terça-feira, 17 de maio de 2011

Sem passado... somos presentes

Se tem uma coisa muito "pós-moderna" do meu discurso é que realmente sustento que o passado não existe, a não ser como construção atual. Isso geralmente é mal interpretado (por defensores e detratores) para se dizer que o passado não existiu, não foi um fato, ou que nenhuma versão a respeito dele possa ser mais verdadeira que outra simplesmente porque todas seriam versões. Do meu ponto de vista, isso é mais ou menos como raciocinar da seguinte forma: uma pessoa andando de bicicleta nunca estaria totalmente equilibrada, porque ela está sempre construindo esse mesmo equilíbrio. Se o equilíbrio é um ato contínuo, nunca há equilíbrio de fato, e daí se conclui que uma pessoa caída no chão e um ciclista em movimento suave e elegante estão pedalando igualmente mal.

Não: "o passado só existir como construção atual" quer dizer que o passado precisa ser "atualizado", para entrar em questão, para ser. Ele precisa ser referido, sendo sempre, SEMPRE, atualizado por algum motivo. Obviamente, ele só é atualizado, então, para servir esse motivo. Talvez algum chato encontre uma situação limite em que ele pudesse ser atualizado só por ser, não sei se é possível, mas tenho ótimos motivos para crer que, se atualizado apenas por isso, o passado evocado seria também imediatamente esquecido. O passado é sempre um argumento, é isso. Portanto sua existência só nos interessa em relação ao presente, e mesmo a pesquisa científica do passado é uma luta para justificar o presente ou para questionar esse presente e a teoria que o justifica. 

Por isso mesmo precisamos sempre ser lembrados do passado (relevante - mas "passado relevante" é meio redundante: não seria lembrado se não fosse, de alguma forma, relevante). Não adiantou se inventar o gauchismo, por exemplo (particular invenção de passado, já que "invenção", aqui, como bem se sabe, é muito literal, longe de depender de um pós-modernismo lexical). É preciso que a cada, ano, a cada jogo regional, a cada notícia sobre relações políticas entre RS e Brasília, a cada gaúcho no noticiário nacional, enfim, a cada momento que for possível ele seja ser reafirmado. O mesmo para o nacionalismo, o anti-colonialismo, o ódio a ditadores, o horror com o Holocausto... 

Agora, não é porque o passado de fato ocorreu (mais ou menos inacessível ao nosso conhecimento) que a afirmação "o passado só existe como construção atual" não o fragilize severamente. Sim, o passado sai quase paraplégico dessa afirmação. Porque isso significa que o passado não justifica ações atuais. Não por si. O que o passado faz é dar uma desculpa "racional" para que justifiquemos ações que queremos fazer agora, seguindo o que sentimos no presente, seja esse sentimento racionalmente confeccionado ou não. Não é perder um filho que justifica o choro, mas a dor, presente, da falta do filho. É ela que evoca o passado, para embelezá-lo e engrandecer a dor presente, dar-lhe mais cor num masoquismo que pode nos parecer totalmente justificável, mas que nem por isso dá solidez ao passado. Para dar um exemplo meio extremo, um psicopata que não chorasse a dor da perda de um filho ainda seria capaz de reconhecer o fato de que tinha um filho e agora não tem mais. Ele não choraria porque lhe faltaria a dor, mesmo que tivesse conhecimento sobre o passado. Ele esqueceria em segundos o fato (estaria na memória, mas não seria conscientemente atualizado a cada milésimo), desinteressado pela falta de relevância presente para aquilo.

É óbvio que podemos reconhecer os sentimentos de outras pessoas em relação ao passado, como podemos entender por que um pai ou mãe está chorando a morte de um filho, mesmo tempos depois, e podemos lhes dar seu tempo ou respeitar sua expressão de sofrimento; não estou falando contra a empatia. Mas o passado como argumento não é apenas filosófica ou subrepticiamente falso, chega a ser, em casos mais graves, pernicioso. Assumir que ele só é evocado para justificar interesses presentes é dizer também que ele é usado para ocultar esses interesses. O conflito é atual, o interesse é atual, a justificativa é passada? Não, a justificativa é um apego, um sentimento, um interesse, todos sempre atuais. Nossos sentimentos não vêm do passado, mesmo que assim os associemos, eles nascem e se formam hoje, aqui e agora

Novamente, isso não quer dizer que o passado não tenha existido. Mas ele só existe (presente) como racionalização, teoria, desculpa ou justificativa mágica. "Dívida histórica" (negra, colonial, palestina, israelita) é um conceito mágico. Existe uma herança direta de uma série de problemas que deve ser resolvida dentro dos conflitos atuais e de necessidades que podem ter raiz no passado, mas essa raiz precisa ser traçada materialmente, só interessando por suas consequências atuais. Se lidamos com consequências atuais do passado, é porque estamos ligados a conflitos atuais. O passado, religioso, combatente ou crimonoso, nada pode cobrar do presente. Parece tautológico, mas precisa ser dito: o passado não existe mais. Seria uma grande ajuda deixar de mistificar conflitos presentes com as máscaras do passado.

Um comentário:

Carla M. disse...

E eu precisei ler tantos livros de teoria da história pra pensar assim...