Como a polícia do politicamente correto ainda não encontrou a pedagogia? Eu sei que se tem a impressão contrária, por tantos cuidados na escola com todo tipo de etnia e separação social, com termos como pedagogia do oprimido ou inclusão, mais ainda agora com o "Escola sem Homofobia", que causou tanto frisson com a apresentação pública feita pelo Bolsonaro. Mas tudo isso é o politicamente correto (entre outras coisas) dentro da pedagogia. Pergunto como os politicamente corretos não se voltaram para a própria pedagogia, para a formação para o papel de educador, para o questionamento do que ele é, a começar (como impõe seu fetiche pela linguagem) pelo próprio termo.
Diz-se que pedagogia vem de paidós (criança) e agogé (condução). Diz a lenda que o pedagogo era o cara (escravo) que "conduzia" a criança na Grécia e que, por pequenas transformações, passou a acumular responsabilidades educativas. Foi lá ainda que (no século V a.C., provavelmente) o sujeito que ensinava gramática, música e ginástica (educação como se entendia até então) passou a precisar também formar o aluno como cidadão. Essa coisa de cidadania e educação, portanto, está longe de ser novidade pós-moderna. Até a passagem de "condutor" a professor especializado se repete ainda hoje. Na última década, por exemplo, as "tias" de creches (maioria das profissionais da área, que tecnicamente não eram consideradas profissionais no sentido rígido do termo) passaram a sofrer pressão legal para se especializarem e ostentarem diplomas.
Pois bem, eu pergunto: como assim "conduzir", cára-pálida? Quer dizer que os politicamente corretos aceitam que alguém possa ser responsável por indicar caminhos e cercear outros para uma criança?! Esse é um ato rico em analogias que deixam os politicamente corretos de cabelo em pé (cercear, censurar, impedir, direcionar). Como pode que ninguém gritou e o termo não caiu? Com certeza não é por número de pedagogos nem por praticidade: quantas vezes os deficientes, por exemplo, mudaram de nome nos últimos cinco anos, deixando até os especialistas na área um pouco perdidos e (ufa!) cansados de malabarismos verbais com eufemismos sem sentido?
Minha teoria é que pedagogos (e politicamente corretos, grupos que nem sempre coincidem, por incrível que possa parecer para alguns) preferem continuar com ênfase na condução (ou seja, na ideologia), não na técnica (conhecimento), e isso implica, por sua vez, seguir "direcionando" e "conduzindo", novamente buscando usar a escola para formar cidadãos, aliás, como há quase 2500 anos atrás (e depois acham que a sala de aula é a coisa mais antiquada da Educação). É essa ênfase que mantém a educação entre as Ciências Humanas, só que isso no mal sentido. Sei que parece uma coisa boa, mas me parece que isso tem tido consequências "humanamente" mais nefastas do que se supõe.
Permitam-me esclarecer que estou questionando a Pedagogia num sentido amplo, não apenas no sentido do curso de Pedagogia das universidades. Todas as licenciaturas consideradas em grupo, todos os professores pensados ao mesmo tempo, todos os pedagogos lecionando, aconselhando ou supervisionando... pense-se em tudo isso e então se olhe para a questão: a pedagogia é mesmo a "ciência da educação", como quer sua definição? Ou ainda, por que motivo a pedagogia não é uma ciência "não-humana"?
Porque todos os alunos são diferentes...? Pelo conhecimento científico atual, podemos prever muito mais sobre alunos que entrarão nas salas de aula no ano que vem do que sobre galáxias e estrelas, nem por isso Astronomia não é ciência dura. Cada sujeito é especial, único? Ora, cada molécula é diferente da outra, se quisermos! O problema filosófico da identidade, aliás, pode se aplicar até a um elétron que esteja em dois lugares ao mesmo tempo. Nesse sentido, nitidamente o objeto é criado pelo método de análise. Nosso olhar para os alunos é o que destaca sua diferença ou semelhança, e destacar a diferença é contraditório com nossa valorização da educação, por um motivo simples: não se quer que cada aluno saia igual do colégio, raras vezes na história deve se ter até cogitado tal absurdo, mas por milênios se quer ensinar as mesmas coisas para o grupo todo de cada turma. O problema da padronização aterroriza mesmo pelo lado ideológico, não pelo técnico. Este herda o terror daquele, e as pessoas acreditam que não querem alunos massificados, mas há aí uma confusão associativa e, como geralmente é o caso, ilógica.
Existe uma enorme quantidade de conhecimento, alguns inclusive bem complexos, que se quer sim idêntico em todos os alunos: ler, escrever, calcular, localizar-se espacial e socialmente... É claro que todos atingirão níveis diferentes, mas o espectro socialmente valorizado é na verdade bem curto. Alguém acha que se fica satisfeito com alunos que não sabem que vivem no Sul ou no Norte (do estado, do país, do planeta...)? Alguém acha que alunos podem escrever o próprio nome errado? Ora, as pessoas se escandalizam por alguém não conhecer a bandeira de seu país, ou se ridiculariza os EUA por tantos americanos não saberem nem onde ficam os países com que o seu trava guerras! Chega de hipersensibilidade a termos: a padronização é sensivelmente ruim quanto mais ela significa falta de senso crítico, mas existe uma penca de coisas que precisam ser sabidas para se ser cidadão. Tudo isso não implica necessariamente alterar diferenças ideológicas individuais (é possível gostar das mesmas músicas que antes e ser alfabetizado), mas, no que diz respeito a "conhecimento para todos", o que se quer ensinar pode ser considerado "massificante", só que essa massificação não é ruim. Nem todos precisam concordar com o hino, mas todos deveriam saber interpretá-lo.
