Estou novamente redescobrindo Clarice Lispector (não, não é redundância). Ela é dessas autoras canônicas (como Cruz e Sousa, Oswald de Andrade...) odiadas de forma semi-velada por uma massa grande de leitores "informados", que se tornam, por isso, difíceis de ler. Parece que tudo se atravanca no caminho, seus textos tendem a ser adiados ou cortados de cadeiras da Letras, grupos de estudo, análises e assim por diante...
É muito mais fácil, então, Clarice ser lida de forma um tanto mais cotidiana, por fãs ou interessados, até porque cai bem elogiá-la em jornal, quando faz aniversário e tal. Mas isso pouco me interessava porque eu estava envolvido com Letras, não podia fingir ser outro tipo de leitor, nem acho que deva. Além disso, minhas listas A, B e C de leitura estão lotadas de livros, e muitos deles nascem de obrigações. Autores mal-quistos, mesmo que canônicos, tendem a não ser obrigação, ainda que gostemos deles...
Pois bem, acabo de ler um conto que representa bem o valor da autora, no entanto. Trata-se de um dos primeiros, " A Fuga". O que me chamou a atenção em primeiro lugar é que já representa bem muitas das personagens por que ficaria famosa (ou odiada) depois: trata-se de uma mulher que perdeu o navio, literal e simbolicamente. E isso é um ato, ou a ausência de um. Já explico a ênfase no "ato":
Aí está a grande diferença, pra mim, entre Clarice e quase todas as autoras "femininas" que são jogadas no mesmo saco, particularmente as cronistas que são comparadas a ela. Clarice Lispector não escrevia sobre mulheres sentindo pena de si mesmas e aproveitando fugas simbólicas. Com essas personagens, a autora (a meu ver) escrevia sobre a falência dessas fugas simbólicas, sobre o fato de que elas não bastam, de que acreditar, esperar, manter um coração assim ou assado não são NADA! Isso na década de 1940! Tem gente (muitas mulheres, justamente) ainda hoje achando que às mulheres só cabe a fuga simbólica. Vida real é pra ser triste e desconsolada...
"A Fuga" é aquele típico conto bem escrito, com movimentos de narrativa que autores como Paulo Coelho confundem com erro gramatical e que não se centra no anti-clímax que virou clichê para esse tipo de literatura bem depois dela (em grande parte por causa dela), mas também não se centra nas viagens da personagem ao longo do conto. Trata-se de um conto inteiro, talvez deva dizer inteiriço, que não enche mursilha para destacar um sentimento de que a mulher é especial, de que cada uma pode fazer a diferença, ou qualquer coisa do tipo. Só o que cabe ao leitor, como sempre, é reagir ao que leu, é pensar a respeito, é tomar posição. A personagem não é um exemplo nem serve para acalentar os desejos procrastinadores ou as consciências mágicas que querem sofrer no seu lugarzinho e achar que isso as faz especiais.
Se quer só sentir o coração cálido e pensar que é um floquinho de neve, Clarice não serve. Ela é literatura canônica porque é sobre a realidade, não sobre a mascarar, e os mascaramentos de suas personagens são o ridículo, o humano, a que se reage, tentando sempre sair daquelas amarras com que insistimos em nos prender, homens e mulheres, do século XX ou depois. Quem não vê isso, não precisa lê-la, quem achar alguns contos piores que outros, beleza! Agora, não me digam que ela é fraca, que não é. Ou, se querem dizer, provem! Duvido!