quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Ossos do ofício

Quando escrevi o post "Newspeak indeed", no dia 10, fiz a seguinte frase: "Quem não leu '1984' leia, antes que o Programa Nacional de Direitos Humanos o tire das livrarias".

Não coloquei vírgula depois de "1984" porque achei que tudo que vinha até ali era sujeito de "leia". Por outro lado, isso me parecia possível apenas por manias das gramáticas, já que o sentido que eu queria dar para a frase não parecia estar de acordo com essa análise sintática (para mentes estruturantes como a minha, sintaxe e semântica são irmãs siamesas). Lembrei ainda dos gramáticos que querem dizer que o sujeito, se estiver presente, ficaria marcado depois do verbo em caso de imperativo. Aí pioraria tudo, porque a oração inicial, se posta depois do verbo da principal, sem vírgula, ficaria parecendo objeto direto ("Leia quem não leu '1984'")!

Era claro o problema: usei "Quem não leu '1984'" como vocativo, portanto adicionei uma vírgula. Mas ainda parecia haver algo estranho, e lembrei que, pela Gramática Normativa, não exite oração subordinada substantiva vocativa (ao menos conforme todas as minhas). Foi o que bastou para que eu pensasse em várias frases em que usaria orações como vocativos, períodos em que uma oração claramente não poderia ser considerada sujeito da outra.

Na verdade, o tilt me parece estar no fato de que a Gramática não considera o vocativo como algo que tem conexão sintática necessária com o resto da frase (daí estar obrigatoriamente isolado por vírgula). Por isso, ele nunca poderia ser uma oração subordinada, mesmo que esta faça papel de substantivo. Assim, aquela minha oração seria uma coordenada assindética simplesmente, mas isso resolve o problema da explicação coerente gramática-normativamente ignorando absolutamente as consequências semânticas (por exemplo, a oração perderia seu potencial de sujeito da principal, o que todo vocativo guarda no modo imperativo, ao que me parece). Seria bem típico de Gramática Normativa, mas não me convenceu.

Tudo isso por olhar a frase com cacoetes de revisor e achar importante pensar a respeito por neuras de professor. Mas deve ter sido por resquícios de interesses de linguista que eu passei várias vezes, durante os dias seguintes, lembrando da frase nos contextos mais estranhos e simplesmente filosofando a respeito. Enfim, é nisso que dá passar muito tempo em ônibus com sono demais para ler e conforto de menos para dormir...

PS: Linguistas profissionais que queiram dar seus apartes, mesmo que me façam parecer muito idiota, estão convidados a comentar sem restrições.

Um comentário:

Gabi disse...

ah, se eu tivesse um pouquinho dessa disposição, o ensaio estaria pronto! e a úlcera curada! Deus, distribua esse dons, por favor!