Um chato chamado Marcos Bagno transformou há algum tempo um problema real em bandeira militante -moralista. Bem por isso ele é chato, aliás: porque tornou algo que é atualmente tanto intuitivo quanto embasado em pesquisa num esquema com regrinhas postas de forma simplificada e com linguajar "combativo". Ou seja, traduziu a questão em bandeira política no sentido mais superficial e repetitivo da coisa. E desde então ele só disse isso, ou ao menos só isso mereceu grande destaque.
Bom, por mais chato que ele seja, a bandeira é legítima, ou pelo menos a informação que lhe dá base: (1) existe a Norma Culta, uma forma de falar, errada conforme a gramática normativa, que é característica da classe alta (como categoria bem ampla, que inclui quase todo o mundo que estuda em escolas particulares, por exemplo); (2) apesar de errada, essa forma é considerada correta por tal classe - que conhece a gramática tão mal quanto qualquer ser vivo - já que todos eles, incluindo o pessoal que fala na TV, comete mais ou menos os mesmos "erros" ou tem mais ou menos os mesmos "vícios de linguagem"; (3) essa forma é considerada a correta pelo senso comum, de tal modo que muitas dessas pessoas acreditam piamente que falam "correto" (i.e., iludem-se que falam conforme a gramática, o que é um segundo erro porque ela não tem a função de descrever a forma correta de falar); (4) esse falar "correto" é usado para ridicularizar o que dizem pessoas que não compartilham da mesma Norma Culta (ou seja, em geral pessoas mais pobres, falantes de dialetos diferentes...), invalidando-os politicamente - as pessoas ficam sem dignidade para falar pública ou politicamente por falarem diferente da classe social mais alta, sofrendo assim o chamado "preconceito linguístico". Elas são tratadas como burras e inválidas socialmente porque sua forma de falar indicaria pior formação escolar ou pobreza, ambos podendo denotar burrice ou ignorância quase plena.
Simplificando: gente que fala errado e tem mais formação e/ou dinheiro se entende, além de dominar meios culturais e políticos há mais tempo. Quando gente de fora desse grupo quer se meter no bolo, são calados politicamente já pela forma como falam. "Não podem ter nada a dizer" porque cometem erros diferentes daqueles que cometem os que estão há mais tempo por cima.
Bom, esquerdistas e pobres são aliados comuns: os primeiros querem mudar os problemas do mundo (independente do que identifiquem como problemas) para ontem, assim como os últimos precisam mudar os problemas do mundo para ontem! Se a esquerda quer MESMO o bem dos pobres não interessa para essa questão: o discurso deles se afina muito facilmente. Por isso mesmo, muita gente pobre vem aliada à dita esquerda brasileira há muito tempo, e vários deles chegaram a cargos políticos de bastante destaque recentemente. Só a terrível asneira brasileira chamada de CCs já potencializou muito esse movimento.
Resultado? A esquerda passou a sofrer muito mais o chamado preconceito linguístico. E não estou falando isso porque acho que se deva escrever de qualquer forma, ou que estudo não tenha valor. Acredito que meu blog indica claramente que dou bola para a linguagem (apesar de não da forma mágica que os fetichistas do corretismo dão). O que aconteceu foi que a brincadeira de chamar a esquerda de progreçista, que podia passar uma vez ou outra, em certos contextos, passou a ser (1) generalizada e (2) centro da discussão. Não é questão mais hoje se Lula valoriza a educação ou a cultura. Não é mais o debate se o ensino melhorou ou não com o governo do PT. Agora o problema é que um sociólogo escreveu uma coisa com Z, um ministro fez uma citação errada e o diabo a quatro - amigos, os textos da direita, para todos os lados, têm erros gramaticais dos mais variados, INCLUINDO problemas ortográficos em palavras bem comuns, como "fase" ou "desce", para não entrar em problemas sintáticos.
É óbvio que o Tiririca ajudou a situação a se agravar. Votado por 1.353.820 eleitores, mas respeitado por 4,5 pessoas, o sujeito vira notícia sempre que abre a boca. Mas o foco que se está dando para a forma do que é dito deixou há muito de considerar, ou mesmo mencionar, o que é dito. Mais ainda, toda bobagem dita pela esquerda passou a ser indicada como "bobagem" por erros ortográficos propositais da direita, indicando nesse combo como "eles" são ignorantes, burros, desnecessários ou até perigosos com sua "imbecilidade infecciosa", pronta a "tomar o Brasil" - tudo isso por uma indicação gramatical. Ou seja, depois de Marcos Bagno ter sofrido chacota a ponto de ser esquecido, temo dizer que agora parece merecer um revival. O que a direita (da micropolítica do dia-a-dia) tem cotidianamente feito basicamente é dizer que a esquerda fala errado e que isso é suficiente para descartar completamente o que tenha a dizer, é voltar a usar a forma de falar como estigma social e político. Aliás, mais do que isso, a direita (cotidiana) tem feito o esforço de incluir TODA a esquerda naquela esquerda que não veio da classe alta e naquela que tem pouco ou nenhum estudo, e com isso tem aplicado o preconceito linguístico para a esquerda toda. Um professor universitário comete um erro de português?! "SOCORRO! ACUDAM! PARA O MUNDO QUE EU QUERO DESCER!" Por favor...
