Passei por um cartaz hoje que anunciava a organização de um curso (oficina, ou semelhante) de criação literária para mulheres. Para as interessadas, está sendo organizado pela Casa de Cultura Mário Quintana e pelo Sesi. Não é isso, no entanto, meu assunto, e sim o "para mulheres".
Antes, uma pequena anedota que aumenta a perspectiva do que ia dizer. Vi o cartaz e pensei imediatamente em comentar aqui, mas não anotei nada, pois nem era prático com tanta chuva e tanta coisa para carregar nem eu pensei que teria dificuldade em encontrar as mesmas informações na internet. Na verdade, foi muito difícil. Tanto que desisti. A Casa de Cultura ainda não colocou no site. Não sei se divulgam apenas quando está mais próximo da data de início ou se informam apenas sobre seus programas mais independentes e constantes. Enfim, procurei de várias formas e encontrei milhões de sites com projetos "apenas para mulheres", e isso interessa aqui.
Por que se mantém tantos projetos exclusivos para mulheres? Entendo que grupos de ajuda e de auxílio social, seja em casos como gravidez ou renda familiar, se foquem, por diversos motivos, no público feminino, mas essa noção de incluir por exclusão nunca me cai muito bem se aplicada a temas que apenas têm a ganhar com a famosa diversidade.
Primeiro, a picuinha: o caráter "igualitário" é complementado, claro, por o projeto ser todo formato para "fomentar" a participação inclusiva à séc. XXI: têm preferência mulheres de baixa renda (quanto mais baixa, mais chances) que nunca tenham feito nenhum curso do tipo antes e que sejam negras ou índias. Como sempre, os critérios em si já são complicadíssimos. Associar negros e indígenas é prático para instituições públicas, mas ridículo no tipo de exclusão a que referem sob critérios iguais (e pessoas de renda extremamente baixa lidam muitas vezes com outro problema, anterior ao "literário", que é o uso da língua escrita, mas deixemos de lado essa questão e suas prováveis respostas mais óbvias). Notem o curioso: aqui, que é para "favorecer", etnia e renda são critérios independentes, mas quando se quer discutir se um deles não seria o real centro do problema, repentinamente são "inseparáveis no contexto brasileiro". Além disso, deve-se ter 80% de presença. Isso, que é dado como exigência para um certificado, funciona na prática como elemento de exclusão. Quanto menos dinheiro, menos se costuma respeitar o caderno de chamadas, por motivos óbvios. Os horários não são em si uma barbada, mas na verdade nunca são para o público que interessa.
Agora, em sentido amplo, por que se faz tantos projetos e oficinas que criterizam seu público nos termos estabelecidos pelo "vilão"? Opõe-se um grupo só para negros à exclusão etnocêntrica, só para mulheres à sexista, só para pobres à classista. Como disse um amigo meu, logo que saiu a banda, "Só preto sem preconceito" é o nome mais contraditório da música nacional. O problema do segregacionismo não é quem está em cima, mas a segregação em si, pelo menos é o que dizem esses mesmos que tentam lutar contra ela. Quando a questão é justificada, como nos casos compreensíveis que mencionei, é uma coisa, mas quando se fala em algo como criação literária, fica muito bizarro. Primeiro que autoria literária não foi exclusividade de homens talvez nunca, mesmo quando mulheres estavam supostamente vedadas a pensar a respeito. Analfabetismo já excluiu muitas mulheres, mas não parece que o pessoal desse projeto quer ir tão longe, já que o mesmo problema é bastante significativo também hoje, no Brasil. Segundo que pessoas de baixa renda que tenham interesse por literatura (e que estejam dispostas a se dedicar à coisa apesar das dificuldades) precisam de apoio, sejam homens ou mulheres. E terceiro, claro, é de se perguntar se projetos do tipo, se feitos abertamente, teriam tantos homens inscritos que as mulheres não teriam espaço. Se existem temas literários pelos quais nenhum homem pode se interessar, ou ainda se determinadas formas estão vedadas à sensibilidade feminina, de modo que só elas podem extrair dali mais que uma historinha. Agora, se mulheres ficarem de fora (ou quase) de projetos do tipo que não sejam plenamente voltados para elas, então é de se pensar o que está havendo na base desse público, qual é o problema, ou o que é, se não for um problema.
