A pregação constante de que tudo, material ou imaterial, pode ser comprado pelo dinheiro causa uma ilusão que, parando para pensar, seria mais de se esperar numa sociedade que vivesse do escambo: a imagem de que tudo é intercambiável, ou seja, de que dois produtos comprados pelo mesmo preço podem, em algum sentido, equivaler um ao outro. Ainda que a compra de um celular possa custar o mesmo que um cacho de bananas, parece-me que o primeiro não alimenta e o segundo não pode mudar de operadora.
Como o preço de nada brota de alguma característica intrínseca da coisa, mas sim das relações que o produto tem com o mercado, acho bastante natural que o Marx estranhasse tanto que pessoas acreditassem que o preço fosse mesmo o "valor" (de uso) de um objeto, a ponto de ele ficar encafifado o suficiente para escrever um texto do tamanho d'O Capital, mas não me parece natural que a mesma ilusão siga tão importante hoje que permaneça indo além do problema da compra e se estenda às relações humanas. Não que, em outros sentidos, estas sejam um exemplo de racionalidade e proporção, mas não é bizarra a leitura que se faz dos empregos em geral, em que se supõe um possível nível de igualamento transcendente?
Que digo? Que as comparações usuais entre profissões ("se fosse eu, no meu emprego, não podia fazer isso e aquilo que o Fulano - de outra profissão - está fazendo comigo) pressupõem que elas sejam, em algum sentido, intercambiáveis. A comparação pode ser meramente didática e encontrar pontos em comum, mas às vezes se segue a intuição de que, como a banana poderia equivaler ao celular, dois pediatras fazem um otorrino (supondo que o salário dos primeiros seja metade do segundo). O que acho realmente estranho é que, em geral, não apenas o serviço prestado, mas uma infinidade de relações da própria profissão diferenciam-na tanto das outras que seria de se supor que qualquer adulto empregado enxergasse o quanto o seu trabalho é diferente dos outros. Se meu emprego me rende certos riscos de vida, não teria por que pensar que o trabalho de outra pessoa, que não envolve risco específico algum, não gere outro tipo de ética, outro tipo mesmo de profissionalismo. E ainda que seja louvável pensar que todo o mundo deveria ser preciso como um (bom) neurocirurgião, pontual como um (bom) motorista público alemão e responsável como um (bom) piloto espacial, pouco do que aprendemos sobre nossa raça poderia levar a tamanha ingenuidade.
Às vezes eu costumo dizer que seria bom se análise literária tivesse de manter um prédio em pé, para cortar uma série de babaquices infantis que viram trabalhos acadêmicos, mas uma coisa é desabafar algo do tipo e outra coisa é achar que a possibilidade de se ser um aventureiro irresponsável na filosofia da arte (tecnicamente, de uma responsabilidade diferente) não renda lucros a essa área que efetivamente fariam falta se prédios dependessem de nossas teorizações para resistir ao vento. É bom falar coisa com coisa, mas estudar Letras e Engenharia não se equivalem em medidas realistas. Dois professores de Literatura Latina Antiga não equivalem a um engenheiro civil e meio, em nenhum sentido, e cada uma das necessidades dessas áreas trazem vantagens e desvantagens a elas, e por isso mesmo éticas profissionais diferentes.
De tudo isso, porém, o pior é a imagem de empregador que se expressa diariamente quando se usa a frase "Tu é meu empregado" contra profissionais públicos (ou professores privados). Em primeiro lugar, o sujeito acha que todos os empregos são iguais, pois ser "empregado" é usado aí em sentido absolutamente universal. Em segundo, tem-se em mente o "emprego fundamental", infinitamente da base de todos os empregos, pois se tenta tratar, com essa frase, qualquer um como um escravo (um "fundo" das profissões, 1 escravo = carvoeiro, 2 escravos = Bolsa-Família - digamos). Em terceríssimo lugar, confunde-se relação de emprego público com (uma bem abusiva) de emprego privado, pois se pensa que quem trabalha para o Estado é o servo particular de todo mundo (sim, a antítese foi proposital). A mesma confusão se dá, aliás, com propriedade pública, pois se posso quebrar o meu celular (já que é MEU, só MEU), por que não poderia quebrar o desta repartição pública (já que o dinheiro dos MEUS impostos "está pagando por aquele telefone")? Ora, o "capitalista" que essa gente imagina dispõe de seu empregado como bem quiser, e só porque paga o salário do cara. Bem, se "meu imposto paga o salário do cara"...
Tal clichê social nunca parece encontrar alguma frase-irmã que lembrasse às pessoas que seus impostos dependem da colaboração de todos os outros cidadãos e da mediação de profissionais públicos competentes para que algum Estado funcione. Mais alienígena ainda seria lembrá-los de que ser cidadão envolve não apenas direitos, mas deveres, de modo que um funcionário público poderia sim, muito bem, ter de incomodá-los insistindo com determinadas exigências se isso for fundamental para o seu trabalho, o qual tem por fim o bem comum dos cidadãos, o que não é dizer o mesmo que "o bem de cada cidadão, em especial o do que está na minha frente". Pode-se apelar até para o exemplo do professor público, que é contratado pelo Estado para fazer coisas que desagradam não apenas aos alunos, mas, muitas vezes, até aos pais desses alunos. E, contrariando a relação público = privado, o gari não é o faxineiro de ninguém. Além de tudo isso, nem toda variação ética entre a profissão do esparrento cidadão e a do servidor público justifica que este seja desrespeitado, ainda que não se deva aceitar falta de profissionalismo (específico) de ninguém - como disse antes, não estou desconsiderando que certa analogia seja impossível, em determinadas questões, e sei que experiências prévias com funcionários públicos podem nos indispor a priori.
Enfim, a frase-mote deste post envolve alguns preconceitos e algumas confusões preocupantes que, pior ainda, acumulam-se sinergicamente, de forma que acho difícil encontrar o pior aspecto da coisa, mas o problema da confusão do público com uma espécie de privado me parece bem grave, pois tanto indica a dificuldade geral de se pensar o Estado quanto abre portas para que a ilusão do valor de mercado se aplique ao humano, permitindo que se passe diariamente da banana ao otorrino... e a outras confusões desastrosas.
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