quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Julgamentos

Expressei por implícito, ontem, não acreditar em Deus, num almoço entre colegas. Imediatamente um teísta veio me dizer (um pouco, bem pouco, perguntando) que é impossível um ateu afirmar uma moral universal por não ter um fundamento metafísico para sua conduta. Eu disse qual era a minha postura a respeito e parece que satisfiz suas dúvidas. Mesmo assim, foi irônico no dia seguinte ver o pastor Terry Jones administrando sua ignorância moralista ao aprontar mais uma das suas.

8 comentários:

Clark disse...

A tese do seu amigo é que, para uma pessoa SER moral, ela PRECISA acreditar em Deus?

Tigre disse...

Sim, no sentido de que toda moral pode ser relativizada sem Deus. A pessoa pode então até ser moral em seus atos, mas não por coerência a um código ou um norte moral. O que significa que ela pode romper essa moral sem a menor vergonha ou dúvida quando assim o desejar.

Clark disse...

Hummm.

É que o argumento da moral não é exatamente esse. Não é que haja uma necessidade de a própria pessoa acreditar em Deus para ser moral. É quase o inverso: o ser humano (crente ou ateu) é moral justamente por causa de Deus.

É possível, para qualquer ser humano, reconhecer que há valores morais objetivos. Há coisas que são objetivamente boas e outras que são objetivamente más, quer a pessoa creia em Deus ou não.

Mas simplesmente não existe nenhum motivo social, fisico-químico ou biológico para essa objetividade da moral. Átomos e galáxias não são morais nem imorais, mas amorais. A única explicação possível para a existência objetividade da moral (acessível a qualquer pessoa) é que ela seja independente de átomos e estrelas, que seja independente da matéria, portanto provinda de Deus.

Não é algo do tipo “acredite em Deus para ter uma desculpa para manter sua moral”, mas “não importa se você acredite em Deus ou não, Ele é que é a fonte que torna os teus princípios morais possíveis”.

Na verdade, se pessoa precisasse ir para a igreja para perceber que há coisas moralmente boas e outras más, esse seria um bom argumento CONTRA a existência de Deus.

Tigre disse...

Pela lógica dele, existem (suponho eu) pelo menos dois comentários possíveis a essa tua consideração. 1 - Como assim objetivo? Mesmo que haja uma tendência moral nas pessoas, ela só pode ser afirmada como subjetiva, pois sentida e experimentada pessoalmente. Se as pessoas sentem coisas parecidas, isso poderia ser base para se construir uma moral, mas tais sentimentos não são em si uma moral, ainda que moralmente inclinados. Usar esse sentimento como base para uma moral exigiria ainda uma referência normatizadora externa, caso contrário seria um código social baseado na concordância de muitas subjetividades e, por isso mesmo, não universal.

Agora, se fosse constatado que todos os seres humanos concordam instintivamente com algum preceito básico, esse preceito não dependeria de Deus para ser afirmado. Bastaria dizer exatamente isso: que é da natureza do ser humano não se aceitar tal coisa.

2 - Dizer que Deus "é a fonte que torna os teus princípios morais possíveis" é fundar a moral em Deus, e essa afirmação não pode ser sustentada sem a crença em Deus, ainda que possa ser estendida por quem crê para quem não crê. Ainda assim, alguém que não acreditasse em Deus perderia imediatamente essa base e teria de encontrar "outra" ou não poderia afirmar tal moral.

Clark disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Clark disse...

Primeiro, por isso o argumento é posto na condicional. “Se” existe um "bom" e "mau" que são independentes da mera convenção social arbitrária/utilitária, deve haver uma causa para isso que esteja fora do social e do material. Mas “se” "bom" e "mau" são conceitos arbitrários, reversíveis e sem valor em si mesmo, então perde-se o argumento para uma causa não-material para esses valores.

Segundo, note que chamar o nosso instinto/senso moral de “natureza humana” é apenas dar um nome para isso, não é explicá-lo. Ainda é necessário tentar identificar a origem desse senso moral, que dificilmente pode ser consequência de mero agrupamento de átomos.

Há várias tentativas de derivar certos nortes morais de contingências biológicas relacionadas à evolução, como o senso de solidariedade, ligado a necessidades de auto-preservação, sobrevivência e reprodução (como vemos em House). Mas existem vários aspectos morais que não só não se encaixam no esquema puramente biológico, mas o contrariam totalmente. O que há de errado com o estupro? É só uma forma de atender a instintos biológicos, é inclusive uma forma de reprodução... Mas não é preciso um livro preto escrito há dois mil anos para nos dizer que há algo de errado com isso.

Terceiro, a idéia de que é preciso acreditar em Deus para sermos morais pressuporia que nós não tivéssemos um instinto moral como parte do nosso aparato cognitivo (= "alma") e, por isso, dependeríamos das ordens dadas por algum sacerdote, em quem teríamos que confiar inteiramente, sem nenhuma forma de julgar o que ele nos mandasse fazer... Se a realidade fosse assim (a ausência de qualquer senso moral em nossa própria consciência), isso sim poderia ser um bom argumento para inexistência de Deus...

O argumento que defende a existência de Deus com base na moral não é uma busca de uma legitimação (uma DESCULPA eficiente) para a moral. É, antes de mais nada, uma hipótese para EXPLICAR a origem desse senso moral que nós já temos. De qual causa imaterial e independente da convenção social, esse senso vem? A legitimação dessa moral é um aspecto independente, que pode até mesmo ser posterior.

