quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Aprender é não se mixar

Ontem de noite (ou seja, agora há pouco), dei uma aula de pragmática para adultos que não completaram o fundamental. Austin, acima de tudo, mas também Searle e Grice. Uma versão curta de uma ou duas aulas que tive na faculdade, lá pelo terceiro semestre, após a minha turma ter lido (ou, alguns, fingido ler) textos teóricos indicados. Tudo posto em uma aula de uma hora e meia, sem leitura prévia, sem texto indicado, sem alunos que querem se formar em Letras. Isso foi, na verdade, 2/3 da aula, discussão prévia para eu finalmente abordar a pintura que estava no capítulo do livro didático de que deveria tratar.

Resultado? Funcionou. Funcionou muito bem. Como talvez fosse de esperar para alguns, justamente os piores alunos em Português, matéria inevitavelmente voltada à gramática e à louca organização de "textos canônicos" no programa de ensino (mesmo formato para todo o país), foram os alunos que mais prestaram atenção e que mais entenderam a profundidade do que eu estava explicando, para além da primeira compreensão racional. Na verdade, o interesse foi inversamente proporcional à nota do aluno em gramática ou produção de redação. Quanto "melhor" o aluno, menos ele queria saber dessa teoria diferente de como as pessoas se comunicam, de como os enunciados têm sentido, com uma exceção: o melhor aluno da turma, que comprovou simplesmente atacar bem em qualquer nível de discussão de linguagem. Eu não entrei em grandes nomenclaturas. Obviamente ISSO seria inútil, por enquanto, já que esqueceriam e serviria apenas para provocar desinteresse. Não, eu preferi atacar o coração da teoria e expor seu funcionamento, suas conclusões amplas, o efeito de se pensar por elas, o que nelas afetaria nossa forma de pensar todos os textos de agora em diante, ou seja, o nível de discussão por que espero, um nível que eles perderam a permissão de puxar para baixo por preguiça intelectual (de aluno).

Houve desinteresse de alguns, claro, mas nenhum aluno deixou de acompanhar o raciocínio, exposto ao longo dos primeiros cinquenta minutos (como condensar tanta matéria teórica sem uma aula expositiva?). Resistiam, mas acabavam se incomodando com minhas perguntas capciosas, o que sempre é bom sinal. É mais do que posso dizer de minha turma de faculdade, naquela cadeira. Nenhum de meus alunos ontem se negou a entender a explanação, nenhum se fechou num mundinho paralelo ou estudando outra matéria. Mesmo resistindo, os mais contrários a Português ouviram, ainda que disfarçadamente, e mais cedo ou mais tarde participavam, respondiam, arriscavam.

Enfim, de onde veio essa ideia de dar uma aula de faculdade para adultos sem fundamental? De um cacoete: eu não consigo falar muito tempo sobre conteúdos rebaixados. Eu na verdade não acho que nenhuma discussão séria sobre linguagem pode ser simples, porque o fenômeno todo é bizarro demais, nem que seja em sua problemática filosófica. Por outro lado, não acredito que nenhuma discussão sobre linguagem esteja além da capacidade racional de qualquer ser humano minimamente inteligente, e sou daqueles professores que acaba sempre achando que meus alunos são inteligentes, mesmo que eu não tenha descoberto ainda como atiçá-los. Afinal, por um lado, o grosso da matéria tem lógica e parte, em muitos pontos, de coisas que fazemos "instintivamente". Se algo não entra na cabeça do aluno, a gente sempre pode encontrar uma outra explicação simples para o fenômeno, ou algo que o satisfaz enquanto preparamos seu raciocínio. Por outro lado, se a matéria está entediante de tão simples, existem sempre uma série de fenômenos bizarros associados àquilo e uma penca de assuntos para problematização crítica de tudo que fazemos com a língua no dia-a-dia. Se tudo só nos é consciente pela linguagem, numa aula de Português, o Cosmos é o limite.

Não bastasse tudo isso, o trabalho com a língua tem importância extrema para o futuro dos alunos; como aceitar o embrutecimento da matéria tal como nos pedem? Os livros dados para meus alunos são emburrecentes. Às vezes é mais grave do que aquilo que vemos nas cadeiras de didática. Eu posso me moldar às necessidades da prova, um pouco. Posso até dar uma aula mais light quando os matei na semana anterior. Mas acabo sempre sendo jogado (por mim mesmo) de volta para o único nível de discussão que me interessa: o viajante, o especulativo, o estranho (que causa estranhamento, portanto curiosidade, investigação). Como é isso que me interessa, eu obviamente acho ultra-importante para os alunos, acho fundamental, acho até básico: "se não percebem tal coisa, como vão interpretar um texto, qualquer texto?!"

Enfim, só adianta viajar tanto, querer tanto, se os alunos estão à altura. E sempre descubro que eles estão. Às vezes vão choramingando e esperneando o tempo todo, às vezes resistem o que podem, apenas para chegarem do outro lado tendo resultados por que nunca esperavam. Então vem a cara de tacho, o "Ah, pois é", mas é inegável, eles são inteligentes, ainda que ninguém, nem eles, suspeitem.

Um comentário:

Carla M. disse...

No fundo, meu bem, tu não é tão descrente quanto quer crer...