quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Se a Dilma é linha-dura, aí isso virou elogio?

A matéria é uma porcaria e merecia maior deboche, mas estou sem tempo, então fica aqui apenas o registro. Já me criticaram por não xingar a Carta Capital no blog, como se isso simbolizasse minha aceitação ou anuência direta ao PT. Não fiz o Retórico para xingar a imprensa nem para vigiar ou apoiar partidos, mas a pessoa pode ficar satisfeita nesse sentido: uma matéria da revista foi a pior coisa que li ou ouvi hoje.

A Carta Capital publicou nessa semana a pior coisa que já li nas páginas dela (ok, não a leio tanto assim). Trata-se de uma matéria de elogio prévio (o único aparentemente possível na política) à postura que supostamente Dilma adotará na questão dos arquivos da ditadura. 

A manchete da parte superior da capa é "A presidenta: firme na criação da Comissão da Verdade". (Nota paralela: a parte boa dessa coisa de "presidente ou presidenta" é que há uma sinalização muito didática agora para sabermos quem apoia a Dilma irrestritamente e quem se coloca de soslaio crítico.) Bom, a manchete em si põe em dúvida novamente esse título ridículo de "Verdade", porque a mesma presidente não pareceu se preocupar muito quando, por exemplo, os arquivos já sendo estudados no "Memórias Reveladas" foram vetados durante as eleições a todo e qualquer cidadão, independente do objeto de pesquisa, porque alguns jornalistas estavam "usando indevidamente" as informações da ditadura militar. Os pedidos de demissão em protesto de quem liderava esses estudos, como Carlos Fico e Jessie Jane, de nada valeram, aparentemente. Detalhe: o "Memórias Reveladas" tinha sido criado pela Dilma! Seu filhinho não merecia cuidado, moralidade ou livre-acesso se contrariava seu partido durante as eleições.

Era ridículo questionar a presidente sem a mínima consideração por os arquivos terem sido escritos e criados por um Estado que a prendeu e torturou, além de ter sido derrubado para o sistema de governo que seguimos e supostamente defendemos agora, mas a solução para esse problema de ultrassimplificação é a censura? E agora ela vai ser "linha-dura" para revelar a "verdade"?! Pelo menos é o que diz o subtítulo da matéria. A que se deveria responder que ser "linha-dura" não é positivo só porque se é presidente, ex-guerrilheira ou heroína de jornalista da Carta Capital. 

A matéria tem como mote a contratação de José Genoino por Nelson Jobim e a invalidação da lei da Anistia por instituições de direito internacional, a que a Carta dedica segunda matéria logo em seguida. Em nenhuma delas se entra no mérito de um contra-argumento que defende que as leis internacionais que revoguem as nossas ainda precisam de aceitação pontual em Brasília. Conforme as matérias, se o direito internacional das instituições ligadas à promoção dos direitos humanos não aceita uma de nossas leis, ela simplesmente cai por terra. Se é verdade ou não, não sei, mas seria interessante se a jornalista não suprimisse um contra-argumento tão relevante como o acima, mesmo que fosse para revelá-lo falso. 

Agora, a questão, como disse, é a contratação de Genoino, mais precisamente validar essa contratação. A matéria desenvolve longamente toda a experiência e fantástica eficiência do sujeito, tudo nos corredores e no dia-a-dia do poder, a que não temos acesso e não ficamos sabendo como a jornalista teve. Se andava há anos preparando essa matéria e convivendo diariamente com o mestre Genoino. Digo mestre porque, conforme a matéria, ele é o cérebro do Jobim quando o assunto é militar. Nossa, vejam que lindo trecho:

"Genoino sempre se destacou nas comissões ligadas ao tema da Defesa no Congresso, e deu 'aulas' a Jobim, que, apesar das críticas da direita à esquerda, acabou se tornando o único dos quatro ministros indicados para a pasta a sobreviver no governo Lula." Ou seja, a habilidade de Jobim é sobreviver na politicagem (e isso seria grande valor - não vão querer dizer que é a competência que mantém alguém em alto posto político). O mestre Genoino vem agora resolver esse problema da Anistia com sua capacidade atestada por quem está lá, por quem entende, não por nós, que estamos completamente por fora do miúdo da política e não podemos analisar o figuraça. 

Como a matéria toda é feita por elogiar ou difamar figuras (Genoino é o conhecimento e a experiência, a habilidade de agilizar, Jobim é o aluno humilde que soube contratar alguém controverso e "surpreendente" para ajudá-lo, Dilma é a mulher de coragem que virou o feitiço "linha-dura" contra o feiticeiro), a crítica do general da reserva Paulo Chagas é descartada como uma provocação. Agora vejam se algum pedaço desse questionamento não merecia uma resposta de verdade (que Genoino não deu): levantando questões sobre a contratação de Genoino, Chagas considerou "a mais preocupante delas (...) a de que 'se pretenda desmoralizar definitivamente os militares', subordinando-os 'a um ex-guerrilheiro, derrotado na luta armada, mensaleiro, rejeitado nas urnas e, por via de consequência, desempregado."

Eu acho esse papo de desmoralizar os militares bobagem, ou a gente joga o código penal fora. Mas o resto não bate? Genoino não é tudo isso (ok, ser derrotado em luta armada não desmerece ninguém, pra mim)? E a revogação da Lei da Anistia não é complicada com dois ex-guerrilheiros (a presidente e o "assessor civil" do ministro da Defesa) levando o carro adiante, sendo ambos de um partido que decide quem pode ler o que e quando nos arquivos, mesmo em projeto criado por eles próprios para "revelar o passado"? 

Eu não acho problema Dilma ter sido guerrilheira e ser presidente, só que, do jeito que o contexto está se armando, fica difícil acreditar na Maria do Rosário dizendo, conforme citação da mesma matéria, que a Comissão da Verdade não quer revanche, mas reconhecer a responsabilidade do Estado com as vítimas. Louvável, mas isso é só parte da história. "Infelizmente", a Anistia tinha dois gumes. Além disso, não é só no passado que o problema dos Direitos Humanos pode incomodar a presidente, já que Dilma mantém o apoio a Cuba e Irã. Conforme fonte do Itamaraty à Carta Capital, o jogo de difamação para não responder  a críticas segue aí também: "Dirá que apedrejar pessoas de fato é ir contra os direitos humanos, mas que a pena de morte é igualmente condenável e é aplicada, por exemplo, nos Estados Unidos".

"Igualmente condenável"? Não sei não. Ainda que fosse, a moral da Comissão da Verdade será assim relativa, escusando erros próprios pelos erros dos outros? Como que para contrabalançar a falha desse "argumento", o parágrafo seguinte da matéria fala sobre a insatisfação do Irã com certas afirmações de Dilma contra o tratamento que as mulheres muitas vezes recebem por lá. É, mas ela, como todos do PT, têm uma moral para si e outra para vida pública, não? Qual delas pesa mais na hora de buscar a "verdade"?

Um comentário:

Clark disse...

Não vou falar sobre a objetivo progressista de substituir os sistemas políticos representativos locais por uma autoridade global não-eleita...

Não vou falar sobre a tentativa de igualar apedrejamento de opositores políticos, homossexuais e mulheres a execuções de assassinos sem série...

Não vou falar sobre o “exemplo” de um grande ministro da Defesa que já se fantasiou de general em ato público, algo proibido por lei...

Não vou falar sobre uma comissão da “verdade” que quer julgar uma rivalidade colocando um dos rivais no comando...

Não vou falar da tara do PT por colocar mensaleiros no poder...

Só vou dizer isso: o que o presidentO Lula pensa de tudo isso?