Um ser humano é carinhoso, compreensivo, ético, um pouco relativista, usa o bom senso (seja lá o que isso for), gosta de crianças, especialmente dos próprios filhos, respeita as instituições legítimas e resolve os problemas das "ilegítimas", entre tantas outras qualidades. Ao menos, é o que uso do adjetivo "humano" parece indicar. Juro que esse uso tem me perseguido de uma formação profissional em janeiro aos últimos comentários em dezembro sobre o ano que vem aí. Aliás, isso é significativo: que "humano" possa querer dizer qualidades que um ano possa ter. Muita gente desejou aos quatro ventos um 2012 mais humano. Ora, o que isso quer dizer afinal?
Para muito além da incomodação universal com o termo jurídico "pessoa humana", esse adjetivo está fora do lugar em absolutamente todo contexto em que é usado! Um professor deve ser muito humano... ora, seria ele canino, equino, carvalhal? E ser humano não inclui defeitos? Um professor desrespeitoso, impaciente, arrogante, orgulhoso, vaidoso, autoritário... não é humano? Parece-me que a espécie humana indicaria, por média, antes o contrário.
E a ética? Esta eu adoro: uma ética humana! Conhecem a ética dos mosquitos? Mais ainda, a associação implítica entre "humanidade" e ética. Só humanos podem ser éticos, mas não há nada garantido que um ser humano seja ético como nós entedemos a palavra, como nós queremos que o outro se porte.
Não entendo mesmo como se pode achar ainda que o uso do bom senso ou um certo relativismo sejam características humanas, no sentido extremamente elogioso. Pessoas firmes em seus ideias, fanáticas até, não nos caracterizam muito bem?
E o que é o bom senso? Tecnicamente, é a capacidade de bem julgar de acordo com uma norma compartilhada socialmente, mas não explícita, que obedece uma lógica capaz de adequar a regra universal ao caso particular, calibrando o uso de qualquer lei. No entanto, numa comunidade bastante individualista (não estou xingando), multicultural (como tanto se quer) e aberta a comunidades de diferentes cantos do mundo, não vejo esse norma com que "pessoas com bom senso" concordem. Não vejo como bater ou não bater, punir ou não punir, aliviar uma lei ou aplicá-la sejam casos de bom senso, de julgamento pessoal de acordo com uma norma implícita e pré-estabelecida que permita que um sujeito "humanamente" julgue o que é adequado de acordo com os outros "humanos" que não estão ali presentes.
O uso da palavra "humano" assim positiva, libertária e universal me parece tanto uma falta de vocabulário e de definição ética (de modo que as pessoas não sabem nem o que querem dos outros, mas têm a sensação de lembrar de uma certa norma que todos pareciam ou deveriam obedecer há muito tempo e que de alguma forma vem sendo esquecida, ainda que pareça, em seu íntimo, que deveria ser algo essencial a todo ser humano); ou obstinação a não se ver que justamente essa essência humana carrega também todo o oposto do que se quer ver nela. Um 2012 mais humano pode muito bem ser um ano com mais bolsas quebrando, mais guerras, mais fome, mais manipulação política, mais corrupção, mais exploração, mais maldade, mais crueldade, enfim, mais destruição em todos os sentidos que se possa imaginar.
Tanto a vítima quanto o executor do atentado são humanos. Não estamos fugindo de nada alheio a nós. Ser humano pode ser um elogio, mas é simultaneamente um insulto, e não há nada pacífico em se supor qual lado pesa mais. Por isso mesmo, é quase sempre um adjetivo inútil, costumando vir acompanhado pela qualificação daquilo que a pessoa acha que é "humano" e pelo silêncio de todas as nossas características que, em desserviço geral, querem tanto esquecer debaixo do tapete.