quinta-feira, 10 de maio de 2012

O barateamento da igualdade

Não basta vestir a camiseta do momento para se ter razão.

Ouvi hoje numa minidiscussão sobre sexualidade que "tudo é invenção". Infelizmente, a discussão era mini não porque envolvia poucas pessoas, mas porque tinha pouco tempo para se desenvolver e morrer. O grupo era de mais de 30 pessoas.

Nada de produtivo e inovador, portanto, resultou dali, claro. No entanto, devo admitir que estou cansado demais desse tipo de comentário, então pretendo retomar, no momento certo, com o grupinho que trouxe à baila o senso comum politicamente correto de hoje: de que todos somos iguais e a cultura sozinha nos diferencia, sem base alguma a não ser preconceitos politicamente malvados e conscientemente desenvolvidos por uma máquina ideológica de dominação masculina.

O problema desse raciocínio é que ele postula a natureza num vazio, ou seja, para suprimi-la imediatamente da realidade. A "natureza" serve aqui, sem ser mencionada diretamente, de base para fornecer o ser que será distorcido pela cultura, mas não pode ser retomada como conceito porque negaria que "tudo é invenção". Afinal, se há uma natureza anterior à cultura, ela não foi inventada. Ainda que pudesse ser retomada somente pela cultura, teria voz (eco) dentro dessa própria cultura, à revelia do poder que quiséssemos conferir a esta. 

A única forma de sermos iguais e, ao mesmo tempo, "distorcidos" pela cultura (por exemplo, transformados em "homens" e "mulheres") é que houvesse um estado anterior à cultura, uma situação-base em que a mesma igualdade pudesse existir. Ou ainda, teríamos de postular que um estado futuro de pura igualdade já existe, e retrospectivamente avançamos, pois estamos nos "desenvolvendo" (o que em si é duvidoso) em direção a essa igualdade adiante de nós no tempo, mas já estabelecida ontologicamente.

Ou seja, "tudo ser invenção" é uma impossibilidade para seres históricos - aqueles que vivem no tempo, como nós, não fora dele, como as... leis matemáticas?

É ÓBVIO que ser "homem", "mulher", "gay", "travesti"... só é possível em sociedade. Portanto, ser qualquer um deles depende dessa mesma sociedade. Só se entra em qualquer uma dessas categorias, pelo menos da forma que interessa, como um papel social. Dizer que um papel social varia conforme a sociedade é uma tautologia.

Essa tautologia é importante para se discutir certas naturalizações obtusas, como se acreditar que um "homem" o é porque deseja transar com mulheres - se não deseja mulheres nem tem útero, não pode ser homem ou mulher e, portanto, "não existe". No entanto, superada essa fase de negação dos fatos que estão por todos os lados, a "desnaturalização" tem de ir baixando a marcha, ou a inércia desse movimento leva ao extremo oposto e se cria essa natureza mágica que nos pariu iguais e, ao mesmo tempo, não existe, pois nada pode ser natural. 

Por outro lado ainda, se assumimos que "tudo é invenção", devemos concluir, por exemplo, que um homem (aqui referido biologicamente como um ser humano com pênis, testículos, organização característica de músculos e gordura, incapaz de engravidar...) pode, algum dia, se descobrir uma lésbica. Se essa afirmação é impossível, alguma natureza há. Se esse raciocínio parece muito literal, "tudo é invenção" também precisa ser retomado com a mesma crítica. Se homens e mulheres (de novo, em relação a estrutura biológica) não têm diferenças naturais, não pode haver bactérias que atacam só seres humanos com vagina, não pode haver diferenças de hormônios nos seres humanos que têm útero em comparação com os que têm testículos... e não pode haver estranhamento (científico) quando as variações características de uns se apresentam nos outros. Supor que tais diferenças biológicas não provocam pelo menos tendências psicológicas ou sociais também é tapar o sol com a peneira, tanto quanto se dizer que "homens" SÓ podem querer transar com "mulheres".

Se a natureza existe, mas não pode ser recuperada fora de uma cultura (pois não acessamos nada do mundo de forma conceitual e racional sem refratá-la por nossa... cultura!), então a relação entre natureza e cultura deve ser dialeticamente considerada, mas não negada plenamente. A natureza não pode ser esquecida só porque é difícil, só porque ela não aparece sem a camisa da cultura em que se está discutindo, só porque não pode surgir em nenhuma conversa livre de ideologias.

Debater sexualidade, um assunto centralmente constitutivo da identidade de cada um de nós, é difícil, porque complexo. Isso não é desculpa para se escapar por caminhos fáceis, absolutistas, simplistas e redutores só porque a frase de efeito ou a palavra de ordem é "bonita" ou dá uma visão do mundo como queremos que ele seja. Não é porque um chavão nos tranquiliza que ele é verdade. Palavras de ordem cabem em passeatas, e olhe lá. Não numa discussão racional.

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