Viajar bastante de ônibus garante, entre outras coisas, a experiência dos mais diversos odores urbanos. Dentre estes, destacam-se, é claro, os fedores humanos, mas mais ainda aqueles que, não sendo propriamente humanos, apegam-se à nossa raça de forma aparentemente tão tenaz e dos quais muitas pessoas não fazem questão de se livrar.
Hoje, por exemplo, sentou ao meu lado (para toda a viagem, já que quase sempre vou de fim-da-linha a fim-da-linha, sempre em ônibus lotados) uma jovem fedendo a ração de cachorro. O cheiro primeiramente intrigou meus sentidos, e foi apenas após um minuto de investigação displiscente que me convenci de que realmente o que sentia vinha dela. O odor de ração não é me realmente desagradável, talvez por ter convivido cedo com cachorros, por outro lado o fato simples de vir de um ser humano, formando aquela aura quente tão comum em toda pessoa que fede, tornava-o desagradável, apenas para em seguida meu olfato contra-argumentar que não, não se trata de um cheiro que me seja desagradável.
Do conflito nasceu a luz (como querem os marxistas). Oposição máxima de conceitos reunida no Um (agradável e desagradável em um só cheiro), ironia romântica (confluência de opostos: cheiro que relembra a infância e fedor humano), finalidades sem fim (no sentido kantiano, o cheiro, o contexto, sua emanação, as memórias, tudo parecia apontar para um significado a respeito do qual minha mente racional não era capaz de decidir), apropriação (cheiro de comida canina num ser humano), inserção no cotidiano: estava eu presenciando uma obra de arte pós-moderna. Considerando a cidade cultural em que vivo, era claro ser aquela guria extremamente desagradável aos sentidos (mas tão rica em significado e prenhe, nitidamente, de crítica social) uma prévia da Bienal B. Mais tranquilo por saber que meu nariz era insultado por uma obra de arte (Vênus de Milo está para a Grécia como essa moça está para o Brasil), baixei a cabeça e li até chegar em casa, recorrentemente interrompido pelo odor da arte pós-moderna.
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