Demorei a poder comentar a Páscoa, aqui no blog, mas lá vai, enfim!
Foi com muita tristeza e raiva que comprovei algo que tinha usado contra alguns cristãos reclamantes no tocante à retirada de crucifixos de prédios da Justiça gaúcha. Repetiram ad nauseam: ora, vamos tirar os feriados também, que são religiosos! Só podia eu responder: onde, cara pálida? (Prazer especial em explorar como as pessoas acham que Carnaval ainda pode ser considerado religioso no formato que o temos hoje - ou até em perguntar por que o Carnaval é considerado religioso.)
A religiosidade professada por políticos e canais de TV não poderia estar mais distante do retrato central da cultura brasileira. Somos religiosos? Não mais que outros, mas à nossa maneira, como eles são à deles. Eu me arriscaria a dizer que feriados são para presentes e descanso, no mínimo, desde a década de 1960. A exceção é restrita a religiosos praticantes, alguns ortodoxos, outros sincréticos, mas sempre para pessoas que realmente lembram de seus deuses no dia-a-dia. Gente que talvez seja mais representativa agora que há décadas atrás, não sei, mas que de forma alguma nos dá a cara, a identidade nacional. Estou falando, é claro, de pessoas que não apenas usam a palavra Deus, ou que fazem sinal da cruz na frente de igrejas, ou das que falam que Páscoa é uma época de renovação. Estou falando das pessoas que o fazem com seriedade e coerência. Estas continuam muito raras.
Se eu fosse retratar o povo grego antigo, não poderia jamais esquecer de seu medo do extraordinário, de sua ética de não sair da norma, da medida. Não há ponto que defina melhor a cultura deles (pelo menos que chegou a nós) que o medo terrível e sempre reiterado de ofender os deuses. Cada um no seu canto, cada macaco no seu galho. Não é possível retratar a cultura norte-americana sem expressar a tradução do capitalismo em ética e moral. A busca pelo lucro é verdadeira em quase todo o mundo, mas não existe em outra cultura (de que eu tenha notícia) como existe por lá. A economia (literal) ser elemento fundamental da moral não pode ficar de fora se se fala em EUA.
É nesses sentidos que pretendo dizer que o desrespeito a regras, a ignorância feliz das normas é o grande caráter do brasileiro. Nosso jeitinho existe em toda parte, a meu ver, como o medo do extraordinário não ficou preso na Grécia Antiga, mas poucos povos parecem levar como uma bandeira de sua subjetividade a capacidade, a alegria de pensar que as regras não servem, justamente, para si. De todas as pessoas do universo, curiosamente é justo o brasileiro que resta livre de qualquer normatividade ao dizer "eu". Para pôr a coisa de forma metafísica, digamos que Foucault não florece no Brasil por causa da importância da cultura francesa ou por movimentos históricos na Academia. Ele florece porque falou diretamente a nosso Ser.
Então, o que foi a Páscoa? Uma oportunidade para as pessoas se sentirem bem consigo mesmas falando mensagens de renovação e esperança para as outras. Claro, como em qualquer feriado "religioso". Além disso? Chocolate, presentes, blablablá. Um pouco de descanso, para alguns, muitas obrigações familiares, especialmente para os que as apreciam.
O que mais? Muita bebedeira. Mas MUITA. Expressões de felicidade que desrespeitaram ainda mais que o normal todas as regras que são desrespeitadas quando se está feliz, por aqui. E algumas mortes ou ferimentos em consequência disso, claro.
Agora, por que as normas são quebradas ainda mais num feriadão de Páscoa do que, digamos, num Dia do Trabalhador? É simples: porque o feriado é maior. Quanto mais dias para descansar, mais livre se está, pelo visto. E quando se está livre o que se faz? Aquilo que queremos fazer mas geralmente somos impedidos de realizar. O que maldita norma significa para o brasileiro? O estado pouco natural de respeitar os outros, e de respeitar regras que outras pessoas também devem respeitar. As desrespeitamos sempre, mas mesmo isso não é suficiente para o brasileiro em geral. O feriado serve então para rasgar de vez todas as regras que ficaram de fora dos desrespeitos cotidianos e repisar ainda mais as classicamente desrespeitadas (como horários de silêncio, vizinhanças em que buzinas são sempre proibidas - hospitais, entre outros, lembram? - regras de trânsito...).
Alguma ética, no entanto, sobrevive. Ainda que contrariado, o brasileiro precisa respeitar algumas regras, de vez em quando, nem que seja porque o sujeito pedindo que ele espere um segundo pela pessoa de cadeira de rodas é também aquele que dirige o ônibus, de modo que nada resta ao sujeito do que esperar mesmo. De tanto se ver forçado a respeitar algumas regras, o brasileiro internaliza que algumas realmente existem, no sentido de que não podem ser esquecidas só porque se está num dia de descanso. Covarde, ele apela à... bebida, claro! A clássica máscara de coragem da raça humana. Bêbado como raras vezes no ano, ele pode ser mais desrespeitoso do que tem coragem de ser, motivado pelo fato de terem lhe dito que ele tinha mais dias para não trabalhar do que lhe é costumeiro mesmo em feriados.
O descanso é então a possibilidade de ser ainda mais egoísta e egocêntrico do que nossa quase anárquica identidade permite. E isso foi a Páscoa. Para alguns. Para mim, como pode se notar por este texto, foi um exercício de paciência. E eu não tive tanto sucesso no exercício.
PS: O "progesso" já era ridículo, mas estou na campanha de que "ordem" é ainda pior em nossa bandeira e deveria ser imediatamente retirada. Se alguém ler este post, por favor, promova essa ideia!
PS: O "progesso" já era ridículo, mas estou na campanha de que "ordem" é ainda pior em nossa bandeira e deveria ser imediatamente retirada. Se alguém ler este post, por favor, promova essa ideia!
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