quinta-feira, 30 de junho de 2011

A teoria do cânone

Hoje um colega cantarolava insistentemente determinada música, até que uma colega em comum, que trabalha com música, passou por perto. Como estava sendo afrontado a respeito da cantoria (não por ela), perguntou se ela conhecia. Frente à negativa, o cantor respondeu com aquele clássico Baaaaaaaahhhh de "estou impressionando", "estou chocado", "estou decepcionado", esses tons de insulto social. Ela repetiu com toda a tranquilidade que não conhecia a música e, quando ele disse de onde ela era, a colega respondeu com um irônico "Ah, tá! De tal lugar... hmmm..."

Uma terceira riu perguntando se havia lógica em se esperar que alguém conhecesse todas as músicas só por trabalhar com isso. O assunto não se desenvolveu muito mais depois disso.

Além de odiar a prática do "como é que tu não conheces isso?!", sinto francamente que quem trabalha com literatura é visto por outrem como uma pessoa que obrigatoriamente conhece todas as obras "importantes", "relevantes" e "boas", mais do que quem trabalha com outras artes. Pode ser só impressão (já que não trabalho com música, pensando nesse caso), mas me parece que é bem mais fácil alguém admitir que o tamanho da lista de músicas do mundo é tão grande que ninguém daria conta, ou precise dar conta, de todas as consideradas "grandes". No caso da literatura, parece haver um cálculo intensificando as exigências de erudição.

A escola, particularmente o Ensino Médio e os pré-vestibulares/Enem, deve dar a impressão de que existem mais ou menos 3 grandes obras por cada escola. Geralmente sobram na memória de quem se importa em conhecer cânones Barroco, Arcadismo, Romantismo, Parnasianismo, Realismo, Naturalismo, Simbolismo, Pré-Modernismo (nomenclatura que, espero, tenha terminado de cair, mas não sei qual o nome que vestibulares usam atualmente para isso), Modernismo, Romance de 30, Poesia Concreta e os últimos meio sem nomenclatura. Para estes, parece-me que cada pessoa inclui mais ou menos Drummond, Clarice, Cecília, João Ubaldo Ribeiro, João Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e alguns poetas regionais. Vinícius de Moraes e alguns outros são considerados grandes, mas pouco lembrados se se pensa em livros propriamente. Temos, na relação 3 cânones para cada escola, algo como 33 + 6 relativamente sem classificação no senso comum vestibulado + 1 regional. 

A esses 40, uma pessoa que realmente se importe com cânone vai acrescentar clássicos óbvios, como Homero e Sófocles, e uns estrangeiros, por volta de 15, creio, cobrindo o resto do continente americano, mais ou menos, e uns europeus, talvez uns russos e um autor africano que esteja na moda de programas culturais de TV e jornal. Digamos que estou calculando por baixo e que a pessoa considere canônicos não 55, mas 65 autores. 

Como geralmente apenas as mesmas pessoas são citadas, o número é reforçado, subrepticiamente. Mesmo filmes sobre autoras como Jane Austin não são capazes de incluí-la nessa lista, aqui no Brasil. Ainda que apareça um pessoal em certas formas culturais estrangeiras, o número de autores canônicos que se pressupõe é mantido um tanto baixo, mesmo porque ninguém leu todos os autores que conhece. Distanciar muito um número do outro é complicado para a memória e para a integridade intelectual.

A minha teoria é que esse número fica um tanto quanto inconsciente, mas esses 65 autores não seriam tanta gente para se conhecer. Se uma pessoa que estuda qualquer outra coisa os conhece, alguém que estuda literatura necessariamente deveria não apenas conhecê-los, mas tê-los lido. Daí há um segundo movimento de projeção: se eu que não sou da área gosto do cânone (aprendi a valorizá-lo), é uma conclusão necessária que eu saiba dizer o que é bom, logo o que eu curto merece ser posto no cânone, a menos que seja autor notoriamente malhado, como Paulo Coelho. Se eu sei o que é bom e gosto de um autor qualquer, quem estuda Literatura deve concordar comigo e conhecer esse "grande" autor. Se o estudioso não conhece tal autor, trata-se de um crime inafiançável. Por quê? Digo eu (real), porque se pressupõe que existam muito poucos livros bons no mundo. 

 A ideia de seleção, de exclusividade, é muito mais forte na literatura do que nas outras artes, devido ao acabamento que se deu no conceito durante o famigerado século XIX. O bom na literatura é raro. O mesmo pode ser dito nas outras artes, mas a pecha de "ruim" não exclui uma música da categoria "música". O cânone literário é formado por dupla exclusão. A literatura ainda sofre os efeitos de se pensar que nem tudo que é ficção ou poesia merece ser considerada literatura. Diz-se sempre "Paulo Coelho não é literatura", por exemplo. Apenas o bom do ficcional é literatura. O cânone, portanto, é o bom do bom, o que só pode, nesse senso comum letrado, dar a ideia de que os grandes autores são tão raros que todo "estudioso das Letras" deveria conhecê-los, lê-los e praticamente sabê-los de cor. A ideia é idiota, mas tem fundamento, ainda que inconsciente e equivocado.

Nenhum comentário: