quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O analfabetismo funcional nosso de cada dia

Comentário prévio: este post está errado e incompleto, como tudo que escrevo neste blog, mas resolvi pensar escrevendo por não poder trocar ideias ao vivo e de forma casual no momento. Quem encontrar críticas lógicas, teóricas ou de corpus ao que eu escrever abaixo está convidado a comentar (numa boa).

Considero que, por lógica, a crença que separa coisas no mundo em "forma" e "conteúdo" leva apenas a paradoxos, mas acho que essa diferença é uma boa metáfora para uma série de coisas, e sei que é assim que se percebe o mundo cotidianamente. Não estou dizendo que o clássico "forma é conteúdo" seja a verdade, a não ser num sentido bastante restrito e também metafórico. Mas o fato de nem tudo de nosso "eu" ser fisicamente experimentado ou coincidir com nosso corpo leva a concordarmos, por exemplo, que exista um "dentro" de nós, portanto também um continente nosso dessa coisa que fica dentro, continente que também somos. Por analogia, se um texto tem um aspecto visível e experimentamos algo que, intuitivamente, dá-nos a impressão de ser invisível, pensamos que o texto também tem algo dentro e algo que contém esse dentro, conteúdo e forma. Pouco nos preocupa então a complicação em que se entra se pensamos na água e tentamos dizer o que nela é forma e o que conteúdo (sem apelar para um recipiente outro), ou a dificuldade de separar a sério um texto entre dentro e fora. E tudo isso está bom, porque metáfora, metonímia, catacrese e elipse são bases bem mais constantes de nosso comportamento que lógica, silogismo, verdade e dialética.

Pois bem, dada a dificuldade das pessoas de perceberem sutilezas retóricas, sejam em quais linguagens quisermos, temos a tendência, novamente intuitiva, de dizer que qualquer um pode chegar no conteúdo, mas é a atenção e o cuidado com a forma que representa uma capacidade mais refinada de leitura (ou interpretação). Muita gente consegue entender que um poema fale sobre amor, mas poucos observarão que a rima interna e a cadência das sílabas reforçam a melancolia de tais versos. Os segundos recebem muito mais aplausos e servem de comprovação para a ideia de que a forma é para poucos, o conteúdo é para todo Zé Mané. No entanto, todos os sujeitos considerados acima tiveram algums reações à "forma" ANTES de chegarem no "conteúdo": reconhecer um poema como poema faz com que o interpretemos de determinada forma, pois nos predispomos a receber o "conteúdo" com certa postura. Por que essa reação formal inicial é ignorada? Será que suas consequências são tão insignificantes mesmo? 

Saiamos do desconsiderado mundo das Letras e vamos para o falsamente valorizado mundo da educação. Se alunos do fundamental assistem a quatro aulas expositivas seguidas, com regras de comportamento relativamente semelhantes em todas elas, parecem experimentar que todas foram iguais, ainda que cada uma tenha sido ministrada por um professor diferente e que elas tenho sido a respeito de História, Física, Português e Artes. Não é força de expressão nem metáfora involuntária, nesse caso: eles (ou os piores "leitores" ali) dizem que literalmente estão fazendo a mesma coisa desde o primeiro período. Estou considerando que não é só o gosto por certos jogos que faz com que os mesmos alunos não esperem de Educação Física nenhum conteúdo ou avaliação. Sua forma é diferente demais para que ela possa ter conteúdo de mesma natureza. Infelizmente não posso testar, mas adoraria dar aulas com o formato mais parecido possível em duas turmas, apenas falando de gramática em uma e de interpretação e produção de texto na outra. Duvido mais e mais que as reações nas duas fossem muito diferentes. 

Enfim, isso tudo era meu feeling, até que vi uma propaganda da Marina colada numa lata de lixo, um adesivo que sobreviveu à eleição. Achei uma boa associação (o lixo tinha a mensagem de reciclagem), mas lembrei-me imediatamente do exagero retórico que a política sempre envolve. Todo político faz bobagens. Seus opositores, em vez de aproveitarem isso para opor uma visão coerente, sensata e atraente, exageram no tom e levam sua crítica ao extremo, perdendo a razão. No caso da "bolinha de papel" acertada no Serra, por exemplo, temos a tomografia de um lado e o discurso ridicularizante do Lula de outro, ambos exageros desnecessários  logicamente falhos, que só fizeram sentido para quem já ia votar em cada lado mesmo. Importava o que PSDB ou PT diziam a respeito? Não. O que importava era que a ação do PSDB era uma crítica ao PT, e vice-versa, e isso se percebia formalmente, ou seja, não era uma interpretação séria ou cuidada do que era dito, era uma aproximação que se fazia só de se "bater o olho no texto". 

A oposição (seja de quem for) falou algo errado? "Mentira"! Mesmo que não se esteja discutindo a verdade do que foi dito, mas a interpretação que se dá a alguma coisa. Por exemplo, digamos que prédios públicos não possam ser usados em campanha. Se alguém critica que os outros façam isso, quem critica não está "mentindo". Por outro lado, se a questão é discutível, se existir previsão legal para determinada conduta que supere a proibição genérica, então nenhum lado está "mentindo". Podem é todos estarem errados, pois ambos os lados referem apenas metade da questão, mas nenhum está dizendo algo que não seja verdade, tecnicamente. Dizer que a gravidade atrai tudo para a Terra não é falso só porque um balão de hélio sobe. Mas a subida do balão também não "desmente" a afirmação de que existe gravidade. O conflito é outro, que fica esquecido porque é mais importante brigar que discutir.

Ainda assim, "mentira", "ladrão", "capitalista", "burguês", "totalitário", "racista", "machista", "brega", "guerrilheira", "terrorista", "playboy", "corrupto", "ignorante" são termos que salvam muito tempo de vida no Brasil, pois qualquer um, numa olhada, sabe se o texto (ou discurso) é contra ou a favor daquilo de que a pessoa gosta. O cidadão pode imediatamente reagir, apoiar e exagerar o ponto de vista superficialmente reconhecido (geralmente levando-o ao absurdo e perdendo totalmente a razão) sem ter de ler e pensar a respeito. Sem precisar conhecer conteúdo nenhum, muitas vezes. Tanto que as palavras mais gastas são tão imediatamente associadas a certas ideias que levam, por exemplo, pessoas a interpretar o contrário do que está escrito. Acha-se que um texto é anti-machista, sendo ele exatamente o contrário, apenas por ser escrito por uma mulher e por falar sobre as clássicas reclamações femininas.

Prejulgar é instintivo em nós. E a aparência, na língua, também é a chamada "forma". Quantas pessoas realmente conseguem superar a forma para pensar sobre o conteúdo, para entender o conteúdo que for? Nem pensemos tanto em quantas dão a volta final e retornam à forma para interpretá-la à luz do conteúdo. Menos do que parecem chegam mesmo ao "conteúdo", e isso é um problema mais premente.

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