Para fazer uma analogia no meio de uma conversa um tanto descompromissada, lembrei de um cientista dizendo que as afirmações de OVNIs têm seu fundamento argumentativo na ignorância: "Olha lá! O que é aquilo? Não faço ideia do que seja, só pode ser um alienígena de outra galáxia querendo isso e aquilo!" Ele também ressaltava o aspecto "não identificado" da sigla, concluindo que as opiniões dessas pessoas deveriam terminar no "não faço ideia," em vez de se partir daí para uma "conclusão".
Essa minha amiga é particularmente apegada a duas coisas: ideais alternativas sobre a realidade (formas de se construir o mundo além do racional-metódico-matemático, ou seja, ela é um tanto relativista) e apegar-se a analogias para as discutir em vez de seguir a conversa aproveitando apenas aquilo que se aplica ao verdadeiro assunto. Portanto ela pulou com tudo sobre a minha analogia para afirmar que outras formas de se entender o mundo, no caso, a crendice popular (não usou esse termo) tinha dignidade a ser respeitada. Eu contra-argumentei que a questão não era se havia diferentes formas de se ver o mundo, ou que algumas delas sejam suficientes, interessantes ou bonitas conforme o local em que nos colocamos; o problema apontado pelo físico era que, no momento em que uma forma de conhecimento não científica é afirmada como verdade científica (caso exato da cultura acerca de OVNIs em revistas e diversos grupos) tem-se uma enorme catástrofe de conhecimento.
Agora, devo dizer que essa valorização da minha amiga me parece bem mais comum do que aparenta. A enorme maioria das pessoas que conheço (ela incluída) não acredita em OVNIs. Daí a dizer que essas pessoas ou eu não acreditamos em coisas sem fundamento científico é bem diferente. Como disse, até aí tudo bem, desde que não afirmemos essas posições como verdades práticas absolutas, mas é o que geralmente fazemos. Existem coisas que a ciência não explica, mas a maioria de nossa ignorância poderia ser resolvida por uma boa ciência, dura ou humana. Quando se diz que algo é cultural ou genético, quando se diz que determinados costumes são bons para o cérebro ou para o corpo, quando se afirma uma série de coisas sobre religiões (ou sobre o mundo com base em religiões), todo o mundo fala como se dissesse algo com o mesmo status de verdade que a gravidade.
Como não conseguimos vencer todos os nossos preconceitos, estudar todas as áreas de conhecimento ou atentar para tudo que existe no mundo com o mesmo nível de dedicação, cuidado e sutileza (como a maioria dos seres humanos é capaz de muito pouca sutileza), geralmente aceitamos que existe um grau de ignorância aceitável, desde que a pessoa não tome posições fortes nas áreas que ignora. Existem apenas alguns problemas nessa aceitação: o que não entendemos é a enorme maioria dos aspectos de nossa vida, de fato tomamos posições fortes nas coisas que não entendemos e ninguém é capaz de determinar até onde a ignorância pode ser inofensiva. Quanta política, economia, educação, engenharia, biologia, geografia, história ou o que for podemos não entender sem que nossas decisões baseadas em tal ignorância sejam graves? Acaba-se em geral elencando autoridades midiáticas de nossa preferência, o que pode também ser bastante desastroso.
Há uma discussão muito em voga atualmente que transita por esse problema: quão preconceituoso alguém pode ser sem que isso afete os alvos de tal preconceito? O quanto se pode confiar que uma pessoa preconceituosa vá respeitar a liberdade de pessoas agirem contra suas crenças na mesma medida em que espera que suas crenças preconceituosas sejam respeitadas como liberdade?
O problema, em todos os casos, envolve curiosamente questões estéticas: há tanto um problema de quão bonito se quer que o mundo seja (ou seja, qual o ponto de conforto que nossa ignorância nos garante) e quão bonita é a expressão de uma cultura que entende mal o mundo (ou seja, o quanto devemos valorizar uma cultura, aceitá-la em sua vida e produção, mesmo que saibamos que suas crenças são infundadas). Nada indica que um conhecimento mais profundo do mundo poderá servir também como uma base igualmente confortável quanta nossa posição primeira. Um dos aspectos em que ignorance is bliss. A maioria das pessoas não quer o conhecimento se ele ameaçar um grave caso de pânico ou depressão. Do meu ponto de vista, ignorar o conhecimento por esse medo já é viver em pânico, um que está anestesiado pela auto-afirmação de nossa certeza no que desconfiamos que possa não ser verdade.
Por exemplo, parte das idealizações de Nietzsche a respeito dos gregos foi justamente assumir que eles eram superficiais por opção. Que eles "entenderam" que não havia uma experiência transcendente real, uma existência metafísica que negasse o mundo, de modo que sua religião, cultura e filosofia se posicionavam na parte bela e incrível da existência sem mencionar o extremo vazio que a subjaz. Não havendo nada de transcendente, os gregos "optaram" pelo estético, pela aparência, pela vida como ela se lhes apresentava, em vez de sonhar com um pós-vida maravilhoso e estável ou com deuses puramente perfeitos e imateriais.
A ideia do Nietzsche parece mais absurda se não conferimos o quanto pessoas que mentem para si indicam saber que o fazem, se forçamos um pouco. No mínimo, sabem que não questionam determinadas coisas por medo. Idealizações à parte, existe uma coisa que Nietzsche defendeu e que sempre me pareceu também uma conclusão necessária, algo que indica o problema em tudo isso: é preciso se ir até o ponto de que não há retorno.
Do meu ponto de vista, a ingorância sempre pode ser nociva. O conhecimento carrega consigo uma ética necessária: o constante desenvolvimento do que se sabe. Por mais bonita que nossa fantasia sobre a vida possa ser, e por mais que o esquecimento seja importante para a nossa vida como animais, não consigo aceitar que o desconhecimento seja aceito como um valor com o mesmo peso que o próprio conhecimento - que é o que se está fazendo quando se diz que um grupo pode desenvolver sua explicação para um fenômeno baseado em suas crenças, sem que se busque explicações lógicas para o mesmo fenômeno, e que tal confusão não pode ser questionada. É verdade que as mitologias, que as identidades nacionais ou etnológicas ou que outras construções sobre a vida possam ser agradáveis ou bonitas, mas no fim ainda se está optando pela ignorância. Ainda se está defendendo, noutros casos, que um grupo saiba menos do que aqueles que "valorizam" aquela determinada cultura.
O próprio conhecimento sofre com isso também, pois sua evolução depende de trânsito e de trocas. Todo grupo "aceito" em suas crenças é um grupo que deixa de contribuir. De nada adianta que mais cedo ou mais tarde se conclua que uma anedota perdida lá no meio daquela cultura era superficialmente "verdadeira" (por exemplo, se associar a possibilidade de que a primeira vida na Terra tenha se gerado em poças no barro com o mito de Adão ser formado do barro). Seria como dizer que um esquizofrênico é dono de verdade científica já que a unidade de nossa personalidade é uma ilusão construída cerebralmente.
Não podemos atacar tudo que não sabemos ao mesmo tempo. Mas, mais cedo ou mais tarde, fica gritante demais, para mim, que a valorização de qualquer afirmação sobre a realidade acaba sendo a escolha entre se apoiar o conhecimento ou a ignorância. Até que ponto podemos e devemos acatar ou defender a ignorância só porque ela nos agrada?
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