quinta-feira, 22 de julho de 2010

Liberais e submissos

A profissão de professor é puramente um produto cultural responsável pela produção e reprodução de cultura. Como todos as profissões e objetos que se encaixam nessa descrição, seu funcionamento não é adequado à lógica capitalista, ou vice-versa. Como, diz-se, vivemos num sistema capitalista, adaptações precisam ser feitas, como a meritocracia, geralmente instituída apenas por políticos e, nessa maioria dos casos, com critérios que políticos consigam compreender, logo de fácil manipulação política, o que gera a alegria de uns professores e a ojeriza de outros.

Uma adaptação que herdamos de quando o tal capitalismo se espalhava pelo Ocidente é uma ética pedagógica que já malhei bastante aqui, mas que afeta também todas as profissões e objetos culturais nos dois sentidos que indiquei: a ética da abnegação, ou do desvalor do lucro monetário. Uma obra de "verdadeiro valor literário" não é produzida conforme as leis do mercado, de modo que seu autor amarga as dificuldades econômicas que lhe advêm da produção desse livro a duras penas e com grande orgulho, confesso ou implícito, mesmo que periodicamente ironizado por ele próprio. Da mesma forma, a profissão de professor envolve uma submissão (para muitos profissionais, tão aceita que passa despercebida) a uma série de abusos e desvios, incluindo um descompasso patente entre trabalho e salário. Algumas dessas imposições são largamente estabelecidas, de forma que são aceitas em silêncio, outras geram reclamações habituais, enquadradas por todos como a insatisfação que qualquer profissão está apta a gerar em quem trabalha, e outras imposições ainda geram atos de repúdio, revoltas, crises nervosas ou greves. Como muitos dos abusos, no entanto, entram nos dois primeiros campos, particularmente no primeiro, sendo culturalmente não só aceitos como defendidos com orgulho por professores e políticos (um professor é tão digno de sua profissão quanto mais atura quieto sofrer qualquer tipo de violência moral ou física), pode-se reconhecer alguém que trabalha na área quando se encontra uma pessoa realizando o Espacato Fundamental: um pé na merda do fundo do poço, o outro nas nuvens.


Quando profissionais liberais são chamados a se tornar professores, não em cursos específicos ou programas rápidos, mas quando são efetivamente misturados com gente que dá aula para sobreviver, quando são confundidos com estes, apresentam-se a eles dois caminhos. Ou sua mente enquandra o que está fazendo nos mesmos preconceitos que já trazia a respeito da profissão, e a pessoa aceita ser tratada "como professores são tratados", ou o sujeito mantém sua identidade o suficiente para achar que deve manter também sua dignidade, opção que leva geralmente à demissão ou a uma neutralização acompanhada da chaga eterna de "pessoa insuportável, irresponsável e anti-ética". Ocorre, porém, às vezes, que o profissional liberal passa do primeiro estado mental para o segundo devido a uma crise ocorrida durante sua prática docente. Não importa: a ameaça da demissão está sempre pronta, logo ali, para quem acha que seu empregador deveria concordar quando diz que dar aula em situação plenamente precária e vizinha de tiroteios não se enquadra na descrição de um profissional "educador". Às vezes, a demissão não chega a ser posta em prática por algum motivo contextual. Mas o nome está lá na lista negra, que não existe só como força de expressão.

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