A inclusão de cima pra baixo é um vício impressionantemente saboroso hoje em dia. Tanto, que é urgente pensar bem a respeito do quê afinal essa inclusão não está resolvendo. E literatura, como indiquei antes, é mais rica se mais diversa. Esse tipo de separação homem/mulher emburrece o pensamento artístico, mesmo quando expresso apenas superficialmente, como na separação desse projeto. E emburrece porque deseduca. Existem infinitos preconceitos a respeito de literatura entre as pessoas mesmas que a valorizam, e separação por gêneros (humanos) alimenta-os em vez de descontrui-los. Não estou falando centralmente do público do projeto, mas de todo mundo que entrar em contato com a proposta, tiver interesse e não for fazer as aulas, por qualquer motivo que seja.
E, do meu ponto de vista, uma mulher que se afirma como autora reforçando demais o próprio gênero só contribui com o machismo. Essa postura foi necessária e importante nos anos 1970, mas seu preço supera seu valor, hoje em dia. Não digo que seja apenas um risco, mas sim que é algo inescapável. Pensamos por diferenciação. Infelizmente, isso quer dizer que todo exagero identitário é o reforço de uma oposição, potencializando um conflito sempre que apaga demais as semelhanças entre os diversos grupos. Quando dois termos que ocupam polos de relações diversas (como "literatura" e "mulher") são grudados, tudo que se opõe a um dos termos é imediatamente atrelado ao outro. Ou seja, uma característica do livro, poema, ou o que for é associado a ele ser escrito por uma mulher. Isso é logo naturalizado para todo o gênero feminino, eis um preconceito que aflora. Estes são muito mais dinâmicos para nascer que para morrer. Qualquer deseducação precisa de bem menos força para surgir do que nós precisamos para destrui-la (vide o populismo, que já ao nascer cria um círculo vicioso de retroalimentação).
Pelo que sei, apesar de não ter encontrado mais informações sobre esse curso específico da Casa de Cultura, o caminho para eles serem montados já parte bem definido na verdade. Não é tanto a preocupação em ensinar literatura para mulheres pobres excluídas, mas uma verba que vai para projetos inclusivos, que devem respeitar determinados termos (e quanto mais se adequarem à política que libera a verba, melhor) e que acaba sendo aproveitada por pessoas de um núcleo ou de interesse pela literatura que criam o projeto de acordo. Mas, ainda assim, é de se entender por que diabos a verba vem formatada assim, e repensar a coisa em vez de só reproduzir eternamente o mesmo tipo de organização bem comportada, que "inclui" porque é pra isso que se tem dinheiro e que reitera esse sistema exclusivo de inclusão.
De vez em quando, projetos do tipo revelam um grande talento, e o tal vira símbolo do sucesso dessa política. Besteira. Esses heróis surgem porque receberam a oportunidade de que precisavam, mas isso não quer dizer que os critérios que formaram o grupo de que faziam parte fossem os melhores, ou mesmo bons. A raridade de tais heróis em si já deveria indicar claramente isso. Todas as vitórias sofridas de esportistas brasileiros indicam quanto talento há por metro quadrado em qualquer lugar. E o pior é quando as adversidades superadas pelo sujeito servem para endeusá-lo. Faz parte desse endeusamento, sempre, o reforço de um mito muito forte no Brasil da pessoa que sai de baixo e vence contra todas as expectativas, como se isso fosse uma linda história de vida - não, não são só os EUA que se fixam nisso, temos nossa versão com cor local e tudo. A vitória dessa pessoa "excluída" é ótima, especialmente para o sujeito, mas tudo por que ele teve de passar é um absurdo. O mártir é um herói por quem ele é. A posição do mártir, no entanto, é um símbolo de tudo que está errado no contexto em que ele se desenvolveu - ou a história de Jesus é um elogio a judeus e romanos? O mártir é exceção, exceção... exceção!
Ninguém deveria estar tão embaixo, não porque o universo nos deva nada, mas por questão de direitos humanos. Ninguém deveria ter de lutar tanto quanto esses lutam. A vitória de alguém que sofreu muito não faz do sofrimento algo bom. Não importa quantos superem adversidades homéricas, não importa quantos auxílios governamentais "incluam" os que estão reclamando, a situação média brasileira é péssima, horrível, ridícula. Poder sair dela é o mínimo. Programas que têm grande sucesso com um ou dois (ou com 200, tendo por objetivo favorecer milhões) não fazem nem mesmo esse mínimo. E, é óbvio, a base que gera a necessidade de tais programas é o problema. Por enquanto estes apenas dão um alívio triste, mas se submetem à mesma lógica que os torna tão necessários. Até excluem conforme os mesmos termos. Faz sentido: não ameaçam o motivo de sua existência.
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