sexta-feira, 2 de março de 2012

A língua é mais forte que a espada

"What would you prefer - a doctor who holds your hand while you die or one who ignores you while you get better? I suppose it would particularly suck to have a doctor who ignores you while you die." - House

Na saudosa primeira temporada, House coloca essa questão em alto e bom tom. Para mim, trata-se da mais importante explicitação de motivo da série. Não são os malabarismos jocosos, nem as impropriedades honestas, nem a absoluta falta de ética, nem a grande resistência do médico a drogas, tiros, choques e acidentes, nem - é claro - o fato de House ser um gênio (técnico) em sua profissão aquilo que torna a série "ficcional". Ou seja, nada disso dá a essência que separa os fatos criados pela imaginação humana daqueles da vida real. A diferença entre a série House e a realidade nossa de cada dia é, pela posição de House como herói, a resposta que está implícita para aquela pergunta. 

O herói parece aos coadjuvantes ser o terceiro tipo de médico, mas fica claro a todos, como o público suspeitava ou já sabia (bem como Cuddy e Wilson), que ele é na verdade o segundo. Mais do que isso, também fica implícito na série que ele ser aquele segundo, que dá resultado, que vence, que está certo (que enfrenta tudo aliás, por estar e para estar certo no fim), é exatamente o que lhe faz propriamente o herói. 

Ou seja, o melhor médico, o melhor profissional, o maior exemplo é o sujeito que atinge aquilo a que se propõe em oposição a todos os outros que, pelo mundo afora, falam e não fazem, ou se detêm por normas sociais, tornando-se por isso mancos em sua ação, digamos; o ser humano médio está impossibilitado de agir em liberdade - em nome da verdade -, porque age constrangido por medos e imposições formais que não têm fundamento justificável na verdade última dos desafios que enfrenta. Ou, pior ainda, nem tem a capacidade de ver a verdade. O herói não só vê como desafia as normas medianas (medíocres) para vencer (agir com competência).

Nada poderia ser mais ficcional. O heroísmo do dia-a-dia é o heroísmo do discurso, particularmente do discurso pronto, de fácil assimilação e pouquíssima novidade. Uma discussão em grupo para atingir um fim (geralmente, encontrar uma solução ou um plano) é geralmente uma competição de quem casa melhor clichês mais ou menos ao alcance da memória do grupo. A habilidade de compor elementos do senso comum numa grande expressão de, obviamente, senso comum é toda a retórica necessária para uma vida feliz na Terra desde que o homo sapiens é sapiens.

Não se trata, de modo algum, de algo restrito ao pedagogês e ao militantês, exemplos que imediamente vêm à mente quando se pensa no assunto, tenho certeza. Muitas outras línguas, fundamentais para as empresas, as variedades de "medicinas não-médicas" e, claro, para a vida política vivem desse alimento, dessa hiper-valorização (tanto implícita quanto explícita) de quem apresenta conforto, nunca resultados, fatos ou verdades.

A retórica literalmente vazia não é estranha a ninguém, certamente. Conversas sobre futebol, discursos políticos, novelas e programas da tarde ou de domingo vivem exclusivamente disso. No entanto, nem só o explicitamente decepcionante vive dela na nossa espécie. Também a vida profissional e o movimento da economia extraem dessa retórica seu maior valor. Torçamos que nunca ninguém queira seguir um supermédico da TV que luta pelos fatos. O heroísmo próprio à realidade está em iludir o paciente que morre.

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