A grande vantagem de palavras como verdade, ética, respeito, direitos e deveres é que elas servem para defender absolutamente qualquer coisa, do Anarquismo ao Fascismo, do silêncio às passeatas, do pacifismo à guerra. E, como somos seres que mais sonhamos em ser racionais do que realmente somos, tais termos servem a uma guerra retórica infinita, geralmente redundante e, por isso mesmo, paralisante.
Tenho a impressão de que a semana que findou ontem foi particularmente ilustrativa para meus alunos a esse respeito. Alguns professores que trabalham comigo me acompanharam numa reunião com uma série de pessoas hierarquicamente superiores para defendermos, entre outras coisas, que mostrar um documento oficial para alunos adultos nada tem de anti-ético. Aparentemente envergonhados de terem escrito esse documento de forma distorcida, em partes de forma bem violenta, foi a nossa ação de respeito pelo que entendíamos serem direitos dos alunos que resultou na ação taxada de "anti-ética".
Trouxemos aos alunos o resultado da discussão. Parte do resultado foi conseguirmos finalmente afastar um dos funcionários que trabalhava conosco. Nesse caso, ele faltar com muitos de seus deveres e abusar ao longo de meses de direitos ambíguos fez com que a responsabilidade por determinados acidentes caíssem sobre os alunos, sobre o que também discutimos nessa reunião, buscando contestar a "verdade" apresentada no documento citado acima.
Junto de tudo isso, trouxemos a notícia de que perderiam alguns professores (por outros motivos, não por tudo que fora discutido sobre o documento difamatório). Em relação à perda de professores, os alunos estariam praticamente impotentes. Ao contrário do que acreditam os que idealizaram o programa de educação do qual fazem parte, porém, esses alunos não precisam "aprender" a exigir seus direitos. Não ficaram nem um pouco dispostos a aceitar essa "impotência" que lhes foi apresentada como única opção. Estavam decididos a reclamar e pressionar de todo modo para conseguir o que queriam numa grande reunião de todas as escolas que aconteceria na sexta-feira. A forma escolhida foi o abaixo assinado, apesar de que o plano ia para bem além, conforme cada medida não trouxesse o resultado esperado.
A reunião de sexta, clímax da semana, exige certas explicações preliminares. Para fazer o máximo de uma verba mais curta, para fazer um "H" sabe-se lá com quem, para reunir os professores todos num mesmo lugar na noite em que obrigatoriamente nos anunciariam uma série de decisões fundamentais já para o funcionamento das aulas na semana seguinte e para atingir outros objetivos que com certeza me escapam, fomos colocados todos num prédio público em que palestrariam duas estrangeiras, uma de nome que todos entenderam como "Tique Vicioso" (falou sobre crack) e uma descendente do Zapata (que fez Zapata arrancar o bigode no túmulo com as ideias que defendeu).
Basicamente, elas falaram sobre juventude, direitos e deveres. A primeira falou em espanhol claro, o que possibilitou que dispensássemos a péssima tradutora convidada. Suas afirmações sobre as consequências políticas do tráfico até que foram pertinentes. A segunda, em espanhol bem menos acessível, cometeu o clássico erro de supor a total apatia de seu público apenas porque vinham de famílias pobres e sem ensino fundamental completo. Pregou a livre-iniciativa (com outros nomes) e que não se esperasse a ajuda do Estado, isso para pessoas que vivem tão distantes do Estado que reconhecem antes o paralelo que o oficial! Qual deles teria sobrevivido para além dos 18 anos só esperando o governo?
Seja como for, nossos alunos estavam descontentes, mas outros, de outras escolas, tinham ainda mais motivos para se irritar com uma reunião semi-midiática dessas. Alunos que passaram por maus bocados ainda piores aproveitaram o momento de manifestação (perguntas e comentários) e se levantaram com cartazes, narizes de palhaço e críticas ferozes, certeiras, sem nem mesmo apelarem a palavras de ordem. Foi pior que uma manifestação arruaceira, foi um ataque sincero na jugular dos administradores presentes.
A representação do programa se defendeu bem: retórica eficiente e tentativas boas de controle da situação. Como as convidadas reagiram, as convidadas que vieram falar a esses jovens como eles deveriam viver, quais eram os problemas da vida deles, que eles deveriam exercer seus direitos e tomar as rédeas de seus destinos com as próprias mãos? Disseram que aquele não era o momento para se manifestarem. Vieram com o papo (que já quase virou lei em Porto Alegre, há um ano atrás) de que há momentos para as pessoas exigirem aquilo que lhes falta, ainda que todos os meios civilizados e legais tenham sido esgotados. Enquanto aqueles alunos entendiam que tinham cumprido seus deveres e que os responsáveis pelo programa não tinham cumprido os deles, que sofriam com um descaso contra o qual tinham o direito de reclamar (e não há forma de reclamar sem causar incomodação, pelo contrário, a incomodação é a chave do poder da reclamação), as estrangeiras se insultavam com uma manifestação que se baseava nos mesmos princípios que elas evocaram poucos minutos antes. Os mesmos princípios, mas lidos de outra forma (nem tão distante assim), ou seja, conforme a interpretação dos próprios alunos, essas pessoas que são colocadas em programas que priorizam o desenvolvimento de cidadania, criticidade e autonomia interpretativa, mas que institucionalmente lhes negam tudo isso a cada passo, a menos que mediada docemente por alguém "de cima", nem que sejam os professores.
Verdade, ética, respeito, direitos e deveres, tudo isso é muito maleável. O maior problema, na prática, é que quem não costuma ter o microfone para falar também tem a sua interpretação para cada um desses idolatrados termos.
Um comentário:
Engraçado que a livre a iniciativa só é tolerável se abrir mão do Estado.
E, claro, ao fim a culpa será dos professores (agentes do Estado) que não foram suficientemente eficientes em castrar as inciativas "errôneas" daqueles "seres manipuláveis". Tsc, tsc, tsc!
Postar um comentário