terça-feira, 11 de outubro de 2011

Sociedade, a eterna malvada

Acho que vou criar o Greenpeace... desde que eu não vá à escola, não tenha amigos e não escute o que meus pais me disserem, claro!

'Para o professor de sociologia Fábio Medeiros, a ignorância é a raiz do preconceito: “O ser humano não nasce preconceituoso. Ele desenvolve isso no hábito cultural. O conhecimento dá a possibilidade de superação desse preconceito e dessa discriminação' (De notícia no G1).

Por quê? Se o ser humano não nasce preconceituoso e a ignorância é a raiz do preconceito, isso quer dizer que o ser humano não nasce ignorante, mas se torna assim ao longo do início da vida? A cultura em que é inserido nos primeiros anos de vida vai o tornando mais ignorante, destruindo um ser igualitário que nasceu pronto para orgulhar os movimentos sociais e as ONGs que lutam por minorias? E, se o conhecimento dá a possibilidade de superação do preconceito, então esse conhecimento não conta como cultura?

Talvez o professor tenha sido mal citado. Com certeza não descarto a possibilidade, mas, infelizmente, talvez não tenha sido. De qualquer forma, a opinião dele, ou do jornalista que, por cacoete, transformou o que ouviu, representa uma opinião extremamente bem representada entre ativistas, interessados ou profissionais de movimentos contra preconceitos, uma opinião que eu acho bem difícil de engolir.

O problema dessa tese é reforçar o lado errado da ignorância, digamos. É claro que muito preconceito nasce daquilo que não se sabe sobre outra pessoa ou grupo. No entanto, isso não quer dizer, como geralmente se conclui automaticamente, que o preconceito é sem sentido e inútil. O preconceito é o produto de um esquema absolutamente útil, até fundamental para a nossa boa vida cotidiana. O esquema é: a pouca informação que tenho, relativa, sobre o mundo precisa me servir de base para sobreviver a cada novidade que a vida joga na minha frente. 

Eu não posso conhecer todas as pessoas, todos os materiais, todos os fenômenos da natureza, então aqueles que encontro me servem de base para os outros que venham pela frente, até que eu tenha fortes motivos para diferenciá-los. Rapidamente, graças aos deuses, nossa mente começa a agrupar os fenômenos, processos e seres. Ora bolas, se centenas de milhares de anos de adaptação nos serviram para alguma coisa, tanto esse processo quanto seu sucedâneo (fazer isso em relação a grupos de seres, humanos ou não) foram tão úteis quanto fixados, ao que tudo indica. 

Para dar um exemplo simplório, se alguém associa pobreza e roubo e onde o sujeito vive a maioria da população negra é mais pobre, uma associação que ligue cor de pele e roubos é algo que facilmente surgirá de forma espontânea. A valorização do que se tem, claro, alimenta a associação, mas quantos seres humanos não valorizam aquilo que possuem?

Caso a associação seja feita, será necessária uma experiência marcante ou uma ação cultural que lhe demonstre a falibilidade desse raciocínio (a menos que o coitado tenha tendências a elocubrações lógicas, isso sim um traço raro), mas o sujeito está associando ideias como nos é natural para evitar riscos ao seu bem-estar. A "inocência" do sujeito está agindo aqui justamente para construir um preconceito. Não é da nossa natureza supor que estamos errados sobre o que nos parece fundado em experiência, especialmente porque não paramos para pensar a fim de criar um preconceito, ele nasce de um tipo de raciocínio como que instintivo. 

Discriminar nos é fundamental. Discriminamos amigos de inimigos, familiares de estranhos, homens de mulheres, crianças de adultos... Isso é dizer apenas que cada um desses grupos têm características diferentes naquilo que nos interessa de cada um deles. O problema é que a nossa discriminação pode estar errada e, mais do que isso, pode se manifestar de forma violenta no mundo, violência esta que passamos (pelo menos parte da sociedade) a discriminar como errada e nociva.

Claro que a tendência de um preconceito desses se desenvolver torna-se particularmente visível quando a comunidade em que vivemos compartilha e reforça esses preconceitos. A enorme importância que os grupos de parceiros representam no nosso desenvolvimento torna-nos até seres predispostos a nos apropriarmos de novos que nos sejam úteis socialmente. Discriminamos para passar bem, nesses casos. Como o status é importantíssimo para nós, em particular na proporção inversa à nossa maturação, todo pária do grupo e todo grupo oposto ao nosso serão desmerecidos em diversos sentidos, e participar disso, manifestando às vezes até ódio e afronta física ao outro grupo, são barcos em que a maioria entra com a maior boa vontade e na mais estúpida ingenuidade, muitas vezes.

Talvez o professor de sociologia considere que isso justifica a afirmação de que o preconceito é social, no entanto o fato de essa valorização social ser da nossa natureza me parece indicar o contrário: é um impulso em cada indivíduo (de sobrevivência física e social) que motiva cada um a ser preconceituoso, de alguma forma. Trata-se de um processo espontâneo individualmente: criamos preconceitos por um cacoete de sobrevivência, seja para sobreviver ao mundo ou diretamente no grupo de que tentamos fazer parte. Tanto que algumas pessoas resistem a isso e outras ainda conseguem se questionar e voltar atrás, enquanto outras seguem seu desenvolvimento tranquilíssimas com seus preconceitos. Por que a "sociedade" capturou uns e não outros? Por que ela variou o esforço ou por que cada membro do grupo é um indivíduo, com suas ideias, tendências e valores?

Colocar a culpa na cultura, como "sociedade", uma força estranhamente exterior, parece criar uma barreira entre sujeitos inocentes que nascem para o bem e uma herança social malévola que nasceu de pessoas que não puderam ler os mesmos livros que nós, ou que "não sabiam o que sabemos hoje". O que, diga-se de passagem, me parece uma postura preconceituosa.

Não basta que a postura anti-sociedade e a postura mais hobbesiana que estou pondo concordem que o preconceito é ruim e precisa ser combatido, porque são combates postos de forma diferente, implicando táticas diferentes e só tendo esperança de dar certo aquela que estiver correta. Se eu acho que os sujeitos no fundo são puros e dispostos a conhecer cada ser humano como um único e especial floquinho de neve, sujos por uma sociedade que lhes ensinou a discriminar, tanto a minha política de combate ao preconceito não será eficiente quanto eu serei confrontado por afirmações honestíssimas de preconceitos daquelas pessoas mesmas que achava vir salvar, e a insistência delas me parecerá apenas o impressionante poder da "sociedade" para fazer lavagem cerebral. Eu vou investir de novo, mas o ataque seguirá sem efeito, por eu estar supondo que o preconceito que ataco não tenha raízes na mente mesmo daquele que o expressa, ser este capaz de, aprendendo a não falar mal de homossexuais, repetir o processo de discriminação contra mulheres ou quem mais lhe for útil, daí a alguns dias.

Não entendo como se pode trabalhar com seres humanos e supor que o mal de nossas personalidades venham sempre da sociedade. Se nascemos para viver, e a vida é toda a violência que bem se pode ver, como supor que nascemos puros? Ou, se puros, como passamos do paleolítico?

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