente a imagem que cada um faz dele; o embate de memória está oficializado, dele nascendo, enfim, parte importante da racionalização que fará cada um aceitar o ocorrido.

Se a espoliação parasse por aí, no entanto, eu provavelmente não escreveria este post, mas a religião provoca uma inversão curiosa, quando muitas batalhas de ego e apego já foram travadas e o funeral já cansou bastante a todos. O clérigo que oficializa a cerimônia e fala, cita e reza, durante todo o processo final, age como se o morto fosse o resultado trágico e o espólio fossem os vivos, os entes queridos, todos que estão tristes pela morte. Não considero isso esperteza maldosa, nem sacanagem, nem característico de uma religião em particular. Estou dizendo que isso é próprio do ato de se oficializar uma morte religiosamente, e não estou afirmando de forma alguma que é algo errado. Não vamos simplificar para moralizar já que não estamos na TV. Mas o que o clérigo faz é reforçar uma inclinação já preparada anteriormente pelos próprios parentes e conhecidos em direção a uma ideologia em particular, a respeito da morte, claro, mas especialmente, e por meio disso, a respeito da vida, pois é para quem fica que ele fala.

Estritamente, separar "conteúdo" e "ideologia" é discutível, mas digamos, por força de expressão, que seu ato é tão mais ideológico quanto o conteúdo é redundante: tudo que ele vai dizer já foi expresso, de forma mais detalhada e tão repetitiva quanto um mantra, por quase todo mundo que visitou a pessoa no hospital ou no funeral. O sincretismo religioso brasileiro é ótimo para isso, pois garante que a religião do clérigo escolhido tenha sido bem coberta pela análise, no mínimo, daqueles que sofrem mais e daqueles que mais se preocupam com estes.

O cético, porém, sofre essa espoliação de forma diferenciada. Enquanto o brasileiro típico ginga no sincretismo para acomodar as asserções do oficiante, o cético sente todas as esperanças traçadas pelo clérigo desenharem o pós-vida maravilhoso que seu ente querido não terá. Todas as afirmações sobre "seguir vivendo", "estar melhor", "olhar por nós" etc. solificam a extrema e derradeira perda de quem parte. Ainda que essa perda não seja total, pela inevitável presença que será experimentada por força da memória, o cético ouve retumbar em si o vazio de palavras que acredita serem ocas e chora o que ainda pode por sofrer, mais uma vez, a mesma tortura que antecede por tantas horas ou dias o enterro em si.

Não só o cético chora, é claro, pois o discurso religioso tem aí, acredito, um valor maior que seu caráter aparente de consolo (como disse, todos os consolos que ele possa oferecer já foram expressos, com exceção do efeito retórico de eles serem pronunciados por alguém "desinteressado", alheio ao morto): a cerimônia religiosa permite que se chore ainda mais quando se tem conforto ao lado. Aceitando-se que a morte está consumada, o luto precisa ser vivido, e quanto mais dor fica no funeral (cheio de ombros dispostos), mais saudável é a volta de todos às suas vidas. O cético que chora, portanto, por um caminho torto, sofre uma catarse análoga à dos fiéis.

Ainda que pensando assim, foi nisso que encontrei minha agressividade em momento de luto. Tendo passado dias tentando apaziguar as manifestações de luto (de outrem) que buscavam se expressar pela agressividade (não creio que toda forma de extravasamento seja aceitável ou produtiva) e pensando que o clérigo fazia bem o seu papel, ainda assim não podia deixar de me irritar sempre que seus movimentos retóricos, pela negativa, faziam minha cética chorar.

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