domingo, 19 de dezembro de 2010

OAB - Prova pra quê?

Há quantos anos se tenta derrubar o exame da OAB? Os critérios variam (e o atual de isonomia é péssimo), mas uma coisa não muda, o problema do exame: reprovar mais do que aprova. E por que isso acontece? Em parte porque ele é voltado a certo tipo de formação e não a outras? Muito provavelmente. Essas outras são melhores que a escolhida? É discutível. Existem críticas a esse tipo de formação, dizendo que alguma das "outras" seria muito melhor? Claro. Agora, quando todas essas afirmações não são verdadeiras a respeito de qualquer prova? É esse o problema do exame da OAB? Que seja uma prova?

O pecado da OAB não é metodológico, porque isso reformas resolvem (e suspender megalomaniacamente o exame da noite para o dia não é uma reforma sensata), seu pecado é estrutural: propor uma avaliação que tem exigências altas, que pode sim reprovar mais que aprovar, já que essa discrepância quer dizer que existem determinados critérios (discutíveis como quaisquer outros) e que estes critérios não podem ser dobrados apenas por uma choradeira esparrenta nem por choramingos, sem método nem validade legal (mas não significa que alguém do Estado não possa agir dentro do sistema legal para respaldar tais choramingos - e o interesse de alguém, especificamente). Toda prova pode ser reformulada ou questionada, o que é muito diferente de achar que "Pai, eu queria ter passado e não passei" vale derrubar todo um sistema. 

É extremamente ridículo e preocupante que tantas pessoas "formadas em Direito" (índice irônico da qualidade dos cursos que abundam no Brasil, o que só reforça o argumento da OAB que é preciso ter critérios para deixar essa gente agir com o poder que o Direito traz) achem no entanto que seu choramingo pessoal, reforçado pela comunidade dos tristonhos, mas não por uma crítica razoável, seja argumento para uma decisão como a do desembargador Vladimir: "Simplesmente suspende tudo porque eu descobri, depois de séculos, que a tal prova não garante isonomia" - como é que o  Haddad não pulou na imprensa e veio falar sobre a "tecnologia de ensino" dessa vez?

Tudo isso é preocupante e ridículo, como disse, mas não de se estranhar. Existem apenas dois âmbitos em que provas têm algum valor discriminatório (sua raison d'être, vamos combinar): concursos e OAB. É infinitamente mais difícil entrar numa instituição pública do que sair dela diplomado ou desfrutar da vida lá dentro, em caso de emprego. E isso por um motivo simples, não há lugar dentro das instituições públicas para todo mundo. Portanto, mesmo que se queira "auxiliar a sociedade" abraçando todo mundo, não tem como colocar todos os brasileiros dentro do Estado, econômica e fisicamente falando. As cotas tentam mitigar isso um pouco, por diversos motivos que não interessam aqui, mas mesmo assim a competitividade é necessária, de modo que a luta entre concorrentes torna a prova discriminatória.

Todas as outras "provas" brasileiras são contornáveis, por amizade ou por choramingo. As exigências do Estado em quaisquer outros âmbitos podem ser resolvidos com choro (particularmente poderoso pela vontade política de se mostrar números de aprovação e porque os níveis educacionais sempre foram tão baixos que qualquer variação mínima já parece grande coisa). O QI (Quem te Indique) resolve quando não se tem conteúdo ou valor para um emprego privado (e de alguns públicos também). No caso de cursos privados, quem paga manda, de modo que não se pode ser reprovado quando se é o cliente/chefe. Parece-me que, nesse quadro todo, prevê-se que os ricos e pobres se dirijam a seus respectivos empregos-clichê e tudo siga numa boa, com a educação de qualidade sendo adquirida das formas paralelas usuais ou por sorte e esforços isolados. Quando a competitividade e/ou o talento provoca mobilidade social, há sim conflito, geralmente muito, mas essa briga é um tanto localizada, resolvida caso a caso, às vezes de forma injusta e às vezes não.

A OAB é um grande choque nesse sistema, porque tanta gente não passa que escandaliza uma parcela violenta de pessoas que nunca viram na vida ser posta em prática uma lógica de discrimanação baseada em critérios explícitos e socialmente validados (o que não quer dizer que essa validação não seja questionada e conflituosa). Essa galera considera a coisa toda fora desse mundo, absurda, injusta. A recente discussão no MEC para que os primeiros três anos de escola não possam envolver reprovação alguma é apenas o último desenvolvimento de uma política que quer ser construtiva ignorando a inteligência das crianças, que aprendem muito mais pelo que fazemos do que pelo que dizemos. Não adianta a educação brasileira ser retoricamente criteriosa se é pragmaticamente permissiva. Todo mundo aprende: exigência é discurso, na prática todo mundo passa.

Não é à toa que a OAB enfrenta tantos problemas para manter essa prova e concursos dominam a imaginação de tantos brasileiros. Nesses dois momentos especiais tudo o que se diz sobre competição e qualidade, e que nunca foi verdade na vida do aluno, torna-se realidade, dura realidade. E o choro ou a falcatrua, que funcionaram até então, precisam funcionar agora também. Basicamente o que os proto-advogados dizem ao questionar a própria existência do exame é "o teatro da educação foi mantido até aqui, e não é agora, no limiar do meu mercado de trabalho, que vocês vão levar a farsa a sério".

A resistência a toda essa lógica parte de profissionais e alunos que se negam a aceitar a mesma, os corruptores envolvidos no próprio sistema que tentam miná-lo em nome de outro tipo de educação, ainda que devendo se dobrar a ele de tempos em tempos. Isso não muda o fato, no entanto, de que o sistema em si é aberto a quem vier (não confundir com inclusivo). O grande denominador comum, o mercado, depois se encarrega de achatar todo mundo a uma impessoalidade que deixa com o rabo entre as pernas os despreparados e sem amizades bem colocadas. O mercado, no entanto, é uma força sem centro nem rosto. A única solução é aderir apaixonada e acriticamente a bandeiras anti-burguesas (não supondo que não seja possível ter postura semelhante e senso crítico) ou usar o mercado como desculpa para discursos autocondescendentes que informam desde aproveitamentos ilícitos da assistência social até o tráfico. 

A OAB, entidade bem localizada e localizável, é por isso mesmo diferente do mercado, trata-se de um alvo que pode ser clara e diretamente atacado. Apesar de não gostar de fazer afirmações tão amplas, parece-me mesmo que a derrubada efetiva de tal exame será o passo final de uma revolução no Brasil inédita: o fim da institucionalização dos critérios. Como a norma culta, em oposição à norma padrão, a competição entre profissionais terá se tornado puramente social, ou seja, ditada por regras complexas e esquivas, geralmente de difícil percepção clara, o que dificulta infinitamente sua contestação e enfrentamento. Além disso, terá se formado um país inteiro de pessoas que esperam resolver tudo no choro ou no grito, mas nunca numa representação de que façam parte ou em que se organizem. Existe já alguém para patroná-los, o Estado ou o rico. A resistência a essa lógica restará localizada naqueles grupos que educam seriedade e dedicação, casos isolados e mitigadores de um sistema que não quer educação, e atinge esse fim não tendo critérios.

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