sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Frio auto-sustentável

Por indicação da Leo, autora desse blog, eu publico aqui uma crônica do David Coimbra. Em seguida ao texto, comento. Aqui vai:

Aqui não faz frio

Nós aqui da Zero Hora, nós somos um jornal eternamente perplexo com nosso próprio clima. A chuva que se derrama de baldes e flagela as populações ribeirinhas, o vento que arranca árvores pela raiz e as atira sobre Fuscas, a canícula que faz Batistas desfalecerem, qualquer intempérie vale manchete. Muito conveniente. Assim, sempre temos chamada de capa, mesmo que nada aconteça em todo o Rio Grande amado.
Mas, ao contrário do que eventuais críticos possam pensar, essa característica é um predicado do jornal. Demonstra que o veículo está em harmonia com seu público. Pois o gaúcho é um ser eternamente perplexo com o clima do seu próprio Estado. Mais até: o gaúcho orgulha-se dos supostos rigores do tempo no Rio Grande do Sul.
Alguns campeonatos atrás, o Maurício Saraiva, ele com sua alma carioca, foi cobrir um jogo em Caxias. Fazia frio. Em meio à partida, o serviço de som anunciou:
– Neste momento, zero grau!
As arquibancadas tremeram. A torcida comemorou a temperatura como se fosse um gol.
Só que tem o seguinte: não faz tanto frio assim no Rio Grande do Sul. Todos os países da Velha Europa e da América do Norte; o Japão e a China; a Rússia, que até é defendida pelo seu General Inverno; a Argentina; o Uruguai; o Chile; todos esses e mais tantos outros são mais frios do que o Rio Grande do Sul. Nossas temperaturas raro baixam do zero e só de vez em quando se erguem acima dos 40 graus. Dois meses de inverno, dois meses de verão, oito meses de suavidade. Já passei mais calor em Viena, já passei mais frio na África. O clima, aqui, é ameno como um beijo na testa.
E ainda assim o gaúcho estufa o peito para falar das temperaturas baixas que fazem no seu Estado. Agora mesmo a neve rala que se precipitou na Serra fez estremecer o Rio Grande, mas não de frio: de brio. O que diz muito sobre a personalidade do gaúcho: o gaúcho se gosta, e se gosta tanto que se ufana do frio que sente. Ainda que não seja tão frio assim.
É bonito isso. E bom, que é bom gostar de si mesmo.
Vale manchete.
No Rio Grande do Sul não faz frio.
No Rio Grande do Sul SENTE-SE frio.
Como o inverno gaúcho dura poucas semanas, os construtores acham que não vale a pena instalar calefação nas casas, nos prédios, em lugar nenhum. Desta forma, o gaúcho suporta sentir frio por alguns dias em troca de alguns caraminguás. Por economia. Então, chega o inverno, a temperatura cai um tantinho e as pessoas não têm para onde fugir. A saída é vestir-se como um mendigo: camiseta, camisa, blusão, casaco, outro casaco, manta, touca, tudo superposto.
O que é isso?
É a tal “estética do frio”, que dizem que existe por aqui. Estética do frio num lugar em que não faz frio, mas onde as pessoas sofrem com o frio. O Rio Grande amado é diferente de tudo mesmo.


Comentários:
  1. No cerne da questão, como a Leo, concordo, mas sou muito chato para não falar mais umas coisinhas.
  2. Digamos que eu não sou gaúcho, conforme os critérios dele, porque odeio as pessoas comentando o clima, seja para reclamar do presente ou do passado ("Tá bom hoje, mas a semana passada tava horrível!"). Jamais comemoraria fosse quem fosse lendo o termômetro, diga-se de passagem.
  3. Por isso mesmo, eu sou o primeiro a falar mal sobre tempo virar notícia, mas a última neve não foi manchete pelos motivos tradicionais (sejam quais forem, não imagino como um editor os justifica), mas porque representa uma mudança climática mesmo conforme os registros pouco espalhafatosos ou sensacionalistas. Além disso, como nunca "nada acontece" no "Rio Grande amado", acho especialmente irritante usarem clima tanto como notícia de capa, seja Zero Hora ou quem for, como pode atestar qualquer pessoa que leia este blog há um mínimo de tempo.
  4. O clima aqui não é ameno, ao menos não em Porto Alegre. Nosso clima é instável. Sempre variando. O estranho é quando só faz frio, ou só faz calor. Como não está mudando, vamos sentindo mais e mais o frio (ou o calor) e nos impressionando com ele, já que começamos a achar que é tudo o que faz na Terra. Acostumados a mudar da noite para o dia, é-nos estranhos o clima monolítico, daí uma grande sensação de frio, ou de calor. Como o calor caracteriza o Brasil, enfatizamos o frio. 
  5. Claro que a "estética do frio" vem de sofrermos de frio, independentemente do termômetro! Cultura é isso: o que sentimos e achamos, não uma representação fiel dos fatos - especialmente, aliás, se não for fiel aos fatos! E esse "querer ser" é uma das grandes características de nossa cultura. Queremos ser herdeiros de revoltosos, guerreiros honrados e corajosos criados por nossa imaginação contra infinitas provas, tanto que até Porto Alegre comemora os Farrapos, ainda que a cidade tenha sido condecorada por ter resistido a eles; queremos ser culturais ainda que não tenhamos motivos para nos crer mais interessados na cultura que nossos vizinhos (os brasileiros), tirando nossa eterna vontade de ter interesse em cultura (e agir, sempre, para tentar gerar essa tal vida cultural que nos caracterizaria); queremos sentir frio, e sentimos. E se a Europa ou a África têm lugar mais gelado que aqui, azar o deles, as regiões geladas deles, ainda que tenham as temperaturas insuportavelmente baixas, não estão no Rio Grande do Sul. Temos o nosso frio, é o que basta!

Um comentário:

Carla M. disse...

Adoro esse nosso ufanismo regional, nos orgulhamos até do frio. Diria que nos orgulhamos por sobreviver a cada uma das horrorosas variações de temperatura que destroem com a saúde de qualquer ser humano, aff!
Enfim, identidades são coisas especiais e únicas...