domingo, 24 de abril de 2011

A função social dos puristas

Algumas pessoas tremem ao ouvir "fluído", outras sentem nojo (associado a esdrúxulo anti-"indianismo") se alguém fala "pra mim comprar" e assim por diante. Não é apenas no campo da linguagem que isso acontece, é claro. Há séculos (se não desde sempre), a grande maioria da música popular tem enorme dificuldade para ser considerada como "música" por uma outra parte (pequena) da população, assim como certas políticas não são consideradas "políticas" por uns, muitos livros não merecem o nome de literatura, para outros... Mais do que isso, a maioria de nós, se não todos, concordam com alguns desses purismos. Alguns sujeitos, no entanto, conseguem reunir um número enorme destes pertencentes a muitos campos de conhecimento, ou todos de um só campo. Eis quem chamo aqui de puristas e, ainda que em geral tenham uma opinião tão mal embasada quanto qualquer um de nós defendendo essas opiniões, parece-me que os tais puristas têm um importante papel social.

Os puristas servem para defender publicamente suas ojerizas estéticas sem fundamento (racional válido), assim servindo de lembretes contantes para nós, indicando-nos cotidianamente quão ridículos estamos sendo quando defendemos opiniões do tipo. Não é que não possamos ter nossas supersensibilidades estéticas, mas às vezes encasquetamos com alguma delas e começamos a agregar densidade e repetição a um determinado discurso que não tem razão de ser e que, em geral, é a válvula de escape de alguma outra incomodação na nossa vida. Tudo bem que alguém ache, por exemplo, que "fluído" soa mal. A pronúncia apoiada pelos gramáticos ("fluido") era-lhe costumeira e agregou valores, sejam quais forem. De repente aquela outra pronúncia passou a incomodar simplesmente por ser estranha, reconhecida só a partir de uma determinada época, ou por agregar, por associação, os valores inversos aos que tinham sido associados à pronúncia dicionarizada.

Alguém acha, no entanto, que esse problema é tão digno de atenção (cotidiana) assim? Que é motivo para se incomodar no dia-a-dia, para sentir mesmo nojo ou qualquer tipo de repulsa, para dominar uma conversa porque "fere" a sensibilidade do sujeito encasquetado com isso? Uma coisa é achar que a opinião ou o estilo de outro é ruim ou pior em algum sentido, outra é se pensar que os males do mundo estão fundados nessas diferenças ou que existe algo realmente sagrado na língua, na música ou no que for - uma sacralidade, aliás, frágil e sensível a toda divergência (sintomaticamente se tratando as áreas de nosso conhecimento fossem algum deus grego, sempre sensível, bitolado, vaidoso e arrogante). Não somos nós que não aceitamos nenhuma variação ou divergência, "é a língua (literatura/música/costume/tradição/herança)"!

O que vem salvar essa pessoa repentinamente travada, por exemplo, em sua suposta repulsa à pronúncia de determinada palavra produzida por certos brasileiros? O purista! Assim que ele aparece, com suas defesas ridículas e às vezes engraçadas não apenas desse, mas de uma fila enorme de coisas que só mereceriam mais atenção num estudo sério ou no Guia dos Curiosos (ou seja, nunca numa conversa jogada fora no cotidiano), aquela pessoa estranhamente travada na pronúncia "fluído" pode se ver de fora, pode se questionar, pode recobrar a perspectiva em sua vida e decidir ou ir além, realmente entendendo o fenômeno e, nisso, não mais se importando da mesma forma (podendo inclusive desancar o purista); descobrir que é ridículo estar se incomodando há tanto tempo com isso e entender qual é realmente o problema que está estourando naquela bobagem; abandonar a questão como ridícula e não se questionar de forma mais profunda, deixando, torcemos, que sua real incomodação não se manifeste mais em reclamações cotidianas, mas em algo mais íntimo, a ser resolvido ou reclamado também em ambiente mais íntimo, ou seja, longe de conhecidos ou de quem só calhou estar no mesmo elevador que ela.

É, portanto, para nos mostrar quando estamos sendo ridículos que os puristas precisam existir. Seu grande serviço social é ser o palhaço sempre pronto a nos servir de espelho quando estamos nos portando como um, reduzindo assim, quem sabe, o tempo que perdemos com bobagens travestidas em reclamações obtusas "à inguinorância alheia".

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