quarta-feira, 20 de abril de 2011

Moral sem Deus: um problema dos outros

Godkiller, godsavior
O grande verbo do pensamento, para mim, é encafifar. Certas coisas me deixam encafifado, outras não, mas aquelas têm esse poder à revelia de minha vontade ou proposição inicial. Isso chega ao ponto de eu herdar questões de outras pessoas: um sujeito menciona uma dúvida na minha volta, mas ele mesmo não tem vontade de pensar a respeito no momento. Não importa, se me deixou encafifado, lá vou eu, às vezes semanas a fio, tentando matar a charada, independente da curiosidade ou não do provocador ingênuo. Isso é particularmente verdade quando o problema é ético, moral, pedagógico, linguístico, artístico ou existencial. Agora, o mais curioso é que, às vezes, eu consigo até mesmo esquecer que herdei a questão, já que problemas encafifadores são importantes em si mesmos para mim. Se a pessoa que provocou meu raciocínio foi outro ou não, em geral pouco importa.

Mesmo assim, acho interessante descobrir quando o problema foi gerado por outrem, porque às vezes ele não nasceu meramente de outra pessoa, mas por aquela pessoa chegou a mim um problema gerado por outro grupo, um grupo a que não pertenço, e que tende a gerar aquela pergunta para um grupo a que eu realmente pertença (p. ex., um problema classicamente proposto por militantes para cínicos). É significativo, nesse caso, descobrir que aquilo que me encafifava não é apenas um acidente com que trombei individualmente, mas que essa trombada individual é tecnicamente como aquele "outro" grupo tenta prender, atacar ou anular o "meu" grupo. Foi com uma descoberta dessas que me deparei nesta semana.

Um problema me encafifara (há alguns anos): "como fundar uma moral sem um absoluto transcendente, como Deus", supondo que a pessoa concorde que uma moral é necessária, ou seja, que o relativismo cultural absoluto e o oba-oba não são conclusões que podemos aceitar para a vida humana na Terra? Eu tinha a minha resposta para a questão (e optei, sim, por uma moral), quando comecei a ler (há poucos dias) "Em que crêem os que não crêem", uma conversa pública entre Umberto Eco (representando os ateus, o que achei um tanto estranho, por mais que ele não acredite num Deus pessoal) e o cardeal Carlo Maria Martini.

O livro traz, depois da "conversa" (bem entre aspas), comentários de outros pensadores sobre exatamente esse problema moral, motivo das últimas "cartas" entre Eco e Martini. Logo de início colocaram um pós-moderno radical (interessante), depois um spinoziano e assim por diante. Ora, o pós-moderno coloca uma coisa que me fez me sentir muito idiota por ter esquecido: quem põe o problema da moral sem o Absoluto metafísico são os monoteístas; não são os ateus que se propõem esse problema. Mesmo historicamente isso foi assim, eram os monoteístas em crise, pressentindo o ateísmo em tocaia nas suas mentes, que levantavam a questão.

Nossa, como eu posso ter me esquecido disso? Eu realmente considerava o problema válido para ateus, não para religiosos, mas ele surgiu na minha cabeça primeiro por Pascal, e então decentemente por Kant. Depois, sempre foram monoteístas que me surgiram com ela, até recentemente um católico num almoço e, por fim, no livro, o cardeal, propondo-a para Eco! 

Isso é interessante para o lado sociológico da discussão, não tanto para a lógica de sua solução, mas foi engraçado que eu tenha deixado passar que, no fundo, pensada assim, essa pergunta é outra modalidade, bem mais sutil e delicada, do velho argumento "medo" a favor da religiosidade (a ideia aqui não é simplificar, só mostrar um outro ângulo). Ela é um pouco mais daquele "imagina se" que propõe um mundo sem religião apenas para assustar, ou que coloca a possibilidade da religião para o ateu apenas para indicar que é mais seguro seguir o caminho monoteísta, nem que seja só para garantir. Tecnicamente eu acho que Pascal e até Kant não ficaram muito longe disso, pelo menos no sentido de que Deus acaba sendo "útil", fundado no homem, para eles, ainda que fossem crentes. Como Nietzsche disse, Kant matou Deus, só que foi necessário que Nietzsche viesse para proclamar o crime. E foi tal assassino um dos que pôs o problema da moral sem Deus de uma das maneiras mais complexas e convincentes.

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