Faz quase uma semana que o Conselho de Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul determinou que símbolos religiosos fossem retirados das dependências do Tribunal. A decisão foi unânime e respondeu a um pedido de diferentes associações civis (umas ligadas à defesa do direito de homossexuais, outras à dos direitos das mulheres).
O processo levou de novembro do ano passado até agora para ter algum resultado. A decisão: cumprir o que foi pedido. Ana Naiara Malavolta, da Liga Brasileira de Lésbicas, deu a motivação mundana da coisa: o pedido foi uma resposta a diversos casos em que homossexuais foram impedidos de entrar em templos religiosos pelo Brasil. O problema reavivou a questão de "Por que essa religião que não aceita igualmente a todos e que é um entre outros credos do povo brasileiro vislumbra por sobre os ombros de juízes e desembargadores a cada decisão do Estado?" - Ok, coloquei uma certa cor, mas entenderam o problema.
O processo andou naturalmente com outra justificativa legal, o tema predileto da atualidade: a laicidade do Estado. Claudio Baldino Maciel, o desembargador relator do caso, lembrou que o Estado deve se distanciar igualmente de ambas as partes interessadas ao julgar. Colocar um símbolo religioso nos prédios e nas salas de decisão parece contradizer essa proposta - o "parece" aqui é meu, e o considero muito importante, mas vou demorar um pouco para retomar.
A argumentação do Estado laico fez o problema sair do front homoafetivo e recair nos ombros dos ateus - sim, até ancestrais associações entre comunismo e ateísmo foram evocadas, implicando que o apoio a Stalin, a defesa do aborto e o desejo de que se retirem de prédios públicos símbolos religiosos são a MESMÍSSIMA coisa. Ah, e os ateus são o grupo mau que quer tudo isso. Não vou discutir essa besteira (pelo menos não hoje), mas o problema do Estado laico me interessa, de qualquer forma, então vamos a ele.
Em primeiro lugar, o Estado não precisa falar em "laicidade" ou dizer que é "laico" na Constituição para sê-lo. Basta isolar-se de dependência ou associação com qualquer religião. O (agora) famoso artigo 19 da Constituição diz exatamente isso, particularmente no trecho proibindo "manter com eles [cultos religiosos] ou seus representantes relações de dependência ou aliança". Assim como proibir que um cidadão tire a vida do outro, ou garantir o direito de todos à vida, é proibir "assassinato" sem usar a palavra; não é preciso que a lei use o termo "laico" para defender esse tipo de Estado. Ponto. Aliás, a legislação brasileira faz de nosso país um caso particularmente claro de Estado laico. Quem quer checar, por favor, se vire.
"Aliança" é um termo complicado no artigo, mas não besta. Ele não quer dizer que o chefe de Estado não pode dar tapinhas nas costas do papa se visitado, ou rezar a um deus quando está triste, assustado ou agradecido.
Por outro lado, o artigo 19 estabelece que o governo não pode favorer qualquer religião em detrimento de outras, nem a todas elas em detrimento de quem não tem nenhuma. Ora, o que significa uma cruz em destaque na parede? Detalhe ornamental? Gosto pessoal? Ou reverência a Cristo, figura central (ou muito importante) de quase todo o monoteísmo atual? - Tal reverência é característica de religiões monoteístas, certo? Quem é monoteísta é religioso, concordam? Quem tem religião segue preceitos e/ou dogmas instituídos por uma fonte outra que o Estado, certo? Como é que se vai dizer que o crucifixo aqui não pode ser questionado com o argumento de que o Brasil é um Estado laico? Ele está justamente implicando um respeito a algo que lhe é externo, um símbolo religioso.
É nesse ponto que quero destacar o "parece" acusado antes. Um desembargador ateu não deve estar pensando no crucifixo nas suas costas quando faz alguma decisão profissional. No entanto, o crucifixo não deixa de provocar um implícito bastante claro, apenas esquecido ou ignorado por alguns, na prática. Políticos nunca foram o melhor exemplo de cristãos, mas a mensagem continua lá, e isso basta para incomodar ou insultar pessoas que se importam com essa religião, por bem ou por mal. Se esses cidadãos chamam a atenção para uma incongruência séria que tem motivos históricos, não legais, por que é tão horrível quererem resolver tal incongruência, especialmente quando estão tentando há décadas serem tratados como cidadãos e têm justamente uma resistência de políticos religiosos impedindo parte desse movimento? Essa motivação, aliás, como vou comentar, não impede que eles estejam certos. Não é um contra-argumento em si.
