quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Os árabes mais legais

Dizem que os egípcios que tomaram as ruas são a grande chance de que se construa uma democracia por lá. E quem nega isso diz o quê? O que falam os céticos em relação aos árabes e grandes críticos que apoiam mantenedores do governo de Mubarak, como os EUA? (Não encontrei posições alternativas, apenas gente que está num desses dois lados, mas mede as palavras na hora de se expressar). Eles dizem que há violência endêmica entre árabes. Que seus protestos não são pela democracia, mas por causas mais básicas como fim da tortura e da ditadura, melhores condições de vida, moradia, trabalho, liberdade de expressão, "não necessariamente por democracia"!

HAHAHAHA

Vocês já viram acadêmicos campeões da democracia saindo às ruas na história da humanidade?! Nunca absolutamente um ser humano saiu para lutar pela democracia. O máximo que já aconteceu foi que a democracia era a possibilidade real, o meio pelo qual determinada população conseguiria, mais realisticamente, todas essas coisas (liberdade, moradia, alimento...). Nem a liberdade de expressão, aliás, consegue muitos adeptos sozinha, sem outras necessidades básicas sendo atacadas. E veja-se o nível de miséria ou desespero que costuma ser necessário para que as pessoas realmente saiam às ruas na magnitude suficiente para derrubar um governo.

Países que já têm, aliás, um sistema democrático de governo estão sempre dispostos a abrir mão de uma série de direitos ou liberdades em prol de outras coisas aparentemente mais imediatas ou prementes. É claro que a maioria (creio) da população não entrega a democracia inteira de bandeja, mas pedacinhos dela são altamente negociáveis por alguma grana, algum alimento, alguma casa. 

Esse discursinho de descrédito contra os egípcios, porém, não pôde virar aquele ódio indiscriminado a tudo que é árabe como fundamentalismo ou terrorismo. Por que o Egito foi diferente, e não se está tratando essas manifestações de revolta (um país derrubando um governo autoritário sem a "ajuda" dos EUA, "sacrilégio") como exemplos do fundamentalismo terrorista da "essência" dos árabes? Porque as forças do governo cometeram o crime capital dos tempos: feriram gente da imprensa ocidental. Incluindo um cara do jornal The Guardian (eu, eu, eu, Mubarak se fudeu). Ora, atacar a imprensa é algo que não se faz, o grande tabu que votou de Hugo Chávez a Russel Crowe à mesma danação. Se a polícia é nossa inimiga, então os manifestantes devem ser nossos amigos. E, cheia de dedos, a imprensa aventura a possibilidade de que a revolta no Egito possa ser algo positivo. 

Estão ressabiados ainda pelo histórico regional de governos autoritários apoiados por EUA e Israel serem substituídos por governos autóctones religiosos e contrários a EUA e Israel. Mas não é algo de se estranhar, não é? A justificativa que me vem à mente, nessas situações, não é que isso é "coisa de árabe"! Aliás, algo semelhante me parece ter acontecido aqui, com a diferença de que nossa economia já era tão voltada à deles e tanta gente da ditadura conseguiu seguir no poder que o anti-americanismo não deu tantos frutos (ficou restrito a um grupo da população, além de se enfraquecer com o tempo no "País sem Memória"). Ah, e nunca estivemos numa guerra com Israel, provocada por ações consideradas internacionalmente como ilegais. Agora, quem sabe o apoio ocidental a partidos ou associações democráticas com a mesma gana e financiamento com que se apoia governos autoritários mudassem a situação do "Ocidente" por lá?

Mas ainda se vem com esse discurso de que "não se pode confiar em árabes" (o grande forte do preconceito que nem o politicamente correto conseguiu invadir) e que eles terem interesses e demandas concretas para sua a vida seja algo ruim; algo, quem sabe, perigoso para a democracia. É, tem gente que continua achando que uma população ter exigências concretas de dignidade seja sempre uma ameaça à democracia...

3 comentários:

Clark disse...

A democracia ocidental pode até não ter surgido exatamente de uma busca por “melhores condições de vida, moradia, trabalho etc”, mas surgiu para dar condições de que as pessoas pudesse buscar essas coisas “materiais”.

Mas hoje, na cabeça de muita gente, democracia se transformou em um fim em si mesma — e não um tipo de organização administrativa criada para possibilitar a busca por determinados fins.

Eu estou entre os que se preocupam em a possibilidade de a revolta egípcia dar espaço para algum outro grupo político talvez até bem mais autoritário tomar o poder (assim como ocorreu no Irã, em Cuba ou, em certo sentido, até no Brasil), mas essa história de violência como coisa de árabes é esquecer que nós, ocidentais, consideramos a sangrenta revolução francesa como símbolo da fraternidade...

Tigre disse...

Também me preocupa se o Egito puder "resolver a crise" com uma ditadura fundamentalista. Mas me preocupa mais ainda a reação do "Mundo Livre" ao problema. Se é possível que a coisa descambe para o outro lado, é porque é possível também que se vá para uma democracia, ou para algo mais próximo disso do que se tinha. Agora, depois de fazerem esse prognóstico, a primeira preocupação de jornalistas, comentaristas e "especialistas" não deveria ser se preocupar com as formas como a coisa poderia ter um bom resultado? Se pode surgir uma democracia disso tudo, como isso aconteceria? O que se pode fazer para isso? Há alguém nesse esforço? Em vez disso, a preocupação primeira de muita dessa gente é "avisar" o resto do mundo de que os árabes "continuam não-confiáveis".

Enquanto a situação política do Egito pode sofrer uma significativa mudança para melhor, conforme os próprios jornalistas americanos, Hillary Clinton preocupa-se apenas com pequenas reformas que mantenham o odiado Mubarak no poder. Acontece um raro levante social por mudança (positiva - liberdade, dignidade...), e esse é o momento que escolhem para reprisar os mantras mais ancestrais.

Clark disse...

Você sabe como é. Democrats como Hilary não gostam de “impor democracia” em países árabes... rs