No penúltimo post, mencionei o assassinato de uma professora na saída da escola, fato ocorrido muito perto da minha casa. Para minha surpresa, fiquei sabendo pelo jornal que o tiro que ela recebeu foi na cabeça, não no tronco, como parecia para mim e para outras pessoas que passavam no momento (ela ficou meio consciente caída sobre o próprio corpo, com a cabeça escorada no volante, o que confundia de onde viera o sangue espalhado).
Não é o alvo do tiro que me surpreende, mas o fato de ter ficado sabendo disso pelo jornal. A morte virou capa do Diário Gaúcho (voltado às classes D e E, segundo eles próprios), dizem que apareceu no Correio do Povo também (apesar de que não pude olhar essa edição) e conseguiu ser noticiado no pé da primeira página da Zero Hora. Como, que eu lembre, já comentei aqui no blog, mortes no meu bairro só são noticiadas em bloco: perseguições que terminem por aqui, com mortos e feridos de ambos os lados, noite de ajuste de contas (em que uns 2 ou 3 vão em umas sete casas apagar seus donos, imagina-se, em geral, por quê), além, é claro, do saldo de mortes, "tantos assassinatos ocorreram neste ano apenas no Leopoldina [ou no Rubem Berta]."
Sabemos muito sobre o bairro pelo mero boca-a-boca, eficiente e vital. Não sei se é pela gravidade dos ocorridos ou dos alertas, mas nunca descobri que algo no bairro era boato ou lenda. Quando, por acaso, soube de uma prova cabal a respeito de uma dessas notícias, sempre descobria que o que eu ouvira era verdade ou que, de fato, a coisa tinha sido pior. Mesmo assim, zero no jornal. Parece que nem mesmo a ameaça ou a prisão de estupradores consegue virar notícia aqui.
Agora a professora ganha os jornais. Por quê? A mulher não tinha particular importância no bairro. Os assaltantes eram ex-alunos, mas não é dizer nada. Ou se estuda naquela escola ou numa outra mais adiante, se se depende do ensino público.
Minha namorada levantou a hipótese de a notícia ser resultado do espírito tradicionalmente caritativo que se imagina atrelado à profissão. Bem provável. Somo a isso o poder dessa notícia de ganhar sinergia com as matérias sobre violência na escola, apesar de que isso é uma distorção do ocorrido, pois, como falei, sua morte não teve a ver com a relação professor-aluno. Então este sensacionalismo (no sentido light) se subordina àquele mito, de que o professor é um mártir que sofre com o total descaso da sociedade, particularmente dos alunos. Ou seja, o que fez do assassinato notícia é pura aparência: os ex-alunos não a mataram como alunos atacando uma professora, mas como cidadãos desse bairro rico de uma cultura de violência; a professora não era uma santa como se quer sobre a profissão, mas uma pessoa que, por todas as curvas típicas, que envolvem muito seus interesses pessoais, foi trabalhar no ensino público; a morte se deu na saída da escola e não fala sobre a violência na escola. Mas, "when the myth becomes fact, print the myth", então, ainda que o mito possa apenas colorir o fato...
Ao que tudo indica, a santidade fictícia da ação pedagógica comprou espaço na mídia para uma violência que, por tradição, atinge apenas gente com quem ninguém se importa, no sentido mesmo de gente que não consegue nem evocar empatia humanista. Mas passa: mais um dia, mais um jornal, e a guerra continua.
2 comentários:
bah, pelo outro post eu não tinha entendido que ela tinha sido necessariamente assassinada.
e viu, foi no Baltazar, né?
foi, sim
E eu não sabia se ela tinha morrido depois. O tiro não matou direto. Só fiquei sabendo quando vi no jornal, no sábado.
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