quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O Estado não mata quem?

Talvez existam linhas que defendam que não é característico do Estado, tal como o conhecemos na Europa e nos países colonizados por ela, implantar o monopólio da violência. Por exemplo, é proibido no Brasil, seja lá por que termos queiram, matar outra pessoa. Existe o caso da legítima defesa, mas ela existe como exceção bem estabelecida, em parte porque nossa sociedade não despreza o assassinato tanto quanto professa, então fazer uma lei que proíba 100% dos assassinatos seria romantismo demais até para a demagogia política. De qualquer forma, mesmo com essa exceção aberta, particularmente útil para defender aquelas pessoas que juízes não vão querer colocar atrás das grades, a posição default do Estado é a de que tirar a vida é crime. Ainda assim, todos conhecemos duas instituições, classicamente chamadas de polícia e exército, que andam para cima e para baixo com armas e que são treinadas em diversos tipos de violência. Parece-me então que, se alguma teoria nega que o governo queira o direito da violência só para si, deve ter uns argumentos bem interessantes e inusitados.

Ok. Agora, essa gente armada está preparada e treinada para defender o cidadão. Defender o cidadão de quem? Inevitavelmente, de outros cidadãos (o exército pode se preocupar com estrangeiros muitas vezes, mas parece-me que esse problema é muito raro no Brasil, a não ser, talvez, na Amazônia, ou no Pantanal, por questões que não vêm ao caso agora). E armas servem para quê? Dar beliscão? Ou matar? Um tiro na perna não mata? Às vezes sim. E quando o policial acerta na perna? Quando o militar não atira para matar? Quantas vezes consegue fazer esse belo tiro? Imagino que as pessoas ainda lembrem daquele franco-atirador que foi louvado em mil noticiários há alguns meses porque deu um tiro certeiro no crânio de um cara que segurava uma mulher refém com a arma grudada no pescoço da moça. Nesse caso, o tiro "perfeito" foi matar o criminoso sem que este matasse a refém por reflexo resultante do tiro.

Por questões históricas, não é coincidência que a antiga posição política da Igreja, na Europa, sirva de analogia para explicar como nosso Estado se posiciona em relação à violência. O "não matarás" foi argumentado em segmentos na Igreja, particularmente os que defendiam as Cruzadas, exatamente como domínio e direcionamento da violência. Se é para matar, é preciso que se ataque aqueles a quem a Igreja também quer mortos ou derrotados. Matar estes, aliás, até mesmo salva a alma. O Estado não quer que ninguém que paga seus impostos seja morto, a menos que o sujeito esteja atrapalhando o próprio Estado, e, nesse caso, o assassino ganha até uma medalha (a alma talvez valesse mais, mas lembremos que nosso Estado flerta com a ideia de ser laico).

Daí que, ok, o aborto levanta mil questões éticas, mas “Nunca poderemos dar ao estado o poder de matar!" não é uma delas. Tê-lo é fundamental ao próprio conceito de Estado que exercitamos todo dia. E, não em teoria, na prática, a maioria dos cidadãos concordam com esse conceito, em sua fala e/ou em seus atos. Muitos, aliás, desejam-no ainda mais violento. Para seguir a crítica de Luiz Bassuma, seria preciso parar o mundo neste segundo e fazer a revolução política mais radical da História.


...


Olha só. A revolução não aconteceu... O Estado segue tendo o poder de matar e desejando mantê-lo. Por exemplo, hoje em dia, quem monopoliza o poder de decidir quem pode ou não matar seu feto é o Estado. O argumento de Luiz, propenso a um curto-circuito retórico ao tocar na realidade, serve contra ele próprio.

4 comentários:

Leo disse...

nem li o post ainda, mas já captei do que se trata. e antes de ler te lanço a seguinte pergunta: o estado deve fornecer o aborto para qualquer mulher, em qualquer circunstância, custeado com dinheiro público?

ou uma pseudo-versão um pouco mais rasteira dessa mesma pergunta: o estado distribui anticoncepcionais e camisinhas nos postos de saúde. agentes de saúde ensinam como usar ambos. se mesmo assim uma mulher engravidar e decidir que por quaisquer motivos pessoais, financeiros ou o que quer que seja, não quer ter o filho, é o estado quem tem que pagar, mesmo fornecendo os meios pra que a gravidez nem acontecesse pra começo de conversa?

ou a versão curta e grossa dessa mesma questão: me diga sinceramente se, funcionando as coisas da forma como funcionam no nosso país, aborto não apenas vai virar método anticoncepcional, como também vai virar o método mais procurado.

aborto é questão de consciência pessoal. eu concordo plenamente com a descriminalização do aborto, acho que toda mulher deve ser livre pra escolher. desde que pague pelo seu.

Leo disse...

e, né, vamos combinar que dar um tiro num bandido e matar um feto tão bem longe de ser a mesma coisa.

