Como estamos hoje em dia, o ambiente partidário é perfeito para aquela clássica resposta de brincadeira "Não, fulano, a outra direita". Acostumados por muito tempo a entender direita como o pessoal que estava no poder e era conservador e esquerda como a galera fora do governo e progressiva, ou até, romanticamente, revolucionária, todo mundo parece ter medo de usar a antiga nomenclatura hoje. A não ser, é claro, aqueles que atrelaram esses termos como cunhagem, para quem PSDB só pode ser direita e PT só pode ser esquerda, por exemplo.
Perdido no caos pelo jeito, ou simplesmente reconhecendo a confusão e não querendo confundir leitores, FHC deu um jeito interessante de driblar a baderna e sair bonito do outro lado. Refiro-me a um texto dele publicado na Zero Hora de domingo (e em vários outros lugares, como o Estadão), "Os limites da tolerância". Denotando formação de pesquisador acadêmico, 3/4 do texto são preenchidos por citações e paráfrases. Comprovando prática política, esses 3/4 pouco têm a ver com o assunto, verdadeiramente, apesar de ele tentar encaixar uma coisa na outra por uns arremates que apelam à boa vontade ou à paranoia do leitor (pois tudo, afinal, tem alguma ligação com tudo mais). Dá indícios, porém, de que apenas tinha lido o livro que tanto cita recentemente: estava na mão, fresco na mente, por que não encher colunas e colunas com ele?
Como acadêmico também, não vou fugir de citar e referir, mas pretendo que isso tenha a ver com o que estou dizendo, afinal, o texto dele é realmente meu assunto. O livro que FH leu trata da Holanda, o que em si é fortuito, dada a confusão entre partidos que mencionei. Fosse sobre a Suíça, num texto que fingesse relações entre esse país e o Brasil, e poderíamos pensar que estávamos lendo algo escrito pelo Lula (ok, não lembro de o Lula escrever alguma coisa, mas é melhor prevenir que remediar, né, FH?). Ele acaba estabelecendo, em todas essas paráfrases e citações, uma certa indicação dos diversos problemas envolvidos na busca do convívio pacífico entre vários povos sob uma mesma bandeira. Os desenraizados, como chama, sejam os recém-chegados, que perdem uma identidade ou se firmam nela fanaticamente, sejam os autóctones, que percebem a mudança de seu país natal devido à proliferação de culturas com as quais não se identificavam e a um poder político oligárquico que também não os representaria em sua própria terra. É no âmbito europeu de migração acentuada, fundamentalismos e atentados terroristas que FHC primeiro utiliza a expressão "populismos, de direita ou de esquerda", na mesma lista em que constam "terrorismo", "apego aos vários fundamentalismos" e "violência", ou seja, tudo isso, populismo incluído, são respostas ou resultados do desenraizamento.
Muito bem. Parágrafo seguinte (penúltimo!), chegamos ao Brasil. Primeiro, louva nossa tolerância (que pouco tem a ver, em fundamento, com a tolerância que a Holanda costumava apresentar, mas ele não toca no tema). Aproveita para criticar o "racismo antirracista" que teria sido quase implantado recentemente; ora, talvez não estejamos tão tolerantes quanto interessaria para seu argumento, pelo jeito. E de fato, como ele indica, diferenças linguísticas e religiosas no Brasil não são da mesma natureza que as da Holanda. Nossas migrações mais acentuadas são internas... Hm... Por que ele falou em Holanda mesmo?
Peraí! Mas aí ele viu semelhança! Nós somos desenraizados! Num deslizamento nada silencioso de sentido, ele indica a conexão que queria fazer: "[somos um país] Portanto, de 'desenraizados'. E desenraizados não são apenas os recém incluídos, geográfica e ou socialmente, à sociedade moderna. São também os oligarcas que não se conformam que ela clame por novas práticas e não querem perceber as mudanças." Ou eu bebi, ou o FH saiu de um contexto em que o povo era desenraizado por causa de uma oligarquia ou por trazer para uma nação religião e língua bastante discrepantes e chegou na nossa realidade, achando desenraizamento na própria oligarquia e igualdade onde só há diferença. Aliás, se fosse para forçar metáfora, eu diria que a oligarquia não só tem raízes como é dona do próprio chão. E o que ele percebeu como racismo antirracista não seria uma visão pejorativa de uma consequência da busca dessas "novas práticas" tão difíceis de engolir para quem não vê o mundo mudando à sua volta? Concordo que ultrapuritanismo nunca é legal, mas existem formas mais positivas e compreensivas de se referir a lutas de identidade. Um dos problemas apontados em todo o trecho que falava sobre a Holanda não era a incompreensão entre elite e povo?
Legal mesmo, porém, é a penúltima frase do texto, finalmente o assunto que lhe interessava: "O mais triste ocorre, como agora, quando os que chegaram ao poder para renovar e adaptá-lo aos novos tempos aderem aos hábitos do 'clube oligárquico' e se autoatribuem a 'missão histórica' de perdoar os trangressores e dar continuidade às velhas práticas." Aaaaah! Ok. Certo. Completa o link entre esse Brasil e a Holanda repetindo seu aviso sobre os "novos populismos, de esquerda ou de direita". Tri: era impossível definir, de forma clara, se falar mal do Lula, do PT ou do governo seria falar mal de esquerda ou de direita; ao mesmo tempo, um dos piores problemas (não só) de nossa política é o populismo; além disso, FH acabava de ler um livro interessante sobre a Holanda e uma metáfora apocalíptica sempre reforça nosso argumento. Junta tudo de qualquer jeito num texto só e tá feito! Esquerda ou direita? Refere as duas, uai, óbvio. A antiga brincadeira "Se faz de neutro". Gostei da solução: indefinição política vira isenção retórica. E ele pode até terminar dizendo que nossas instituições não representam o sentimento das massas, mas é tão difícil acreditar que esses interesses tenham algo em comum com os dele que mesmo essa verificação óbvia fica suspeita. Afinal, quem foi que passou a faixa para o Lula mesmo? O Brasil era tão diferente antes no que diz respeito a poder oligárquico?
Francamente, nada a favor do Lula. E, sim, populismo é uma praga, mas esse texto me lembrou o Serra com argumentos ponderados e insossos perdendo para o populismo desavergonhado do Lula no debate da última eleição. Afinal, o Serra tem muito da culpa por ter perdido. Como ele foi tão fraco como candidato pra não derrotar um sujeito na situação perigosíssima em que o Lula se encontrava (e, não, eu não votei nele)? Sei que política não se faz com discursos lógicos nem com pensamentos consequentes, mas o FHC não ter já automatizada uma retórica melhor me pareceu mau agouro, por algum motivo.
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