Precisamos de uma nova regra: toda dicotomia é burra. José Paulo Cavalcanti Filho, por exemplo, em seu novo artigo "Democracia também é não informar", iguala sem limites nem nuâncias Wikileaks e News of the World, simplesmente porque ambos divulgaram informações sigilosas. A "semelhança" da informação (ser sigilosa) faz com que curiosamente o autor passe por cima de um detalhe que menciona o tempo todo: o bem público envolvido em revelar determinada informação.
Só para começo de conversa, no caso do jornal inglês, temos informações privadas divulgadas em prol do lucro. No caso do Wikileaks, a relevância da informação é julgada moralmente por quem a publica, bem como se busca evitar a publicação do que possa representar risco à vida (ainda que possa, para alguns, ter havido casos em que o escrutínio foi duvidoso). Ignorando completamente a natureza da informação e a finalidade da publicação, José Cavalcanti afirma tranquilamente: "um exame isento dos casos revelará que há, em ambos, uma mesma questão de forma e uma mesma questão de substância".
Acho que entendemos forma e substância de forma muito diferente. Porque não sei como pode ser verdade que nos dois casos a informação deveria ser sigilosa pelo bem coletivo, se uma publicação visa em primeiro e último lugar o bem mercadológico do produto, o enriquecimento de seu produtor, e o outro visa problemas sociais, econômicos e políticos que dizem respeito a populações de diversos países. A importância de Assange não surgiu de ele publicar babado forte, mas de ter comprovado que havia uma relação de má-fé entre governo e população, bem como por ter provado que uma série de decisões internacionais e nacionais vinham sendo realizadas com manipulação consciente de informação. Ou seja, a questão não foi que Wikileaks passou a publicar coisa que deveria ser mantida em sigilo pelo bem de todos, muito pelo contrário, indicou uma quebra no contrato democrático pressuposto entre eleitores e eleitos. Mais ainda, o site indicou cumplicidade de determinados jornais com esses interesses.
A moralidade de tudo isso pode ser discutida, e se alguma informação revelada pelo site pode ter levado a alguma morte inocente vai mesmo ser posto em julgamento sempre que os governos puderem levantar a questão. Agora, como isso é comparável a espionagem de tabloide? Se a natureza do dado publicado, a finalidade e a revelância moral da publicação são ignoradas, como se está fazendo uma análise "rigorosa", Sr. ex-presidente do Conselho de Comunicação Social?!
É verdade que nem toda informação pode ser revelada a qualquer hora, mas também o fato, utilizado por José Cavalcanti, de que, em determinados países (como os EUA, que são cada vez mais exemplo pior quando o assunto é transparência governamental), determinadas informações não podem ser reveladas nunca em nada indica que essa postura de sigilo eterna seja moral, correta, ética ou superior. Apenas indica o porquê o Wikileaks balança tanto com a política internacional. Mais ridículo ainda é comparar a lenda da fórmula secreta da Coca-Cola e um pretenso problema de royalties com as consequências da ação de gente como Assange. Mesmo News of the World, causando dano a vítimas de crimes em prol de tentar desenvolver determinada notícia, em nada se presta à analogia.
Na conclusão, a Grande Dicotomia: "Ou não deve haver nenhum limite à informação, caso em que WikiLeaks e News of the World devem ser tidos como mensageiros do bem. Ou podemos (e mesmo devemos) admitir limites democráticos a esse acesso à informação, sugeridos sempre pelo interesse coletivo – caso em que Murdoch e Assange acabam sendo vilões muito parecidos.
"Os leitores podem escolher. Um lado ou outro. Só não podem é louvar o WikiLeaks e mandar ao inferno o New of the World. Apenas por não ser razoável. Nem coerente. E isso basta."
Isso é retórica de referendo: finge liberar opção ao leitor quando decide a priori as opções, só duas aliás! Não há nada pacífico em colocar o tablóide e o Wikileaks no mesmo saco. É possível, mas a escolha é mais do que problemática, e seria ruim de fato se algum leitor realmente ficasse apenas entre as duas opções simplificadoras oferecidas. Literalmente, se aceitamos que existem "limites democráticos " ao acesso à informação (como afirma Cavalcanti), se o Estado os manipula as ferramentas para esse limite por má-fé, e se Wikileaks os denuncia, o site não é nem vilão, nem parecido com News of the World. Mais ainda, para algumas organizações internacionais, Assange age a favor de Direitos Humanos, sob critérios que diríamos ter News of the World agido contra. Cavalcanti não precisa concordar, mas nem considerou por que é possível se ler dessa forma o problema?!
O leitor talvez decida mesmo louvar um e mandar o outro para o inferno, mas não cabe a Cavalcanti atestar o que esse leitor pode ou não, quando sua exigência de coerência se baseia em tamanha simplificação. Esta é tentadora e, com imaginação, pode ser aplicada de fato a qualquer matéria - tudo é comparável a tudo, se quisermos muito. No entanto, para que serve simplificar o mundo a ponto de nublar todas as questões relevantes envolvidas num problema? Ajudar não ajuda, nem conquista qualquer tipo de "honestidade coerente", só aplaina o pensamento, o que não nos parece grande ganho para um veículo de discussão sobre imprensa, como o site em que o artigo foi publicado. Que vantagem se tira de escrever um texto assim para esse veículo? Talvez, no entanto, a mídia de publicação também seja dado irrelevante para o autor, já que tanto ignora para poder assemelhar Assange e Murdoch.