Clark disse...

Esse começo de 2º turno me deixou ocupado e só hoje eu vim ler este texto (e nem li o “Do aborto” ainda).

Bem, de um modo geral, creio que haja uma diferença entre o conceito de monopólio da violência por parte do estado e o direito de matar.

O monopólio da violência diz respeito atá a casos simples, como quando o estado algema um suspeito e o leva para uma delegacia contra a sua vontade...

As situações em que se reconhece um suposto direito de o estado matar, em boa parte se assemelham ao próprio suposto direito de (auto-)defesa.

Não se considera (mais?) que seja legítimo quando um estado ataca outro estado com o qual não se está em guerra declarada. Não é por ser “estado” em si que se tem o direito de matar cidadãos de outros estados, mas o fato de que se está em conflito declarado, que cria mais uma situação de necessidade do que de direito.

Tanto que, tirando certos pacifistas (na maioria adeptos de um pacifismo seletivo rs), os questionamentos nesse caso são sobre a legitimidade do conflito, o que pressupõe que, se houvesse legitimidade, as mortes seriam “compreensíveis”.

Pode parecer frio dizer isso, mas é justamente o que está em jogo quando se considera se o estado dos Estados Unidos tem o direito de entrar em guerra contra o Iraque ou o proto-estado palestino tem o direito de guerrar contra Israel.

Note-se que, nessa perspectiva, o suposto direito de matar (necessidade?) não é algo específico do estado, mas de qualquer grupo social. Consideramos legítima a violência de grupos revolucionários como os que lutaram na independência dos países americanos, e nenhum desses grupos era formalmente um estado.

No próprio exemplo do policial que atira num homem que mantém uma mulher refém, trata-se de uma ação de defesa.

A questão é: e em casos em que não se está mais em um conflito? O estado tem o direito de matar um prisioneiro? De matar um bandido em custódia? Parece-me haver uma diferença nítida e, nesse caso, o direito de matar do estado não se aplica justamente porque direito não o é. Se o fosse, ele poderia aplicar segundo sua vontade.

Quanto a Bassuma, se ele é contra tanto aborto estatal quanto pena de morte (como eu), eu não concordo que haja uma contradição. Creio que a contradição de que você valeria mais para grupos de direita (ou simplesmente o povão apolítico) que defende a pena de morte para crimes graves, mas depois é contra o aborto “em defesa da vida” — pressupondo mesmo que eles usem o discurso que estado não tenha “direito de matar”.

Mesmo nesse caso, esses grupos ainda poderiam fazer uma manobra retórica dizendo que, ao conscientemente infligir leis que têm como punição a morte, são os criminosos que estão “abrindo mão” [são 23 h, não vou buscar uma expressão melho rs] de suas vidas, algo que não podemos dizer de bebês, que não fizeram nada de mal a ninguém. Quer dizer, tirando dar alguns chutes na barriga.

Tigre disse...

Ok, mas a violência legítima continua com o problema a q me referi no post. Quem legitima? Não é o Estado? Quando falamos que algo é certo ou errado, podemos discutir com a legislação, mas o Estado tem o problema de ser auto-fundante, num certo sentido. Quem diz o que ele pode ou não fazer é ele mesmo. Claro que temos uma sub-divisão de poderes na maquinaria toda que busca se equilibrar, mas dizer que algo é certo ou errado não impede que um país faça algo, apenas faz com que argumentemos contra ele. Nossa bússola moral é uma coisa, o sistema legal é outra. Me parece que só o Estado pode conter o Estado (ou quem está encarnando certos cargos pode competir com quem está encarnando outros). Quem diz que um priosioneiro não pode ser morto, quem pesa as vidas e diz que uma vale mais que outra é quem? Mesmo para violências menores, as decisões judiciais estão anos luz daquilo que pensamos ser certo ou errado. O Estado se justifica a si mesmo, e é como se um braço dele decidisse se o que o outro faz é certo ou não. A gente pode até discordar, mas a nossa opinião só vale se temos meios de introjetá-la no próprio sistema legal, momento em que será julgada se é mesmo válida (conforme critérios previstos em leis, não na lógica).

Grupos revolucionários levam o Estado, em casos extremos, de volta à sua gestação, em que se considera de Estado de Exceção, ou quase, muito do que se fez. Mesmo que chegue a tanto, quando um Estado se reestabiliza, os grupos revolucionários só ganham, a posteriori, o direito de cometer suas violências, se anistiados. Se não, são presos, torturados e/ou executados, basta lembrar da maioria das revoltas brasileiras. A gente pode até se orgulhar depois, mas o Estado decidiu (ele que pode) que aquela violência não era legítima.

Ligado a isso, estendendo um pouco a coisa e para terminar com uma nota mais pop, acho que todo mundo tem exemplos para concordar com o Wilson a respeito da relação opinião-Leis: "Legal beats logic anyday. Just ask O. J."