sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Do aborto

Eu fiz um post sobre o comentário de Luiz Bassuma, Nunca poderemos dar ao estado o poder de matar!", em que critiquei tal expressão moralista como retoricamente vazia, porque o Estado tem o poder de matar e funciona, em grande parte, pelo domínio desse mesmo poder, em detrimento do poder dos cidadãos de matar. Ele falou isso discutindo o aborto, atual mania do horário eleitoral, então achei que o post poderia dar a impressão de que defendo a posição radical de que o SUS deveria fazer todo e qualquer aborto, desde que a mulher peça, só que eu não defendo isso. Como fui interpretado assim, ainda bem que a Leo teve coragem de não só criticar meu blog pelo monitor e virar a cara, mas efetivamente comentar no post falando contra a proposta que tramitou como proto-posição de campanha, até ser derrubada definitivamente pela que existe agora no PT: a Dilma tem as opiniões pessoais dela, mas o partido seria contra. Graças a isso, resolvi fazer este post esclarecendo umas coisinhas.

Como disse, eu estava criticando a forma como Luiz Bassuma apresentava a questão, que me parecia simplesmente irreal. Se o Estado pode matar um criminoso, um assaltante, ou quem seja, o Estado pode matar. Que esse poder não justifica diretamente que ele mate um feto, eu concordo, mas eu não estava dizendo que o Estado deveria poder matar um feto, apenas que, se pararmos para pensar na situação atual, ele tem exatamente esse poder. 

Se só um órgão do governo pode dizer quem tem o direito ao aborto, nossa situação atual, então o Estado tem o poder de matar durante a gestação, e esse poder seria do cidadão se uma nova lei liberasse aberta e indiscriminadamente o aborto, desde que feito com dinheiro público. Liberar o aborto e não bancar é o mesmo que discriminar por classe, porque a cirurgia, para ser bem feita, custa dinheiro. Não me parece que ninguém acredite que o aborto não seja prática de gente com grana (não estou nem falando dos propriamente podres de ricos) atualmente, o que significa também que liberar e não pagar com dinheiro público é mais ou menos manter as coisas como estão, apenas barateando um pouco o processo para quem já consegue pagar. 

Por outro lado, se a liberação barateasse muito, o aborto se tornaria exatamente aquilo que a Leo comentou como resultado da liberação no SUS: ele viraria "método anti-concepcional" no sentido mais cotidiano do termo. Bom, ele efetivamente funciona assim para quem pode pagar. E se o "pobre" não tem a desculpa de não ter usado camisinha, de não ter tomado pílula, ou seja lá o que for, o "rico" tem? Existe um caminho tortuoso de argumentação que pode seguir daí, mas não vou usá-lo porque acho que a questão, posta por aí, está errada. Discute-se a partir da lei atual, e a realidade, como bem disse a Heloísa Helena, é usada apenas como argumento para defender a liberação geral no SUS. Ou seja, a argumentação pula de lei para lei, usando a realidade como um dado que não poderia receber outro tipo de tratamento ou solução. Pois bem, eu gostaria que a coisa toda fosse lida de realidade para realidade, tratando a lei apenas como trâmite entre esses dois momentos. Como as coisas são e estão? Quais os reflexos sociais da nova lei, se fosse implementada em sua forma mais literal? Quantos abortos são feitos e quantos efetivamente seriam feitos?  Qual a relação entre o custo das novas operações e os gastos públicos com as mortes ou malefícios resultantes dos abortos feitos em casa por mulheres que não querem seus filhos, mas não podem pagar por uma cirurgia? Quantos casos de aborto (por estimativa) não são relatados à polícia (por todos os motivos que imaginamos e por quantos mais não podemos nem supor), e quais as consequências disso para essas mães, e para as crianças? Que políticas públicas poderiam ou deveriam mudar, caso a regra fosse alterada? Quais os problemas da atual legislação, problemas reais, práticos, que justificam sua alteração? Seria possível uma meia-alteração, sem reprisar a situação atual, como eu disse acima? 

A nova lei tem cara, para mim, de uma sublimação da vontade de tantos governantes de simplesmente trancar a reprodução na marra. Não vamos cortar o barato de todo mundo nem impor números de filhos, o que não seria condizente com a imagem do político legal, vamos deixar que eles mesmos matem quantos filhos quiserem, desde que antes do nascimento. Bom, se essa é a intenção, então vamos discuti-la, e renegar, se for o caso, isso ou suas variantes. Mas que se discutissem consequências e problemas reais. Não entrar com platonismos a respeito do valor da vida em relação ao Estado, ou meter Deus na história. Óbvio que o Ser Supremo vai entrar na conversa, mas que não se fique nisso, nem se romantize o que o Estado quer com a gente.

Para registro: por essas e outras, eu não tenho uma opinião fechada a respeito do aborto. Considero o tema absolutamente espinhoso e complicado, de modo que não acho nada tão firme nem a favor nem contra a prática, em todos os pormenores por que se desdobra. Eu não consigo nem expressar bem, acredito, exatamente quais as minhas críticas a essa questão toda de debater a liberação no SUS. Por isso, não posso defender as propostas do PT a esse respeito, mas não conheço tantos argumentos contra, já que poucos querem discutir a questão de verdade, a sério (não estou falando do teu comentário, Leo, mas, como era o caso, do Bassuma ou do programa eleitoral do Serra). Só o que interessa agora é qual opinião dá mais votos.

Nenhum comentário: