(Há apenas suspeita de estupro no BBB, mas a maioria das pessoas que vi comentarem ou compartilharem mensagens de facebook a respeito consideram que houve estupro, então vou indicar quase sempre como fato, já que o que rola na mente das pessoas é mais importante neste post do que a solução do caso, já veremos o porquê. Estive longe do computador por muitos dias, então lucro com a persistência do assunto para ainda deixar um comentário.)
A ideia de que crime é crime, no Brasil, não fez sucesso. Não digo que tenha feito sucesso em ALGUM lugar, mas só posso falar com convicção daqui...
Uma das principais críticas a cotas e leis "específicas", como para o caso de homofobia, é que a lei deveria ser para todos e que (por exemplo), se é crime bater em cidadão, que o cidadão seja homo ou heterossexual não deveria fazer diferença. Ou ainda, preconceito poderia agravar o crime, mas não poderia ser um crime específico bater em homossexual, porque isso seria uma espécie de discriminação compensatória: não quero que tratem homossexuais de forma diferente, então eu, como juiz, trato-os de forma especial, ou seja, diferente).
Cotas têm uma "problemática" semelhante. "Eu não quero que discriminem negros", por exemplo, "então vou eu mesmo tratá-los como diferentes dando certas vagas para as quais não foram selecionados, assim eu mesmo tratando-os de forma diferente".
Vamos aceitar esse ponto de vista temporariamente. Pois bem, supomos então que se está lutando por que as pessoas sejam tratadas de forma semelhante. Todos iguais perante a lei. O que o BBB tem a ver com isso? Que ele ilumina o quanto essa igualdade é problemática por aqui.
A mulher supostamente estuprada tem algumas características-chave: é vista como vagabunda (para a média de comportamento brasileiro - variando, ao que percebo, entre o "normal" e "muito vagaba", mas apenas em casos de exceção), conseguiu participar do BBB, havia bebido numa festa e contradiz-se todas as vezes que pôde, dando uma resposta diferente sempre que lhe perguntaram algo sobre aquela noite. Que o BBB seja um programa da Globo também é uma informação crucial.
Supomos, como avisei, que o estupro tenha acontecido. É crime, hediondo (graças à luta legal de um pai), por enquanto. Reações: achar absurdo, culpar a Globo, culpar o Bial, culpar a mulher, culpar a vagabunda, culpar a vítima, culpar a bebida, culpar o telespectador, culpar quem achou que houve estupro.
Talvez se observe que listei a vítima mais de uma vez, mas isso porque as pessoas a culparam das formas mais inventivas, talvez numerosas demais para este post. Racionalmente, nenhuma delas merece respeito nem muito assunto porque são aquelas variações das velhas respostas machistas: se a mulher fez qualquer coisa que seja atraente para um homem, "estava pedindo". Às vezes isso se disfarça melhor, considerando que a vítima poderia ter tido mais cuidado (o que não desculpa nenhum crime, como talvez um momento de raciocínio revele a todo leitor), às vezes essa postura é franca: "é uma vagabunda mesmo", "tava se engraçando toda na festa", "são dois adultos" (??), "o que um não quer dois não fazem" (?!?!?!), "quem tá na chuva é pra se molhar"...
Todas as vezes que a vi acusada - de aproveitar a aparência de estupro (?) ou de ser culpada mesmo - o fato de ser uma pessoa buscando celebridade, de estar no BBB, de ser considerada burra, puta ou qualquer combinação das características acima era fundamental para desculpar o suposto estuprador. Ou para apoiá-lo! Espero francamente não ter de alongar o post apontando como essa lógica ser comum é preocupante.
Um dos piores aspectos da história toda, no entanto, foi o quanto as pessoas passaram a criticar ou compartilhar (no facebook) contra quem comentou o assunto como uma situação grave (celebridades, amigos ou anônimos). Mensanges como "Eu sei que ninguém vai compartilhar (essa acusação sobre violência contra cachorro, ou esse exemplo de um prisioneiro de tal lugar, ou sei lá) pq n tá no BBB", ou ainda "se estivesse no BBB, tava todo mundo compartilhando o exemplo desse político (bem conhecido muito antes do escândalo)" abundam nos últimos dias, uma grande crítica à média da população por quê? "Porque as pessoas se importam com um caso de estupro..." Não, claro! Trata-se de uma grande e pomposa crítica a alguém se importar com BBB, AINDA que role um estupro lá!
Eu sei que, parando para pensar, muita gente diria que não é isso que está tentando apontar, e acharia uma racionalização meio moralista e meio cult, mas é isso que está sendo dito, das mais diferentes formas. Acontecer um estupro no BBB é assunto menor porque o programa é uma fábrica de celebridades que "corrompe" o país, sua população, e toda essa boa gente que está desculpando ou diminuindo a importância de um estupro para mostrar como é superior e informado, só porque não curte o programa.
Quer dizer: onde o estupro acontece, com quem acontece, quais as consequências de sua investigação (vai sobrar para a Globo ou não? ela vai posar pra Paparazzo ou não?) são fundamentais para que um "crime hediondo" seja relevante.
O que isso tem a ver com cotas e homofobia e os assuntos citados no começo? É o seguinte: o caso do BBB é mais um exemplo de que a lei é para uns, em certas situações e dependente do resultado previsto para o caso (facultativo) de ser exercida. Assim é com as coisas mais estranhas possíveis, até mesmo com o prototabu do estupro. Seria legal se homossexuais pudessem lucrar com a lei e responder a ela da mesma forma que os heterossexuais, a ponto de não precisarem ser diferenciados legalmente (o casamento gay, aliás, é uma equalização que já não se aceita...)? Seria. Mas isso exigiria que se entendesse que lei é lei, independente de gostarmos ou não da vítima, independente que gostarmos ou não do resultado do cumprimento da Constituição.
Não estou querendo apontar que essas diferenciações legais resolvem o mundo, apenas indicar que elas combatem/refletem a forma como se entende justiça por estas bandas. A "justiça" atualmente não é apenas para uns, ela tem diferentes graus em cada contexto, a ponto de poder ser meio ignorada e, em alguns casos, absolutamente não valer. Aí é complicado.
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