Por outro lado, o artigo 19 estabelece que o governo não pode favorer qualquer religião em detrimento de outras, nem a todas elas em detrimento de quem não tem nenhuma. Ora, o que significa uma cruz em destaque na parede? Detalhe ornamental? Gosto pessoal? Ou reverência a Cristo, figura central (ou muito importante) de quase todo o monoteísmo atual? - Tal reverência é característica de religiões monoteístas, certo? Quem é monoteísta é religioso, concordam? Quem tem religião segue preceitos e/ou dogmas instituídos por uma fonte outra que o Estado, certo? Como é que se vai dizer que o crucifixo aqui não pode ser questionado com o argumento de que o Brasil é um Estado laico? Ele está justamente implicando um respeito a algo que lhe é externo, um símbolo religioso.
É nesse ponto que quero destacar o "parece" acusado antes. Um desembargador ateu não deve estar pensando no crucifixo nas suas costas quando faz alguma decisão profissional. No entanto, o crucifixo não deixa de provocar um implícito bastante claro, apenas esquecido ou ignorado por alguns, na prática. Políticos nunca foram o melhor exemplo de cristãos, mas a mensagem continua lá, e isso basta para incomodar ou insultar pessoas que se importam com essa religião, por bem ou por mal. Se esses cidadãos chamam a atenção para uma incongruência séria que tem motivos históricos, não legais, por que é tão horrível quererem resolver tal incongruência, especialmente quando estão tentando há décadas serem tratados como cidadãos e têm justamente uma resistência de políticos religiosos impedindo parte desse movimento? Essa motivação, aliás, como vou comentar, não impede que eles estejam certos. Não é um contra-argumento em si.
É óbvio que se pode argumentar contra a retirada de símbolos religiosos. É claro que muitos argumentos legais são levantados para que os crucifixos ali fiquem. No entanto, no momento em que uma decisão (administrativa) é tomada pelos responsáveis, com base legal, como é que gritos de inconstitucionalidade tomam as redes sociais (partindo, infalivelmente, de religiosos reclamando sobre ateus)?
Não falo aqui de questionamentos, mas de acusações associando a retirada de crucifixos à defesa do aborto, ao passado de ditaduras comunistas e, nos casos mais graves de esquizofrenia, à expulsão de Deus do Brasil!
Se não há conexão lógica entre aborto no SUS e crucifixos em prédios públicos, é possível encontrar um link político: as mesmas "bancadas" opõem-se nos dois casos. Portanto - e revisando (para deixar claro a loucura que quero retratar) - movimentos de defesa das mulheres e dos homossexuais responderam ao que viram como afrontas de religiosos e retomaram a questão dos crucifixos e semelhantes em prédios públicos. "Venceram", e o "outro lado" trouxe à baila o resto da baderna que anima a ambos (LGBT e cristãos), já há algum tempo: aborto e laicidade na política (o que restringe, obviamente, a possibilidade dos cristãos defenderam parte de sua bandeira e participar de determinadas formas - i.e., "em nome de Cristo/da minha religião, defendo tal lei" - não é à toa que se sentem ameaçados).
Tudo isso virou insultos contra ateus e uma piadinha em particular, que vi muito repetida e que motivou este post (apesar de não ter me incomodado até eu ver o conjunto das balbúrdias citadas acima): "Se vão tirar os crucifixos, vamos tirar os feriados (religiosos) então!"
A meu ver, a ironia aqui foi má escolha, pois volta contra o feiticeiro.
1 - Os feriados não são "religiosos" no Brasil há quanto tempo? Séculos, já? Quem lembra de Jesus na Páscoa, ou mesmo no Natal? Cristãos? Muito poucos. E professoras de educação infantil? Só se for em sala de aula. Presépios e mensagens de paz com um barbudo cabeludo atrás não são "respeitar e celebrar o sentido religioso da data", nem mesmo respeitar a "mensagem" que a origem religiosa teria deixado. Em qualquer lugar que se vá, Papai Noel vence Jesus por pelo menos 10x1 na quantidade e na qualidade de referências. Todas as crianças sabem quem é Papai Noel, mas quase nenhuma pode ficar mais que perdida se questionada a respeito de Jesus - a menos que os pais a levem a alguma igreja, e mesmo assim é bem provável que ela não saiba dizer mais do que uma citação para a data mais próxima, como "é quem nasceu agora", se se está perto do Natal (não me entendam mal, não estou falando de criancinhas de 5 anos, mas até de pré-adolescentes).
