Eu me impressionei ao esbarrar num site de gramática descritiva (perigoso procurar uma estatística da língua) em que o sujeito falava sobre os motivos da acentuação. Ao ver que estava num site "descritivo", imaginei pelo menos que poderia ter alguma informação interessante que desconhecesse. Ledo engano, o site era mais duro e ilógico do que as listas de regras tradicionalmente associadas à normativa. Mas o pior era que o sujeito sabia menos sobre o funcionamento da pontuação do que eu, que estou longe de me pensar apto a fazer um site de assunto tão amplo (Gramática Descritiva), de gigantesca bibliografia.
O problema é que o autor do site, pelo visto, entendeu ser "descritivo" no sentido puramente ideológico, ou seja, não só não ser um "gramático normativo", ser anti-normativo. Então ele se satisfez em dizer que não havia sentido para as regras, que ninguém mais comprava o chalalá que as embasara na tradição e que a coisa toda era arbitrária.
Usou a palavra, para dizer, é claro, "como um sujeito quis". Bom, é verdade que o acento não é da natureza de nenhuma língua, é uma regra criada para a escrita de algumas, como a nossa. Nesse sentido, é mesmo uma escolha arbitrária de quem cunhou o sistema. Também é algo que existe numa relação entre os elementos da língua, ou seja, algumas palavras são acentuadas, em parte, porque outras, semelhantes a elas, não são. Por exemplo, como as oxítonas terminadas em "a" são acentuadas, a paroxítonas que terminam em "a" não são (a menos que caiam em alguma das regras de exceção, como a de terminadas em ditongos).
Agora, já nessa exposição, pode-se ver que arbitrário aqui não quer dizer "de qualquer jeito", como a expressão "como um sujeito quis" dá a entender. Agora, o fulaninho cria um site, lotado de informações sobre todos os aspectos da gramática, quer-se descritivo, e não é capaz de diferenciar os sentidos em que a escrita é arbitrária ou não? Confunde "como foi determinado" com "desmando autoritário sem sentido"? Não sabe que a possibilidade de que as sinaleiras tivessem a cor laranja para "siga" e lilás para "pare" não indica que a arbitrariedade do nosso sistema queira dizer "tradição burra"?
Para esculhambar de vez com o sistema de regras, o coitado ainda afirma que os falantes de uma língua, formados como leitores, conseguem determinar por contexto onde está a tônica, mesmo no caso de acentos diferenciais. Em primeiro lugar, isso nem sempre é verdade. Até mesmo alguns acentos facultativos ganharam essa liberdade porque a princípio tais palavras não deveriam ser acentuadas, mas a mídia e as editoras às vezes usavam acentos nelas por sentirem falta de matar alguma ambiguidade (caso clássico, forma e fôrma). Com nossa tendência de não checar gramática e mentir para nós mesmos, passavam às vezes a acreditar que o acento diferencial já existia ali, o que tornava a escrita da palavra suficientemente uniformizava entre a gente que os gramáticos escutam. Enfim, estes acataram o uso - isso está acontecendo atualmente, por exemplo, com a colocação de pronomes átonos, no que gramáticos arriaram muito nos últimos poucos anos.
Além disso, a capacidade dos leitores de supor um acento diferencial não quer dizer que isso ocorra na primeira leitura, de modo que o leitor pode muito bem passar batido por uma palavra e ter de voltar quando nota que supôs errado o que estava lendo, algo que as regras gramaticais buscam justamente evitar. Aliás, a recente retirada do acento diferencial de "pára" provocou isso, indicando que a lógica deveria vencer de motivos políticos quando o assunto é gramática. Apesar desse caso, o tronco das regras de acento ainda é lógico, não político.
Por fim, a capacidade das pessoas de entender o que estão lendo sem marcas "arbitrárias" varia por dialeto. Se livre dessas retrições que "não fazem sentido, não têm justificativa a não ser uma tradição caduca", nossa escrita perde não só acentos, mas pontuações, letras finais de palavras (não apenas "s" de plural, mas "r" de infinitivo, "u" de pretérito perfeito, particularmente no caso de verbos de primeira conjugação) e tudo o mais que é "não faz sentido" para cada fulaninho que está escrevendo seu texto no seu canto.
Por fim, a capacidade das pessoas de entender o que estão lendo sem marcas "arbitrárias" varia por dialeto. Se livre dessas retrições que "não fazem sentido, não têm justificativa a não ser uma tradição caduca", nossa escrita perde não só acentos, mas pontuações, letras finais de palavras (não apenas "s" de plural, mas "r" de infinitivo, "u" de pretérito perfeito, particularmente no caso de verbos de primeira conjugação) e tudo o mais que é "não faz sentido" para cada fulaninho que está escrevendo seu texto no seu canto.
Nenhum escritor percebe o país inteiro e que características fazem sentido em cada praia ou sertão. O que torna a escrita uniforme num território maior do que poucos quilômetros quadrados é exatamente a imposição de um código arbitrário (eu, pelo menos, vejo apenas motivos contrários para se crer na teoria de que a norma culta seja capaz de criar uniformidade suficiente para um país inteiro). Mas "imposição de código arbitrário" não é o mesmo que dizer "como deu na telha de um gramático nazista". É verdade que existem regras burras e certas questões mais políticas que lógicas na gramática, mas as regras básicas de acentuação não estão entre essas. É ignorância comprar o pacote do descarte ideológico de qualquer coisa antes de tentar entendê-la. Não só isso, é preciso lembrar que "arbitrário" ainda guarda sua relação com "arbitrar" e "árbitro". Será que traduzindo para "juiz", pelo futebol, cai a ficha nessa gente?
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