Indigna de falar, ignorante por essência e intrinsicamente burra, a esquerda seria hoje uma trepadeira de cargos que compra votos com Bolsa Família e ri de quem estuda e trabalha - ah, sim, e que quer que o mundo todo seja gay e aborte (observe-se quanta mistura numa mesma suposta bandeira). Só que, empobrecendo a crítica que faz à esquerda, a direita se invalida também. Quando só o que tem a dizer são simplismos preconceituosos e mal informados, a direita não se apresenta como opção em relação à esquerda (mantendo aqui a oposição esquerda-direita porque é nela que vive a oposição ao governo petista).
Um ateu contrário ao ateísmo militante comentou numa palestra que esses ateus militantes em parte desrespeitavam a religião porque nunca tinham sido confrontados por uma teologia que estivesse à altura de uma análise crítica. Conhecendo só uma religião burra e mesquinha, não era difícil para eles descartar tudo como baboseira, charlatanismo e ilusão. Algo muito semelhante ocorre hoje na política brasileira. Se os petistas tendem a governar o povo como se tratassem com crianças, completamente despreocupados com o que dizem (confortáveis demais no poder há já algum tempo) e preparados para tentar impor suas vontades sempre que a oposição deixar, esta tende a ser igualmente burra na resposta, não passando da primeira linha do que o governo tenha a dizer e discutindo antes a vírgula que a frase, antes a escorregada lexical que o texto. De comentário engraçado no bar, o purismo linguístico virou argumento de ciência política.
Estudar e melhorar é importante, mas purismos histéricos como "estão maculando a língua nacional/portuguesa/brasileira" são asneiras que só servem para desmerecer, para o leitor ou ouvinte, aquilo que esses supostos paladinos da língua não têm a capacidade (ou a vontade) de discutir objetivamente. A questão é, em Norma Culta ou não, vocês, leitores, têm algo MELHOR a dizer? Vocês são capazes de colocar isso em prática? Vocês têm algo a acrescentar? Vocês conseguem separar o joio do trigo das medidas governamentais ou oposicionistas e apoiar o que presta dentro do que não presta, ou distorcer o que não presta (no papel) em algo que presta (no mundo real)? Vocês conseguem diferenciar ideais, partidos, coalizões e indivíduos do sistema em que se inserem? Vocês conseguem ver que o mundo é complexo, e que não é porque o PT e a "oposição" nos tratam como crianças que nossas mentes precisam funcionar nesse nível intelectual?
2 comentários:
Com relação aos comentários iniciais sobre Marcos Bagno e sobre a norma culta:
Bagno apresenta a origem do preconceito linguístico na existência, não de uma norma culta, mas de uma “normal padrão”. Mais especificamente, não da norma padrão em si, mas do fato de que a norma padrão seria muito diferente do português brasileiro, digamos, “normal”, cotidiano.
E em muitos momentos ele defende que se altere o conteúdo da norma padrão para refletir mais adequamente a “realidade linguística brasileira”. A proposta dele é que a norma padrão fosse mais parecida com a norma... culta, identificada pelas pesquisas sociolinguísticas!
Ora, isso significa exatamente que a norma padrão deve deixar de ser a “língua” dos (grandes) escritores para passar a ser a línguas dos grandes burgueses. Como é que isso iria acabar com o preconceito linguístico?
Sim, mas isso só é problema porque o considerado "correto" está na culta, não na padrão. E não vim defender a tese dele, por isso eu fiz aquele comentário entre vírgulas logo no início(dizendo que a informação que lhe dá base, não a bandeira dele, é o que é legítimo).
A teoria que genericamente serve de base para a tese dele é que eu tentei expressar ali no segundo parágrafo. A bandeira particular dele que se rale. Mas a produtividade do preconceito linguístico hj bem poderia promover um revival do Bagno. Minha incomodação é diferente da dele, mas acho difícil não falar em preconceito linguístico sem mencionar o cara, por mais que eu próprio deteste de forma particular a forma como ele vê o assunto e os reclames que agregou ao que falei de Norma Culta.
Marcos me interessa neste post mais como uma ferramenta terrorista: melhoremos o nível da dicussão ou "ele voltará"!
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