Estou cansado dos papos de "democracia" que usam clichês como "ditadura da maioria" apenas para desrespeitar o que foi votado, tentando usar a democracia como um acúmulo de individualidades, excluindo ostensivamente a ideia de "conjunto" desses indivíduos (sabem como é, o respeito ao grupo foi inventado por "comunistas"). Na prática, a organização ideal da maioria das pessoas parece ser uma junção bizarra de autoritarismo e egoísmo permissivo. A palavra "democracia", no entanto, continua sendo útil para as pessoas colocarem esse sistema em prática, apesar de nenhuma de suas instâncias ser de forma alguma democrática. Em especial, é claro, porque é bonito ser democrático. É pura estética, não apenas por envolver mais aparência e vaidade que outra coisa. Li recentemente um resumo interessante sobre um aspecto importante da democracia, então vou utilizá-lo para começar o papo sobre essa palavra badalada (para variar) da boca para fora:
"Se somos democratas vivendo num regime autenticamente democrático (...), reconheceremos na figura do presidente da República uma autoridade, mesmo que não tenhamos votado nele e não concordemos com suas leis: conseqüentemente, acatamos suas decisões, não porque tomaríamos as mesmas, mas porque legitimamos o processo pelo qual foram impostas." Yves de La Taille
Observe-se como essa explicação fundamenta a existência de uma democracia na postura ética dos governados, que assumem a decisão do grupo mesmo que contrária à sua. Observe-se também que isso não implica, como poderia parecer numa leitura apressada, que as mesmas decisões sejam inquestionáveis. Elas são, no entanto, ditas impostas, e às pessoas que não se enxergam sob imposição de nada recomendo pequenos exercícios de memória, como pensar se o ato de votar, respeitar leis de Saúde ou até de colocar filhos na escola não são obrigações.
Além disso, o autor define um fato geralmente desagradável, mas mais verdadeiro do que aparenta: as leis sancionadas que nos afetam são comumente obedecidas, mesmo que de forma contrariada. Acredito que a ilusão de que todos são rebeldes ou independentes surja de algumas leis-chave que são desobedecidas por muitos, mas que em geral são ancestrais, como a sinalização de trânsito ou o respeito a funcionários públicos em exercício - o fato de que tantos infratores são multados não parece ficar registrado na mente das pessoas como uma punição por uma falta a determinada obrigação legal.
Obedecer a uma lei com que não concordamos, assinada por alguém que não queríamos no poder, portanto, é consequência a que estamos expostos seguindo um ethos democrático; é como que seu lado desagradável, mas necessário. O autor e eu, no entanto, estamos um pouco isolados por essa opinião. Em primeiro lugar porque se reconhece o Brasil como país sem leis, comandado por gente corrupta que não merece respeito (essa é a desculpa daqui, outras culturas têm as suas, racionalizações em geral tão úteis quanto a nossa). Em segundo, porque a imaturidade permitida em nossa formação social mediana dá uma sensação de independência, valor intrínseco ou mero senso "macho" para as pessoas que se vangloriam por desrespeitar regulamentos (legítimos). Em terceiro (numa lista que provavelmente mereceria mais itens), como disse no início do texto, porque o ethos geral de organização é bem diferente do democrático. Vamos a ele.
Todas as relações hierárquicas (tirando extremos, como o Exército) parecem facilmente cair numa dicotomia hoje em dia: é "preciso" ter um líder, um organizador, um colocador de ordem, mas valorizamos e respeitamos cada indivíduo no grupo, suas preocupações e sua singularidade. É para essa segunda parte que tanta gente se apega à "democracia". Para a primeira, a "necessidade" ou o "bom senso" surgem pelo senso comum para matar qualquer questionamento ao valor da autoridade de quem já está, por dinheiro ou cargo, por cima. Além disso, grupos são mais produtivos e eficientes quando necessidades ou interesses pessoais se identificam com o interesse do grupo, de modo que é bom conseguir convencer cada sujeito presente que ele está sendo respeitado, mesmo (de preferência, desde) que submetido ao poder central.
O pequeno e decisivo problema é que a democracia também implica acatar a decisão do grupo (que pode estar identificado com um indivíduo em sistemas como a... democracia representativa) quando ela não nos agrada, o que não pode acontecer no sistema espontâneo que estou descrevendo, porque a ordem geral vem de uma autoridade "totalitária" (chefe, diretor, supervisor, presidente de X...). Como a maioria das pessoas tem medo de se assumir como executor de poder totalitário (porque isso é "feio", como se toda decisão centralizada fosse necessariamente burra), é comum que o líder hierárquico abra certas decisões ao voto. É comum também que a vontade da maioria nem seja unânime nem agrade aos desejos sinceros e íntimos do chefe. O líder, tentando escapar de sua posição totalitária efetiva, cai em duas confusões sobre democracia: (1) a abertura do ouvido à opinião alheia esvazia de poder o posto de fato mandante, gerando uma democracia; (2) atender a egocentrismos é o mesmo que ser democrático.
Como o chefe justamente abriu mão de ser autoritário e perguntou o que os outros queriam, forçar a minoria a seguir o caminho decidido pela maioria seria "antidemocrático", ainda que a democracia implique muitas vezes se fazer exatamente isso. Para quem acha que não, recomendo que tente exigir do Serra decisões que são incumbência da Dilma, no momento. Pode-se resistir à política dela (fazendo-se oposição dentro da lei, aliás), mas não se pode meramente desrespeitar ou ignorar o resultado do voto. Democraticamente, não se passa por cima do que o grupo decidiu, como pode parecer aceitável para uns e outros.
Os chefes que fogem de serem chefes não querem, pelo mesmo medo, exigir unidade, porque seria "mandar que se aceite a decisão da maioria", pela confusa ojeriza ao verbo "mandar". Com a desculpa de ser democrático, quem deveria comandar cria assim um "cada um por si". No entanto, qual a função de um grupo votar algo para depois cada um fazer o que quiser? Por que seria "democrático" o individualismo somado? Ainda mais quando esse tipo de individualismo, que chamo assim exatamente porque não reconhece o grupo como uma unidade, não dá dignidade à decisão dos outros? Não se tem democracia se os indivíduos são apenas indivíduos, ou seja, se não são parte daquele grupo que se organiza na volta de um poder compartilhado.
Tanto egocentrismo aturado pelo medo da "ditadura da maioria"... Sinto muito, mas, em termos comportamentais, muito da democracia pode ser sim chamado de ditadura da maioria ("muitos" decidem por algo e os "nem tantos" também obedecem a decisão) desde que não se torne uma ditadura no sentido de se impor silêncio aos derrotados - mesmo porque estes podem vencer amanhã, e a abertura a essa possibilidade é parte do valor da democracia. Tem batido recordes, no entanto, o quanto as pessoas se dizem democráticas por afirmarem que os democraticamente derrotados "não podem ser forçados" a nada. Podem sim. Aliás, cotidianamente o são. Acordem!
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