Nesse sentido, não é preciso acreditar em Deus para PASSAR a agir moralmente. A hipótese é uma forma de justificar esse senso moral que já temos.

(Poderíamos também acrescentar o exemplo do budismo, que não é uma religião teísta, não tem nenhuma preocupação com um deus criador, mas ainda assim crê que a moralidade é algo acima da mera convenção social útil)

Quarto. Não creio que haja uma relação tão direta entre não acreditar em Deus e, por consequência, jogar fora nosso senso moral. A pessoa que não crê em Deus simplesmente desconecta a legitimidade desse senso moral da idéia de Deus e (i) ou não pensa sobre a justificativa para esse senso (ii) ou atribui a esse senso outros tipos de justificativa.

Quinto. Por outro lado, simplesmente crer em Deus não é suficiente para achar que a moral “dEle” deva ser seguida. Se a pessoa acha que o nosso senso de moral é só uma imposição ARBITRÁRIA de um deus tirano, ela pode ter ainda mais motivos para rejeitar essa moral. Mesmo a Bíblia tem o mito de Lúcifer, alguém que não somente acreditava, mas SABIA de Deus, mas rejeitou as suas leis, por achá-las mera arbitrariedade injustificada. Não adianta achar que nosso senso moral vem de Deus, se virmos isso como uma imposição ARBITRÁRIA de um deus criador que brinca com dados; é preciso também crer que há identidade biunóvoca entre a vontade de Deus e o que é bom, como já diziam os gregos.

Clark disse...

Sexto. Ao invés de a pessoa deixar de seguir seu instinto moral por não acreditar em Deus, o que me parece ocorrer é exatamente o contrário: que alguém que, de antemão, não queira se submeter a seu instinto moral, justifique isso PASSANDO a negar a existência de Deus e atribuindo a meros fatores sociais que ela já rejeitava anteriormente. Ou seja: não é que a crença em Deus seja necessária como DESCULPA para se comportar moralmente, mas que a CRENÇA na inexistência de Deus pode ser uma DESCULPA para NÃO se comportar moralmente. Assim como a crença de que Deus é injusto possa também ser uma desculpa para justificar o comportamento anti-moral de alguém.

Sétimo. Mas isso tudo diz respeito ao plano individual. Talvez as alegações de seu amigo tenham mais efeito no plano coletivo. A vontade de espalhar para a coletividade que tudo é permitido, que “bom” e “mau”, que “certo” e “errado” são conceitos arbitrários, aleatórios e reversíveis, que não devemos nos arrepender de nada que fizermos etc é exatamente criar uma crença que justifique as pessoas a não darem ouvido ao nosso instinto moral, a resistir à nossa natureza humana. Nesse sentido, acho que ele está certo. Mas novamente, nesse caso, o ataque não é simplesmente à existência de Deus, mas à própria consciência.

Tigre disse...

Pois é, lendo todo o teu comentário eu ficava pensando "tá, mas então ele concorda com o meu amigo, afinal". Mesmo assim, alguns comentários:

O argumento que ele desenvolvia não era que Deus seja uma desculpa para se ser moral, mas que, como tu mesmo indicas, sem Deus, seria necessária uma "desculpa" para a moral universal, no sentido de que algo precisaria explicar essa moral universalmente. Esse papel já está preenchido por Deus, para quem acredita nele, mas meu amigo NÃO afirmava que fosse PARA CUMPRIR ESSE PAPEL que se acredita nele. São duas coisas diferentes, ainda que pareçam se cruzar porque a desculpa entraria num lugar que Deus já ocupa (no sentindo de que ele TAMBÉM justifica ou explica a existência duma moral). Só que aí também a desculpa não pode ser "desculpa". Ou ela é uma filosofia, uma religião ou uma explicação científica ou não passa de racionalização. Ou seja, não pode servir de base para uma universalização. Claro que racionalizações podem se disfarçar de filosofia, religião ou ciência.

Agora, o fato de já termos um senso moral inato é algo que está absolutamente em disputa. O problema de basear uma moral nisso, ou dizer que Deus é base desse senso, é que o próprio fato de ser inato não é claro, ou de que esse inatismo não se resuma à proteção (o estupro é tão comum, tão forte e tão recorrente sem mesmo proibição, que é difícil dizer que nossa moral "humana" contra ele não vem do simples fato de que é um ato violento - se desenvolvemos nossa sensibilidade ao sofrimento do outro (o que exige uma cultura que nos eduque a fazê-lo ou um insight que não é universal), uma violência extrema, como tortura, nos emociona mais que uma violência "leve" como furto). A dificuldade do esquema "Deus/moral inata/moral universal" é que as duas bases da última são hiperdifíceis de se defender. E meu amigo não defenderia, pelo que entendi, a possibilidade de se afirmar uma moral inata sem justificativa. Ou seja, se não há um deus, fica complicado afirmar a moral inata pelas provas (a favor ou contra) que temos. Mas posso estar enganado nisso por um detalhe: ele acredita em natureza humana com bastante força, o que inclui certa postura da alma, como dizes. Não sei se a moral inata não entra aí, para ele.

Não leva a mal, mas não vou entrar no mérito da justificativa das pessoas para não acreditar em Deus, negar Deus ou agirem imoralmente. Aí o terreno é fertilíssimo e não acho que a dúvida ou discrédito de Deus tenha tanta responsabilidade no fim das contas, assim como não acho que crer nesse ou naquele deus seja justificativa ou mesmo motivo real para atos imorais ou atrozes. Existem os maus levitas e os bons samaritanos, não?