Toda essa formação básica é necessária para se ser um cidadão minimamente próximo do ideal descrito em qualquer planejamento pedagógico ou em qualquer plano de escola brasileira. Pois bem, todos os alunos têm mais ou menos os mesmos cérebros (se comparados a macacos, elefantes, ratos...). A respeito desses seres humanos, neurociência, linguística (um lado dela), psicologia, antropologia, sociologia... uma série de ciências acumularam e acumulam conhecimentos. Quanto disso é usado no ensino? Perto de zero. É verdade que pedagogos (psicopedagogas em especial, pela minha experiência) utilizam o que estudam de algumas dessas áreas na sua prática, mas isso em geral vem de esforços próprios, cursos de especialização (sendo raros os de qualidade, claro) e outras buscas pessoais. Além disso, mesmos os que mais se esforçam não sabem tanto da maioria dessas outras áreas, porque muita formação ideológica e muito tempo de trabalho tomam o tempo de que precisariam para aprofundar tais conhecimentos. O quanto os educadores NÃO sabem sobre educação, seres humanos e neurologia, o quanto os cursos de licenciatura NÃO usam a Ciência para formar seus currículos, o quanto NÃO se estuda do conhecimento objetivo que se tem acumulado sobre o ser humano ANTES de as pessoas trabalharem com educação é impressionante.
O que se estuda em pedagogia e nas licenciaturas? A ideologia, em grande parte. Repetições de clichês se acumulam com certas revisões das leis, como se saber leis e exercê-las fossem coisas análogas. A maioria (se não todos) os professores reclama de não ter aprendido a dar aula nas faculdades que cursaram. Por que isso é uma regra? Por que essa regra não muda? Porque a ênfase não sai da ideologia. Aquilo de que os professores recém formados sentem falta é da técnica! E técnica, diferente do que ideólogos de plantão ironizam, não implica ignorar ideologia nem, pelo outro lado, quer dizer "receita para dar aula". Essa ironia vem do fato de que muito da preocupação com a formação cidadã ignora o quanto temos de aprender para nos tornarmos cidadãos, o mesmo valendo para a preocupação com a formação de uma postura crítica.
Ironicamente, esse tipo de ideólogo ignora também um outro sujeito da escola: o professor. A relação entre professores e alunos é (dã) pessoal, sempre! Existe muito espaço para ideologia aí. Melhor dizendo, tudo na construção do conhecimento é ideologia, ou está imerso nela (mais até do que esse tipo pedagogo ou professor enxerga). E os alunos têm curiosidades ideológicas muito mais do que conteudísticas ou informativas. Se a ideologia está implícita e sempre presente, para que fingi-la, para que trabalhar a ideologia de forma afetada se ela estaria lá mesmo que não quiséssemos? Se tudo é ideologia, para que colocá-la em primeiro plano? Não há maior exemplo de péssimo letramento: querer inserir no ensino aquilo que se afirma onipresente!
Uma ênfase na técnica, portanto, na ciência do ser humano, da aprendizagem e do conhecimento na formação de educadores não apagaria de nenhuma maneira a formação ideológica da prática de sala de aula. No entanto, uma formação que só vê a ideologia e ignora tanto conhecimento e tanta técnica quanto consegue, usando alguns saberes mal colados e agregados sem método como base de uma formação ideológica (cidadã, crítica...) falha miseravelmente, porque é preciso conhecimento para questionar, criticar, duvidar, supor, até imaginar, assim como é preciso conhecimento para formar os alunos, tanto técnica quanto ideologicamente. Um professor com a bandeira que recebeu na universidade é, em sala de aula, um mudo tentando falar com surdos. Um professor com técnica e conhecimento não deixa de ter uma bandeira, mas ela provavelmente é diferente daquela que seus formadores queriam que fosse, porque um professor com técnica só pode ser um autodidata.
Por natureza, a maioria de nós agrega pouco conhecimento e horizontes curtos. Não criamos as escolas à toa, mas porque sentimos a necessidade de formar crianças num estado intensivo e arbitrário. Por que se "valorizar" tanto a escola e a educação e ainda se sentir tanta vergonha do caráter autoritário que está sempre implícito nela? É óbvio que não precisamos ser autoritários além da conta, mas é impossível forçar o comportamento de uma criança (impedindo-a de estar em casa ou brincando na rua, para começar por baixo) por pelo menos 5 horas de 200 dias por ano e sustentar que não estamos sendo autoritários nessa relação. Para formar alguém que possa até mesmo nos criticar, é preciso antes formá-lo, e esse verbo não vem sem certo custo para as sensibilidades politicamente corretas. Bom, azar o delas.
Sei que isso é muita exigência, mas Pedagogia nem deveria ser uma faculdade, mas uma especialização acessível apenas por pós-doutorado. Por que não formamos para educar apenas pessoas que já estudaram (muito) o ser humano? Por que achamos que podemos aprender a educar sabendo tão pouco sobre os sujeitos com quem vamos trabalhar? Por que a pedagogia ser uma Ciência Humana acaba implicando despreparo e falta de método?