domingo, 26 de agosto de 2012

As inversões de valores invertidos

Uma daquelas expressões que chamam a minha atenção, para discordar, é "inversão de valores". Quando se diz que pessoas vivem conforme, experimentam, sofrem (ou sei lá o quê) uma inversão de valores, pressupõe-se uma de duas opções, as duas falsas.

A primeira, menos preocupante e menos representativa, creio, é a ideia de que certos valores existem por si e são constantes, que valores não mudam, nascem ou se transformam historicamente. Ou seja, existem determinados valores fixos e a única possibilidade é se acreditar neles ou em seus opostos, em anti-valores, que são corruptelas daqueles. Não existem valores diferentes, anteriores ou posteriores. 

Como disse, não acho que essa versão seja representativa pois poucas pessoas concordariam com isso posto de forma assim radical. Além disso, ao falar em "inversão de valores", as pessoas não querem ser tão filosóficas assim, ainda que a expressão seja bem pretensiosa. De qualquer forma, acho importante comentar o quanto essa ideia não faz sentido, mesmo sem apelar a pós-modernismo, pós-crítica ou qualquer outra forma filosófica de relativismo em hyperdrive.

Consideremos a ideia de que matar é errado. É preciso sempre definir, "matar quem?" É preciso defini-lo pois se sabe que matar só é errado, em cada cultura, quando se define o objeto do verbo. 

Supondo uma postura moral de facebook, muita gente acha hoje em dia que matar qualquer pessoa é errado. Bom, não é segredo que já foi bem ok matar negros, índios, gays, nazistas, comunistas, sei lá.
Sim, até aí estamos no "ok", mas já houve tempo (seguindo ainda só o tronco da cultura de quem acha que é errado matar qualquer um hoje) em que matar o estrangeiro, o cara da outra religião ou o cara da outra tribo não era só permissível, ou um crime menor. Era certo, reforçado, apoiado e, em alguns casos (como na racionalização teológica das Cruzadas), uma forma sagrada de se salvar a própria alma. Em muitas tribos, matar era parte importante da estrutura social, mesmo que não se estivesse em "guerra" - especialmente por rito de passagem ou de matrimônio. Talvez fosse melhor dizer que tais tribos viveram sempre em guerra, e o "viver em paz" é invenção um tanto civilizada (Saindo um pouco do problema do tempo, infelizmente sabemos que todas essas posturas ainda são possíveis hoje.)

Se quiserem pensar de outra forma: houve um tempo antes da Declaração dos Direitos do Homem, um tempo antes do ágape, um tempo antes do "Não matarás (hebreu fiel)". Todos os valores que conhecemos são históricos, portanto nenhum pode se vangloriar de ser eterno ou onipresente (o que é diferente de dizer que alguns não mereçam ser universalizados).

Então, não existem uns poucos valores reais e estanques, os quais vivem ou subvertem e deu. Existem valores, com um plural reforçado, e aquilo que discorda do nosso valor pode ser, sim, um valor também. A questão é que a validade do valor é relativa. ATENÇÃO: isso não quer dizer que qualquer opinião é válida, que qualquer princípio é um valor, nem que todos os valores são adequados para qualquer sociedade. Quer dizer só o que eu disse: sociedades diferentes podem discordar sobre que valores são válidos, verdadeiros ou melhores.

A segunda forma, mais comum, de se pensar a "inversão de valores" é supor que os valores em questão são os "nossos". É claro que os valores mudaram na história, mas o que interessa é o que reconhecemos como valores hoje (ignorando culturas distantes). Bom, para quem não notou, nossa sociedade não tem um bloco de valores comuns. Talvez existam outros recortes possíveis, mas eu posso atestar que separações econômicas, particularmente as que "coincidem" com separações geográficas, fomentam valores diferentes. 

É errado (porque falho) pensar que uma pessoa que vive na mesma cidade que outra herda o mesmo tronco de valores comuns. Os valores que estamos acostumados a ver como universais não têm necessariamente precedência na vida de todo o mundo, nem estão na infância de jovens que crescem e "os invertem". Esses jovens simplesmente aprenderam valores diferentes, para uma vida diferente, a partir de histórias e mitos diferentes, a fim de sobreviver da forma que seus pais ou amigos estão sobrevivendo.

Nada disso significa, também, que valores não possam coincidir entre culturas, portanto entre comunidades diferentes de uma mesma cidade. Também não significa que meios de comunicação de massa não tenham oferecido pelo menos algum contato que possibilite diálogo entre as diferentes comunidades, num movimento constante. 

No entanto, é preciso atentar para o fato de que valores diversos também podem se vestir de forma parecida. Algo parecido com uma foto da Gisele Bündchen ser vista como motivo para consumo por razões diferentes, entre mulheres de classes muito distantes. O mesmo é verdade em relação à ideia de que a família é importante, ou à de que homens devem defender suas namoradas e esposas. Cada cultura pode construir um ethos diferente partindo do mesmo clichê cultural.

Talvez possa haver inversão de valores quando falamos de uma geração para a seguinte, mas o resultado são também valores, ainda que novos. Não adianta muito pensar nos queridinhos valores nossos, que achamos serem corrompidos ou traídos por sei lá quem. Importa ver que, se estão sendo afrontados, sofrem o cerco de outros valores que têm também fortes motivos para existir, assim como os nossos.

Portanto, não adianta pressupor uma vantagem para nossa posição moral. O que importa é entender os motivos da existência dos valores que estão nos incomodando. Talvez isso nos indique que estivemos equivocados e que nossos valores na verdade não prestam tanto quanto achamos. Por outro lado, talvez nossos valores sejam corroborados pela experiência, talvez se comprovem inafiançáveis. Nesse caso, é melhor ainda entender por que outras pessoas pensam diferente de nós, caso queiramos resolver a situação, fazendo com que pensem como nós e aceitem nossa forma de entender o "certo" e o "errado".

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