2 - Quem sabe o motivo religioso do Carnaval? Quantas pessoas saem em procissões das padroeiras que motivam feriados regionais? O Dia do Índio, do Negro, da Mulher, da Independência, da República, da Revolução Farroupilha e outras tantas datas (feriados ou não) com base "civil" são de fato conhecidas por suas propostas e são debatidas em cima destas, não de acordo com um mercado que aproveitou o vácuo deixado pelo recuo da religião em tanto de nossa cultura. Na Páscoa se discute sobre vendas, produção e consumo de chocolate - fora de centros religiosos bem restritos. Talvez a bancada cristã consiga mudar isso em 2012, mas, com base no Dia do Hétero que passou tão despercebido, me parece improvável.
3 - Se é errado não-religiosos pararem em feriados religiosos, qual a melhor solução para isso? "Já que fazemos errado na Páscoa, vamos errar nos prédios públicos também" ou "Já que arrumamos os prédios, vamos arrumar os feriados"?
4 - O aspecto "estão só querendo o que lhes interessa, esses vagabundos" da piadinha é o mais bizarro. Acaso religiosos se enfureceram com a questão por algum motivo que não lhes interesse? Cristão são imparciais quando se discute laicidade e crucifixos? É crime que ateus (supostos) sejam parciais? Ou a política é exatamente um campo de parcialidades, envolvendo, às vezes, o julgamento de alguém que não deveria ser influenciado por nada, NEM PELA RELIGIÃO?
5 - O Estado não se justifica pelos interesses, valores ou preceitos de religiosos ou ateus. O Estado se justifica por si. Eu sei que isso é um looping, mas é a loucura que institucionalizou a nossa forma de governo. No momento em que um grupo ou religião serve de base para uma lei, o Estado está se inclinando para algum lado, o que está errado conforme... a Constituição. Portanto, se os ateus querem ficar em casa na Páscoa, em nada isso justifica que estejam errados ao argumentar laicidade do Estado para reclamar de crucifixos. A questão é só se essa laicidade justifica tais posições ou não. As incongruências dos indivíduos nada têm a ver com a lei.
A ironia não era só "brincadeira", como creem muitos que as fizeram na "maior inocência". Ela indica que não se entendeu nem o motivo da ação contra símbolos religosos nem a ação em si. No entanto, ela era a grande resposta. Em busca de um motivo para tanto barulho, a única tentativa de argumento racional que encontrei de quem se opunha à decisão (do Tribunal) foi "Não faz sentido". "Como não faz sentido?" E lá vinha ela: "Sim! Se é pra tirar os crucifixos, vamos tirar os feriados, então!"
Mas o pedido não foi um movimento de vagabundos que se aproveitam da religião para descansar, só não a querem no Tribunal; não veio de pessoas insensatas que torcem a Constituição usando palavras que ela não tem (argumenta-se e interpreta-se a Constituição, isso sim, mas, bem feito, chama-se Direito, não malvadeza - nenhuma lei é aplicada "na prática" sem argumentação e interpretação, não há uma tradução direta e imediata da lei em ação real); nem de pessoas que "odeiam crucifixos"; nem é perseguição religiosa; nem é um movimento esquizofrênico porque o país tem certos costumes de origem religiosa - aliás, "país", "cultura" e "Estado" não são a mesma coisa.
Mas o pedido não foi um movimento de vagabundos que se aproveitam da religião para descansar, só não a querem no Tribunal; não veio de pessoas insensatas que torcem a Constituição usando palavras que ela não tem (argumenta-se e interpreta-se a Constituição, isso sim, mas, bem feito, chama-se Direito, não malvadeza - nenhuma lei é aplicada "na prática" sem argumentação e interpretação, não há uma tradução direta e imediata da lei em ação real); nem de pessoas que "odeiam crucifixos"; nem é perseguição religiosa; nem é um movimento esquizofrênico porque o país tem certos costumes de origem religiosa - aliás, "país", "cultura" e "Estado" não são a mesma coisa.
Trata-se de uma decisão legal conquistada pelos meios justos e corretos (que pode ser recorrida), argumentada também com base nas leis (por pessoas que fazem exatamente isso da vida) e, ao mesmo tempo, uma ação política, sim, mas de pessoas que acreditam lutar por igualdade e liberdade naquilo que mais lhes toca. Se os cristãos heterossexuais não são sensíveis a esses problemas, que se lembrem do ditado bastante religioso "de boas intenções o inferno está cheio". Talvez, sejam humildes para considerar, as "boas intenções" de religiosos não sejam imunes ao ditado. Particularmente se suas únicas respostas a quem lhes desagrada na política sejam ironia, insulto, desqualificação e difamação.
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